Vida boa http://vidaboa.redelivre.org.br Andarilhança por experiências de Bem Viver Tue, 28 Mar 2023 14:28:50 +0000 pt-BR hourly 1 Retiro em jejum: descolonizar-se por todas as relações http://vidaboa.redelivre.org.br/2023/03/28/retiro-em-jejum-descolonizar-se-por-todas-as-relacoes/ http://vidaboa.redelivre.org.br/2023/03/28/retiro-em-jejum-descolonizar-se-por-todas-as-relacoes/#respond Tue, 28 Mar 2023 14:27:27 +0000 http://vidaboa.redelivre.org.br/?p=3397  

8 dias em retiro. Jejum.

De alimentos

interações sociais

obrigações cotidianas

conexão digital.

 

Nos 5 primeiros dias, nada de alimento sólido.

Mate ao acordar. Algumas medicinas em pequena quantidade.

Um limão espremido com uma colher de mel diluído em água.

Chá.

Depois entendi que eu não precisava ser tão estrita. Tinha meia abóbora na geladeira. Essa meia abóbora rendeu um caldinho para os três dias restantes. Leve refeição do fim do dia, para não ser tão penoso dormir.

Escrevo na última noite. Amanhã sigo essa mesma rotina, com a diferença de que pretendo tomar juçara com banana e ir até a cachoeira. Na volta, preparar meu desjejum e celebrar o encerramento desse retiro.

Retiro em jejum pra mim é uma medicina pro corpo, pras emoções, pra mente, pro espírito. Assim é pra vários povos e tradições, não estou inventando nada. Já fiz alguns ritos de passagem coletivos em que o jejum e o retiro da vivência cotidiana são as bases. Mas nesses dias cheguei ao entendimento de que esse meu jejum, apesar de em alguma medida ser um rito de passagem, não substitui os ritos de passagem coletivos. Eu sozinha jejuando e fazendo meus rituais na minha casa não se compara com quando é feito com várias pessoas juntas, com outras pessoas no apoio, mantendo um fogo aceso constantemente enquanto as outras estão em seus ritos, normalmente em lugares afastados, seguindo um desenho ancestral já praticado muitas vezes.

Ainda quero os ritos de passagem coletivos. Que são mais esporádicos, marcam fases da vida. E são ainda mais desafiadores (apesar de que fazer jejum na própria casa tendo alimento disponível, estando sozinha, exige uma força de vontade ferrenha). Já os jejuns que tenho feito se dão na transição das estações, não em todas necessariamente (nesse verão não fez sentido pra mim fazer, momento muito expansivo, muito sol e calor chamando pra fora, não pra dentro). Mas na primavera e no outono faz todo o sentido – o tempo ameno torna menos difícil e também são as épocas indicadas pela ayurveda para essas limpezas.

Ainda assim acho bem difícil.

Mas é bem bom.

Gosto de estar no conforto do meu lar de um outro modo. Gosto de criar meu próprio rito de uma maneira mais livre, espontânea, à medida que as coisas vão acontecendo. Gosto de rever as questões do meu cotidiano desde uma outra mirada. Sempre tenho muitos entendimentos, lembranças, inspirações. Resoluções práticas.

 

Dessa vez fiz banho de banheira com água aquecida no fogão à lenha, ervas, flores, óleos essenciais e argila verde na segunda e na última noite. Na quinta noite fiz uma cerimônia. Fiz muitas sessões com cristais ao som de musicoterapia. Algumas cantorias. Li, escrevi, hoje até vi um filme. Ouvi muita música-medicina. Fiquei horas na rede tomando mate ou simplesmente contemplando a linda paisagem, as montanhas de floresta, a cachoeira no alto, o vale, o jardim, a gatinha. Acompanhei a chuva e o sol, que se alternaram muitas vezes ao longo desses dias. Fiz yoga e muita automassagem com óleos e pomadas. Tirei cartas do caminho sagrado. E descansei muito. Ficar offline é uma delícia.

No quarto dia de jejum desceu minha lua. Na lua nova, em retiro. Tudo friamente calculado. Nesse dia fiquei bastante deitada. Simplesmente sangrando. O terceiro dia foi o mais difícil. Logo antes de menstruar – e o terceiro dia costuma ser, nesse tipo de rito, o da iniciação, o teste, a provação. Mal consegui levantar da cama. O corpo todo cansado. Tonturas. Sensação de que ia desmaiar ao levantar. A visão se fechava em negro, mas logo depois se abria de novo. Não tenho pressão baixa e nunca desmaiei, assim que isso não apresentava um risco real pra mim. E todas essas sensações passaram. Tudo passa.

 

Saí para caminhar na floresta no sexto dia, foi lindo até eu ouvir barulhos de tiro próximos. Caçadores. Tudo que eu menos queria no momento era me deparar com algum deles e seus cães de caça. Fui embora rápido, o que me gerou intenso cansaço nessas condições. Senti muito desgosto por esses seres agindo assim na floresta.

Andar na floresta em jejum é uma experiência mágica. Mas também de muito receio. Nesses momentos rituas eu me sinto mais natureza, digamos assim, afinal nós somos natureza mas as couraças da civilização fazem a gente esquecer. Mas em jejum a percepção é muito aguçada, a abertura é muito grande. Dá pra sentir tudo. Inclusive o receio de encontrar os tais homens civilizados que os demais seres da natureza têm. Imagino como os povos indígenas devem se sentir caminhando na floresta… Esses povos são mais natureza, porque reconhecem que são natureza. Me contaram que pessoas do povo Guarani têm o costume de, ao ouvir um barulho suspeito na mata, ficar imóveis e em silêncio. Como se não estivessem ali. A violência da colonização, do homem civilizado, deve ter ensinado isso. Mulheres também tendem a ser mais natureza. E sentem os mesmos receios que a mata quando um caçador adentra.

Me fez pensar que em ritos de passagem sozinha talvez seja melhor ficar em área protegida mesmo. Infelizmente são cada vez mais raras e restritas.

Tive uma visão bem bonita e profunda ontem à noite, depois de brincar com o fogo de uma velinha, me iluminar e aquecer com ele. Desses entendimentos mágicos da vida. De olhos fechados, no escuro. Sabe ver no escuro de olhos fechados? Eu fazia muito isso quando criança. Até de olho aberto. No escuro. Tem coisa que a gente precisa reaprender. Ontem me veio esse saber. Fuego de mi corazón. La serpiente cósmica.

Senti cura física em processinhos de curto, médio e longo prazo que me acometem. Os frutos do tempo dedicado para o autocuidado nesses dias. Mas muita dor nas pernas, como quando se passa uma noite com muito frio e elas acordam enrijecidas. Isso eu não costumo sentir. Pode ser do processo de desintoxicação que o jejum gera.

Eu sinto que fazer esse ritos é intensamente descolonizador. No ritmo de vida sem sentido acelerado que se impõe, ninguém tem tempo pra isso. Nem vê sentido nisso. Poder reservar tempo, ter espaço e condições apropriadas para fazer um balanço para melhor acompanhar os ciclos dentro, entre e fora, me parece algo fundamental para uma sociedade saudável. É um momento de muito aprimoramento. Sempre agradeço a mim mesma por me propiciar esses momentos quando eles terminam, e agradeço a vida que levo, em que esses ritos são prioritários, e por viver em condições que me permitem realizá-los – mesmo que em alguns momentos tenha sentido dor, fome, fraqueza. Elas também ensinam. Ensinam que mais do que o que a gente sente, importa como a gente reage ao que a gente sente. E ensinam sobre perseverança. Sobre conseguir realizar aquilo que a gente se propõe. O rezos, os intuitos, os sonhos, as melhores das intenções só se realizam na prática. Ação na matéria.

Para fazer um retiro desses é preciso criar condições para isso e realizar tudo que é necessário pra que ele aconteça – inclusive não comer. Jejuar passa a ser uma (não) ação. Assim como meditar é uma (não) ação. Mesmo que seja não fazer, é uma decisão colocada em prática.

Vi muitas flores, rasantes de tucano e gralha azul, borboletas. Visitas de beija flor. Aranhas. Uma delas mumificando um insetinho com sua teia, foi bem interessante observar. O inseto-múmia ainda dando uns espamos, e ela lá, firme, segurando. Garantindo o alimento.

Vou me despedindo desse rito muito agradecida. Nutrida. Seguindo nos trabalhinhos cotidianos pra cada vez dar mais sentido, coerência, beleza, profundidade e leveza à vida, agora com mais algumas indicações de como fazer isso. Tarefinhas necessárias. Alinhamentos bem vindos. Um dos apontamentos é, inclusive, incorporar mais o jejum ao meu cotidiano.

Agradeço todas as forças de Vida-morte-vida por mais esse renascimento, por atravessar mais um portal, por toda a guarnição e guiança, por todos os seres que me acompanham, por essa floresta encantada, por esse território sagrado, por ter a honra de poder observar e ser convidada para a extasiante dança cósmica do universo. Agradeço por todas as sabedorias ancestrais e povos que mantêm vivos seus ritos, rezos, modos de vida, tradições – e por generosamente compartilharem. Agradeço pelo meu corpo, por todos os meus corpos, pela minha vida. Pelo sagrado alimento. Por todas as relações.

Aqui o outono chegou.

 

 

]]>
http://vidaboa.redelivre.org.br/2023/03/28/retiro-em-jejum-descolonizar-se-por-todas-as-relacoes/feed/ 0
A serpente cósmica: o DNA e a origem do saber http://vidaboa.redelivre.org.br/2022/10/24/a-serpente-cosmica-o-dna-e-a-origem-do-saber/ http://vidaboa.redelivre.org.br/2022/10/24/a-serpente-cosmica-o-dna-e-a-origem-do-saber/#respond Tue, 25 Oct 2022 00:24:15 +0000 http://vidaboa.redelivre.org.br/?p=3392 Trechos de “A serpente cósmica: o DNA e a origem do saber”, de Jeremy Narby. Rio de Janeiro, editora Dantes, 2018.

 

Capítulo 1 – A televisão da floresta

Vi-me cercado por algo que achei serem duas jiboias gigantescas, medindo uns setenta centímetros de espessura e doze a quinze metros de comprimento. Fiquei apavorado. “Essas cobras enormes estão aqui, estou de olhos fechados, vejo um mundo espetacular de luzes brilhantes e, de repente, no meio de pensamentos confusos, elas começam a falar comigo sem palavras, explicando que não passo de um ser humano. Sinto meu espírito quebrar e, na rachadura, me dou conta da arrogância ilimitada dos meus pressupostos. Realmente é verdade que sou apenas um ser humano, que o tempo todo acha tudo compreender, enquanto, ali, me vejo numa realidade mais poderosa, que de forma alguma compreendo e da qual, na minha arrogância, sequer suspeitava a existência. Tenho vontade de chorar, diante da imensidão dessas revelações, mas percebo que inclusive essa autocomiseração faz parte da arrogância. Fico tão envergonhado que nem consigo mais ter vergonha. Mas preciso vomitar de novo.”

Levantei-me totalmente desnorteado e, pedindo sinceras desculpas às cobras fluorescentes, passei por cima delas como um equilibrista bêbado e fui até uma árvore ao lado da casa, junto da cozinha, num plano mais baixo.

Agora relato essa experiência com palavras, num papel, mas, naquele momento, a própria linguagem parecia insuficiente. Eu tentava dar um nome ao que via, mas, na maior parte do tempo, as palavras não combinavam com as imagens. Era uma situação muito perturbadora, como se tivesse sido cortado o meu último elo com a “realidade”. Esta última, aliás, parecia agora uma lembrança longínqua e unidimensional. Mesmo assim, eu conseguia compreender mentalmente meus sentimentos, do tipo: “mísero ser humano que perdeu sua linguagem e tem pena de si mesmo”.

Nunca me senti tão profundamente humilde como ali. Apoiado na árvore, vomitei de novo. Em ashaninka, ayahuasca se diz kamarampi, do verbo kamarank, vomitar. Fechei os olhos e só conseguia ver vermelho. Vi o interior do meu corpo, todo vermelho. “Não estou vomitando um líquido e sim a cor, um vermelho elétrico, como sangue. Minha garganta dói. Abro os olhos e sinto presenças a meus lados. Uma presença escura à minha esquerda, e uma clara à minha direita, também a um metro. Como estou ligeiramente virado para a esquerda, a presença escura não me incomoda, pois tenho consciência dela. Mas me assusto ao tomar consciência da presença clara e me viro para vê-la. Na verdade, não consigo vê-la com os olhos, pois sinto-me tão mal e controlando tão pouco a razão que nem tenho a menor vontade. Conservo lucidez suficiente para saber que não estou vomitando sangue. Passado um momento, me pergunto quanto ao que fazer. Meu descontrole é tamanho que me entrego a instruções que parecem vir de fora (da presença escura?): é hora de parar de vomitar, é hora de cuspir, de assoar o nariz, de lavar a boca, mas sem engolir a água. Estou com sede, mas meu corpo diz que eu não beba água.

A certa altura, lavando o rosto, levantei a cabeça e vi uma mulher ashaninka, com o tradicional vestido branco de algodão (cushma), a mais ou menos sete metros de mim, parecendo estar em levitação, acima do chão. Vi na escuridão que clareara. A iluminação lembrava a de cenas em “noite americana”, isto é, filmadas de dia, com filtro escuro, para dar impressão noturna. Olhando para a mulher, que me observava calada, naquela noite subitamente clara, senti-me de novo profundamente surpreso com a familaridade de toda aquela gente com uma realidade que abalava meus axiomas e que eu ignorava completamente. (p. 14 – 16)

Capítulo 2 – Antropólogos e xamãs

O principal enigma com que me deparei no decorrer da minha pesquisa sobre a ecologia dos ashaninka foi: essas pessoas extremamente práticas, vivendo quase autônomas na floresta amazônica e respondendo, em geral, com franqueza às minhas perguntas, dizem que o seu formidável saber botânico vem de alucinações induzidas por certas plantas. Como é possível?

E a questão se tornava ainda mais intrigante, uma vez que os conhecimentos dos povos indígenas da Amazônia cada vez mais espantavam os etnobotânicos – como bem ilustra o exemplo da composição química do ayahuasca. Esse preparado alucinógeno, provavelmente conhecido há milênios, é uma combinação de duas plantas. A primeira contém um hormônio secretado naturalmente pelo cérebro humano, a dimetiltriptamina (DMT), inativo por via oral, pois é inibido por uma enzima do aparelho digestivo, a monoamina oxidase. A segunda planta do preparado contém, justamente, diversas substâncias que protegem o hormônio do ataque dessa enzima, o que levou Richard Evans Schultes, o etnobotânico mais famoso do século XX, a dizer: “Perguntamo-nos como povos de sociedades primitivas, sem conhecimentos de química e de fisiologia, conseguiram encontrar uma solução para a ativação de um alcaloide, através de um inibidor da monoamina oxidase. Por pura experimentação? Talvez não. Os exemplos são muitos e poderiam ser ainda mais numerosos com novas pesquisas”.

Temos então indivíduos que, sem microscópios eletrônicos nem formação em bioquímica, escolhem folhas de um arbusto – entre as cerca de oitenta mil espécies amazônicas de plantas superiores –, contendo um determinado hormônio cerebral, e as combinam com uma substância que bloqueia a ação de determinada enzima do aparelho digestivo, encontrada num cipó, com a finalidade de modificar deliberadamente o seu estado de consciência.

É como se conhecessem as propriedades moleculares das plantas e a arte de combiná-las.

E quando perguntamos como sabem essas coisas, respondem que tal conhecimento vem diretamente das plantas alucinógenas. (p. 18 – 19)

O termo “xamanismo” foi inventado pelos antropólogos para classificar as práticas menos compreensíveis dos “primitivos”.

A palavra “xamã” é de origem siberiana. Tem uma etimologia duvidosa. Em língua tungúsica, um saman é alguém que toca um tambor, entra em transe e cura pessoas. Os primeiros observadores russos que relataram as suas atividades os descreveram unanimemente como doentes mentais.

A partir do início do século XX, os antropólogos progressivamente ampliaram o uso desse termo siberiano e encontraram xamãs na Indonésia, em Uganda, no Polo Norte e na Amazônia. Uns tocavam tambores, outros bebiam decocções de plantas e cantavam. Uns pretendiam curar, outros lançavam feitiços. Foram sempre considerados neuróticos, epiléticos, psicóticos, histéricos ou esquizofrênicos. […]

Por volta da metade do século XX, no entanto, os antropólogos começaram a não só perceber que os “primitivos” não existem como tal mas também que os xamãs são menos loucos que se pensava. A mudança foi brusca. Em 1949, num ensaio que foi um divisor de águas, Lévi-Strauss afirmou que o xamã, longe de ser um louco, é uma espécie de psicoterapeuta – com a diferença que “o psicanalista escuta, enquanto o xamã fala”. Para Lévi-Strauss, o xamã é sobretudo um criador de ordem, que cura as pessoas transformando as suas dores “incoerentes e arbitrárias” numa “forma ordenada e inteligível”.

Essa visão do xamã/ordenador tornou-se o credo de uma nova geração de antropólogos. De 1960 a 1980, as autoridades mais reconhecidas da disciplina definiram o xamã sobretudo como um criador de ordem, alguém que domina o caos ou evita a desordem.

É claro, as coisas não se passaram de forma tão simples. Até o final dos anos 1960, alguns sobreviventes da antiga escola continuaram a considerar o xamanismo uma doença mental. A partir dos anos 1970, surgiu um novo discurso, apresentando o xamã não só como um criador de ordem mas também como um especialista em toda espécie de ofício: ao mesmo tempo “médico, farmacêutico, psicoterapeuta, sociólogo, filósofo, advogado, astrólogo e padre”. Durante os anos 1980, por fim, alguns iconoclastas afirmaram que os xamãs são, antes de tudo, criadores de desordem!

Quem são, então, os xamãs? Esquizofrênicos ou criadores de ordem? Homens aptos a todas as funções ou criadores de desordem?

A resposta, me parece, está no espelho. Explico-me: quando a antropologia era uma jovem ciência nascente, ainda pouco à vontade consigo mesma, inconsciente da natureza esquizofrênica da sua metodologia, o xamã foi visto, sobretudo, como doente mental. Mais tarde, quando a antropologia (“estrutural”) pensou chegar ao status de ciência e os antropólogos tratavam de encontrar ordem dentro da ordem, o xamã se tornou criador de ordem. A partir do momento em que a disciplina passou a viver uma crise de identidade (“pós-estruturalista”), sem saber mais se é uma ciência ou uma forma de interpretação, o xamã “começou a desempenhar” todo tipo de ofício. Mais recentemente, certos antropólogos começaram, enfim, a questionar a busca obsessiva de ordem por parte da disciplina e identificaram xamãs cujo poder reside precisamente em “falsear a busca de ordem”.

Tudo indica, então, que a realidade escondida por trás do conceito de “xamanismo” sistematicamente remete o olhar do antropólogo a si mesmo, seja qual for o ângulo da abordagem. (p. 22 – 24)

Capítulo 3 – A mãe da mãe do tabaco é uma cobra

Os habitantes de Quirishari tinham perfeitamente dado a entender que eu não deveria colecionar amostras de plantas. Podia, entretanto, estudar à vontade o modo como utilizavam a floresta e experimentar a sua medicina vegetal.

Assim sendo, sempre que tinha algum problema de saúde e as pessoas diziam conhecer um remédio, eu experimentava. Os resultados não só ultrapassaram minhas expectativas como também a minha compreensão da realidade. Por exemplo, eu sofria de dor nas costas desde os 17 anos (exagerei em jogar tênis na adolescência…). Havia consultado médicos europeus que nada me propuseram, além de injeções de cortisona e tratamentos térmicos. Continuava a ter dores. Em Quirishari havia alguém chamado Abelardo Shingari, conhecido por sua “medicina do corpo”. Ele se propôs a curar a minha dor nas costas com uma infusão de sananga, na lua nova, avisando apenas que eu sentiria frio e que, por dois dias, meu corpo pareceria feito de borracha. Além disso, eu veria algumas imagens.

Mantive-me cético, achando que se realmente fosse possível curar uma dor crônica nas costas, bebendo meia xícara de chá vegetal, certamente a medicina ocidental saberia. Por outro lado, pensei que valia a pena experimentar, pois o método não seria menos eficaz que as injeções de cortisona e eu estaria enriquecendo minhas investigações antropológicas.

Certa manhã, bem cedo, no dia seguinte à lua nova, bebi a infusão de sananga. Vinte minutos depois, fui tomado por uma onda de frio. Fiquei gelado até os ossos. Comecei a transpirar grandes gotas de suor frio, a tal ponto que tive que torcer minha camiseta várias vezes. Após seis horas bem desagradáveis, a sensação de frio passou, mas eu tinha perdido toda a coordenação motora. Não conseguia andar sem cair. Por cinco minutos, vi uma enorme carreira de luzes multicoloridas no céu – minhas únicas alucinações. A falta de coordenação durou 48 horas. Na manhã do terceiro dia, minha dor nas costas desapareceu e, até hoje, nunca mais voltou.

Pessoalmente, não daria crédito a esse tipo de coisa se não tivesse vivido. Não procuro, então, contando isso, convencer quem quer que seja da eficácia da sananga. Por outro lado, no que me toca, apenas posso dizer que Abelardo praticou comigo uma magia que mais parecia bioquímica do que “psicossomática”. (p. 34 – 35)

Uma atitude comum para as pessoas de Quirishari era ensinar pelo exemplo, e não pela explicação. Os pais, então, chamavam os filhos a acompanhá-los no que faziam. Desconhecia-se a nossa frase habitual “deixa o papai em paz que ele está trabalhando”. Não eram bem vistas as explicações abstratas. Quando uma ideia parecia realmente ruim, liquidava-se o assunto dizendo: “Es pura teoría”. As duas palavras-chave que serviam para tudo em nossas conversas eram practica e tactica – provavelmente por serem essenciais para a vida na floresta tropical. […]

Após cerca de um ano em Quirishari, eu tinha consciência de que o senso prático dos meus anfitriões era bem mais confiável, naquele ambiente, que a minha compreensão academicamente informada, da realidade. O saber empírico dos ashaninka era incontestável. Em contrapartida, as explicações que davam sobre a origem desse saber eram, invariavelmente, extravagantes e, para mim, inacreditáveis. Por exemplo, em duas ocasiões Carlos e Aberlado me mostraram uma planta que curava a picada, potencialmente mortal, da cobra jergón. Observei com atenção a planta, achando que a informação poderia vir a ser útil. Para que eu não esquecesse, os dois indicaram as manchas brancas que se viam no caule e pareciam presas de cobra. Mais tarde perguntei a Carlos como as virtudes da planta contra a jergón tinham sido descobertas e ele disse ser “graças a essas presas, que são o sinal que a natureza deu”.

De novo, achei que se fosse verdade a ciência ocidental saberia. Além disso, não podia acreditar que houvesse uma correspondência entre um réptil e um arbusto, como se por trás dessas duas espécies se escondesse uma inteligência comum, comunicando-se por meio de símbolos visuais. A meu ver, meus amigos “animistas” apenas interpretavam, com incontestável requinte, coincidências de ordem natural. (p. 36-37)

Um dia, na casa de Carlos, presenciei uma cena no limite do surreal. Um homem, chamado Sabino, apareceu com um bebê doente nos braços e dois cigarros de marca peruana numa mão, pedindo que Carlos curasse a criança. Este último acendeu um dos cigarros e, com grandes inalações e exalações, se pôs a soprar fumo em cima do bebê. Depois de chupar um ponto preciso na barriga da criança, ele cuspiu e disse ser aquilo o mal. Repetiu a operação algumas vezes e, mais ou menos três minutos depois, declarou resolvido o problema. Sabino saiu, depois de muito agradecer. Carlos, colocando o segundo cigarro atrás da orelha, disse: “Volte sempre”.

Naquele momento, pensei comigo mesmo que, no final das contas, minha credulidade tinha limites e ninguém me faria acreditar que cigarros industriais pudessem realmente curar uma criança doente. Pelo contrário, o fumo soprado em cima dela só podia agravar o seu estado.

Alguns dias depois, numa das nossas conversas gravadas, voltei à questão:

Quando se faz uma cura, como aquela de outro dia, para o Sabino, como o tabaco age? Sendo você quem fuma, como ele pode curar a pessoa que não fuma?

Como sempre digo, o tabaco tem a propriedade de mostrar a realidade das coisas. Eu consigo vê-las como são. E ele expulsa todas as dores.

Entendo, mas como se descobriu essa propriedade? O tabaco dá espontaneamente na floresta?

Há um lugar, Napiari, com grandes quantidades de tabaco.

Onde fica?

No Perene. Soubemos do seu poder pelo ayahuasca, esse outro vegetal, porque é a sua mãe.

Quem é a mãe de quem? O tabaco ou o ayahuasca?

O ayahuasca.

O tabaco é seu filho?

É seu filho.

Porque o tabaco é menos forte? É por isso?

Menos forte.

Você disse que tanto o tabaco quanto o ayahuasca contêm Deus?

Disse.

E disse que as almas gostam de tabaco. Por quê?

Porque o tabaco tem o seu método, a sua força. Ele atrai os maninkari. É o melhor contato que há para a vida de um ser humano.

E essas almas, como são?

Eu sei que toda alma, viva ou morta, é como as ondas de rádio que voam pelos ares.

Onde?

Nos ares. Isso quer dizer que você não vê as almas, mas elas estão por aqui, como as ondas de rádio. Quando você liga o rádio, consegue captá-las. O mesmo se passa com as almas: com o ayahuasca e o tabaco, conseguimos vê-las e ouvi-las.

E quando o ayahuasquero canta, como é possível que se ouça uma música como nunca se ouviu, de tão bonita?

Bom, isso atrai os espíritos e, como eu sempre disse, se pensarmos bem… (longo silêncio). É como um gravador: você coloca ali, liga e ele começa a emitir som: hum, hum, hum, hum, hum. E você começa a cantar, acompanhando. Quando canta, já está no processo de compreensão, pode seguir a sua música, porque ouviu a sua voz. É como acontecem as coisas e é possível ver. Como da outra vez, quando Ruperto cantava. (p. 37-38)

– Tabaquero e ayahuasquero são a mesma coisa.

A mesma coisa.

Bom, gostaria também de saber por que vemos cobras ao beber ayahuasca.

Porque a mãe do ayahuasca é uma cobra. Como vê, têm a mesma forma.

Mas achei que o ayahuasca fosse a mãe do tabaco…

E é.

Nesse caso, quem é o verdadeiro dono dessas plantas?

O verdadeiro dono dessas plantas é como Deus, são os maninkari. São eles que nos ajudam. Têm uma existência que não conhece fim nem doença. Por essa razão é que dizem ao ayahuasquero que enfia a cabeça no quarto escuro: “Se você quer que eu o ajude, faz as coisas bem feitas; eu lhe dou poder não para proveito pessoal, mas para o bem de todos”. Então, é claramente onde reside a força. Acreditando nas plantas, você terá mais vida. É o caminho. É por isso que se diz existir um caminho muito estreito, pelo qual ninguém pode passar, nem com um facão. Não é um caminho reto, mas é um caminho. Creio nessas palavras, assim como naquelas que dizem que a verdade não está à venda, que a sabedoria pode ser sua, mas é feita para ser compartilhada. Ou seja, é errado fazer comércio dela para ganhar dinheiro. (p. 41-42)

Capítulo 4 – Enigma no Rio

Durante esse período, aprendi a dar palestras públicas para explicar por que é ecologicamente útil deixar a floresta tropical aos cuidados dos seus habitantes ancestrais. Nessas apresentações, mostrava a racionalidade da utilização que faziam desse frágil meio ambiente, insistindo, por exemplo, no papel-chave que a policultura e o desmatamento de pequenas superfícies têm nas técnicas agrícolas indígenas. Mas quanto mais falava, mais tinha consciência de estar omitindo boa parte do que pensava.

O que eu não dizia é que os índios em questão pretendem que o saber empírico deles, atestado pela ciência, vem de alucinações induzidas por certas plantas. Eu mesmo, supervisionado por eles, havia experimentado esses vegetais alucinógenos e o encontro com as cobras fluorescentes tinha alterado profundamente a minha forma de considerar a realidade. Alucinando, eu havia aprendido coisas importantes para mim – a começar pelo fato de que sou apenas um ser humano, intimamente ligado às outras formas de vida, e que a verdadeira realidade é mais complexa do que os nossos olhos nos fazem habitualmente ver e crer. E estava convencido disso. (p. 46-46)

Ao voltar do Rio, tinha certeza de que escreveria este livro. Minha intenção inicial era a de simplesmente levantar o enigma. Esperava estabelecer uma espécie de cartografia exploratória desse impasse epistemológico: servimo-nos do saber dos povos indígenas, mas, quando se trata da origem desse saber, damos meia-volta.

Na verdade, ao tomar ayahuasca em Quirishari eu já havia passado pelas placas de sinalização que diziam “está ultrapassando os limites da ciência” e chegado a um território irracional, subjetivo, assustador e fascinante. Sabia, então, ser um falso impasse, com uma saída que o olhar racional não percebia e dando para um mundo de espantosa força.

Apesar disso, nem por um segundo imaginei encontrar solução para o enigma, convencido de se tratar de um fenômeno paradoxal por natureza, fadado ao não esclarecimento. (p. 50)

Capítulo 5 – Estereogramas

[…] a escrita é uma maneira de prolongar o pensamento […] (p. 51)

Para mim ficara claro que, em suas visões, os ayahuasqueros têm acesso a uma informação empiricamente verificável sobre as propriedades das plantas. Pensei, então, que o enigma do saber alucinatório podia se resumir a uma única questão: tal informação provém do interior do cérebro humano, como exige o ponto de vista científico, ou do mundo exterior, das plantas, como afirmam os xamãs? (p. 58)

De fato, há DNA no interior do cérebro humano, assim como no mundo exterior das plantas, uma vez que a molécula da vida, contendo a informação genética, é a mesma para todas as espécies. O DNA pode mesmo ser considerado fonte de informação tanto externa quanto interna […]. (p. 62)

Capítulo 6 – Correspondências

Mais ou menos por toda Amazônia ocidental, o ayahuasca é consumido à noite, geralmente em completa escuridão, por pessoas em jejum, devendo ter evitado alimentos gordurosos, salgados doces ou picantes, assim como bebidas alcoolicas e relações sexuais. A sessão alucinatória é normalmente conduzida por uma pessoa experiente, que dirige as visões com cantos.*

Em muitas regiões, os ayahuasqueros aprendizes isolam-se por vários meses na floresta, ingerindo grandes quantidades de alucinógenos e alimentando-se sobretudo com banana e peixe. São alimentos particularmente ricos em serotonina e o consumo a longo prazo do alucinógeno diminui precisamente os níveis desse neurotransmissor no cérebro. (p. 67)

* A maioria dos autores diz que o ayahuasca é tomado numa completa escuridão, o que garante certa tranquilidade e acentua as visões […]. Segundo Gebhart-Sayer (1986), os xamãs shipibo-conibo esperam que todos os fogos e lâmpadas dos vizinhos sejam apagados para beberem o ayahuasca “pois a luz danifica os olhos durante as visões” (p. 193). Mas Reichel-Dolmatoff (1972, p. 100) assinala que os tukano bebem o ayahuasca à luz de uma tocha vermelha. Luna (1986, p. 145) relata que um dos seus entrevistados participara ocasionalmente de sessões noturnas à luz do luar e Whitten (1976, p. 155) descreve uma sessão ao redor de uma “fogueira em fraca combustão”.

Ao percorrer os escritos de autoridades em mitologia, descobri com surpresa que o tema dos seres duplos de origem celeste e criadores de vida está muito espalhado pela América do Sul e até mesmo pelo resto do mundo. A história que os ashaninka contam sobre Avíveri e sua irmã, que criam a vida através da transformação, não passava de uma das centenas de variantes sobre o tema dos “gêmeos divinos” – exatamente como a célebre serpente emplumada dos astecas, Quetzalcoatl, símbolo da “energia vital sagrada”, e o seu irmão gêmeo Tezcatlipoca, ambos filhos da serpente cósmica Coatlicue.

[…] passagem do livro de Lévi-Strauss: “(…) em asteca, a palavra coatl tem o duplo sentido de ‘serpente’ e ‘gêmeo’. O nome Quetzalcoatl pode então ser ao mesmo tempo interpretado com ‘Serpente emplumada’ ou ‘Gêmeo magnífico’”. Uma serpente dupla, de origem cósmica, símbolo da energia vital sagrada?! Entre os astecas?! (p. 69)

Chegando em casa, achei que precisava caminhar na floresta para organizar as ideias. Comecei o passeio recapitulando a história desde o início e procurava manter um olho voltado para o DNA e outro para o xamanismo, querendo realçar os pontos de convergência… Passei em revista os diferentes pontos comuns até então detectados e depois caminhei em silêncio. Estava sentindo um bloqueio. Pensando nesse bloqueio mental, lembrei-me dessa frase de Carlos Pérez Shuma: “olhe para a FORMA”.

Pela manhã, na biblioteca, eu havia consultado várias enciclopédias sobre DNA e, de passagem, notado que, na maioria das vezes, a dupla hélice era descrita como uma escada, ou uma escada de corda entrelaçada, ou uma escada em espiral. Imediatamente em seguida, perguntando-me se havia escadas do lado do xamanismo, outro estalo: “AS ESCADAS! As escadas dos xamãs, ‘símbolos da profissão’ (segundo Métraux), presentes nos temas xamanísticos do mundo inteiro (segundo Eliade)!

Voltei correndo para o escritório e, mergulhando no livro de Mircea Eliade, O xamanismo e as técnicas arcaicas do êxtase, descobri existirem “inúmeros exemplos” de escadas xamânicas, nos cinco continentes, ora “escadas rotativas”, ora “escadarias”, ora “cordas entrelaçadas”. Na Austrália, no Tibete, no Nepal, no antigo Egito, nas Américas do Sul e do Norte “o simbolismo da corda, assim como o da escada, implica necessariamente a comunicação entre o céu e a terra. Através de uma corda ou de uma escada (como também de um cipó, uma ponte, uma cadeia de flechas etc), os deuses descem à terra e os homens ascendem ao céu”. Eliade inclusive cita o Antigo Testamento, na passagem em que Jacó sonha com uma escada cujo topo atinge o céu e pela qual “os anjos do Senhor sobem e descem”. Segundo Eliade, a escada xamânica é a forma primeira da noção de eixo do mundo, ligando os diferentes níveis do cosmo, e que descobrimos em muitos mitos da criação sob a forma de uma árvore.

Até então, eu tratava a obra de Eliade com certa desconfiança, mas de repente vi-a sob uma nova luz. Comecei a percorrer ao acaso seus outros escritos que tinha comigo e descobri neles serpentes cósmicas! Agora entre os aborígenes australianos, que consideravam a criação da vida como obra de um “personagem cósmico relacionado à fecundidade universal, a Cobra do Arco Íris”, com poderes simbolizados por cristais de quartzo. Ora, os desana da Amazônia colombiana muitas vezes representavam a anaconda cósmica, o criador da vida na terra, acompanhada de um cristal de quartzo.

Como era possível que aborígenes australianos, separados do resto da humanidade há quarenta mil anos, e bebedores de ayahuasca amazônicos contassem a mesma história?! (p. 69-71)

“(…) Em toda parte onde a natureza é venerada como animada em si própria, ou seja, inerentemente divina, a serpente é reverenciada como seu símbolo”. (p. 72)

Campbell distingue dois importantes pontos de ruptura na trajetória mitológica da serpente cósmica. Por um lado, “no contexto do patriarcado dos hebreus da Idade de Ferro do primeiro milênio a.C., a mitologia adotada das civilizações precedentes, do neolítico e da Idade do Bronze (…) é virada do avesso, tornando o seu argumento o contrário exato do original”. Desse modo, no jardim do Éden temos elementos comuns a diversas narrativas da criação: a serpente, a árvore e os seres duplos. Porém, pela primeira vez, a serpente, “antes venerada como divindade no Levante, desde pelo menos sete mil anos antes da composição do Livro do Gênese”, assume papel de vilão. Javé, que a substitui no papel do criador, acaba por submeter, um pouco mais tarde, “essa serpente do mar cósmico, o Leviatã”.

Para Campbell, a segunda reviravolta ocorre na mitologia grega, com Zeus assegurando o reino dos deuses patriarcais do Olimpo, submetendo a enorme serpente Tífon, filha de Gaia e encarnação das forças da natureza. (p. 72-73)

A cultura ocidental rompeu com a serpente/princípio vital, isto é, com o DNA, desde que adotou um ponto de vista exclusivamente racional. Os outros povos que praticam o que chamamos de ‘xamanismo’ se comunicam com o DNA. Paradoxalmente, foi a parte da humanidade que se separou da serpente que conseguiu, três mil anos mais tarde, descobrir a existência material do DNA, em laboratório.

Parece existirem técnicas diferentes, em lugares diferentes, para aceder ao conhecimento do princípio vital. Em seus transes, os xamãs conseguem, de certo modo, reduzir sua consciência ao nível molecular. É precisamente o que descreve Reichel-Dolmatoff, comentando suas visões diretamente no gravador, depois de ter tomado ayahuasca (‘Pareciam […] microfotografias de plantas, preparações microscópicas coloridas; como, às vezes, num livro de patologia’).

É como eles aprendem a combinar os hormônios cerebrais com os inibidores da monoamina oxidase ou descobrem quarenta fontes diferentes de paralisantes musculares, ao passo que a ciência tem sido capaz apenas de imitar as suas moléculas. É no sentido literal que eles dizem ter recebido dos seres criadores da vida a receita do curare. Devem ser tomadas ao pé da letra as suas palavras, quando dizem que o seu saber tem origem em seres que veem nas alucinações.

Segundo xamãs do mundo inteiro, a comunicação com os espíritos se estabelece pela música. Para os ayahuasqueros, é praticamente inconcebível entrar no mundo dos espíritos e permanecer em silêncio. Angelika Gebhart-Sayer fala em ‘música visual’ projetada pelos espíritos aos olhos do xamã – espécie de imagens tridimensionais que se transformam em som e que o xamã só tem que imitar, emitindo melodias correspondentes. Seria preciso verificar se o DNA emite som… (p. 74-75)

Foi nessa altura que me lembrei de Michael Harner. Ele não tinha mencionado se tratar de uma informação reservada aos mortos e moribundos? Um medo irracional me invadiu e senti a urgência de compartilhar essas ideias com alguém mais. Telefonei a um velho amigo, também escritor, e, um tanto descontroladamente, fiz um resumo das correspondências que havia encontrado naquele dia: os gêmeos, as serpentes cósmicas, as escadas de Eliade, as duplas hélices de Campbell e as de Amaringo. Conclui dizendo: “Há uma última correlação, um pouco menos clara que as outras. Os espíritos vistos nas alucinações são imagens tridimensionais e sonoras e se expressam numa linguagem de imagens tridimensionais e sonoras. Ou seja, são constituídos por sua próprias linguagem, como o DNA”.

Longo silêncio do outro lado da linha e, em seguida, meu amigo disse:

– Entendo, e assim como o DNA, eles se duplicam para comunicar a informação.

– Espere um pouco – respondi –, vou tomar nota disso que acaba de dizer.

– Justamente, em vez de falar comigo, você devia escrever isso – ele devolveu.

Segui o conselho e, escrevendo sobre a relação entre os espíritos alucinatórios feitos de linguagem e o DNA, me lembrei do primeiro versículo do evangelho de são João: “No início, havia o logos” – a palavra, o verbo, a linguagem.

Naquela noite, foi difícil pegar no sono. (p. 77-78)

Francis Crick, ganhador de um prêmio Nobel pela codescoberta do DNA, sugeria que a molécula da vida era de origem extraterrestre – exatamente como os povos “animistas”, ao afirmarem que o princípio vital é uma serpente cósmica!

Eu nunca tinha ouvido falar da hipótese de Crick, chamada “panspergia dirigida”, mas sabia ter acabado de encontrar uma nova correspondência, bastante séria, entre a ciência e o complexo formado pelo xamanismo e a mitologia. […]

Pela teoria científica habitual sobre a origem da vida, pequenas moléculas chamadas aminoácidos teriam se associado aleatoriamente, numa espécie de “sopa primordial”, formando os primeiros microorganismos. É uma teoria enraizada em teses evolucionistas elaboradas na metade do século XIX, segundo as quais o conjunto das espécies evoluiu no tempo, partindo dos organismos unicelulares mais simples e culminando, no final de um processo muito longo de seleção natural, nos organismos “superiores” mais complexos. Se, partindo das bactérias, com o devido tempo pôde-se chegar ao ser humano, era razoável acreditar que moléculas desorganizadas também pudessem levar, no decorrer de suas inúmeras colisões cegas, a uma simples célula.

Crick, no entanto, considerava que essa teoria do acaso criador tinha um sério defeito: tinha sido elaborada antes da ciência ter compreendido, a partir da década de 1950 e graças aos progressos da biologia molecular, que os mecanismos básicos da vida não são apenas idênticos para todas as espécies, como são também extremamente complexos, e, quando se tenta calcular, mesmo de forma grosseira, a probabilidade da emergência fortuita de tal complexidade, obtêm-se números inconcebivelmente pequenos, para não dizer nulos.

Assim sendo, a molécula do DNA, no entanto exímia em armazenar e duplicar informação, é incapaz de se constituir sozinha. São as proteínas que fazem esse trabalho, mas elas são incapazes de se reproduzir sem a informação contida no DNA. A vida, então, é uma incontornável síntese desses dois sistemas moleculares. Ultrapassando a famosa questão do ovo e da galinha, Crick calculou a probabilidade de uma única proteína (capaz de participar da construção da primeira molécula de DNA) ter emergido ao acaso. Ora, em todas as espécies vivas as proteínas são exatamente constituídas pelos mesmos vinte aminoácidos, que são pequenas moléculas. A proteína média é uma cadeia longa, feita de aproximadamente duzentos aminoácidos, escolhidos entre esses vinte e alinhados numa devida ordem. Pelas leis combinatórias, existe uma probabilidade em vinte, multiplicado duzentas vezes por si mesmo, para uma proteína específica emergir por acaso. Esse número, que se escreve 20²ºº e equivale aproximadamente a 10 elevado a 260, é incomensuravelmente superior ao número de átomos no universo observável (que é de 10 elevado a 80)! (p. 80-81)

Ao tirar os olhos do livro de Crick, vi que já estava escuro lá fora. Sentia uma estranha mistura de espanto e agitação. Como um detetive míope que segue a pista debruçado em cima da sua lupa, eu tinha caído num buraco sem fundo. Há meses fazia um esforço enorme para desvendar o enigma do saber alucinatório dos povos indígenas da Amazônia ocidental, procurando com obstinação a passagem oculta no aparente beco sem saída. Apenas duas semanas antes vislumbrara pela primeira vez a pista do DNA, no livro de Harner. Desde então, havia desenvolvido a hipótese sobretudo de maneira intuitiva. Meu objetivo certamente não era elaborar qualquer nova teoria sobre a origem da vida. E, no entanto, esse pobre antropólogo que mal sabe nadar, flutuava num oceano cósmico cheio de serpentes microscópicas e bilíngues. (p. 82)

Capítulo 7 – Mitos e Moléculas

Eu já não precisava mais dessas precisões genéticas para ter certeza de que os povos praticantes de xamanismo afirmavam a unidade oculta da natureza, confirmada pela biologia molecular, por terem acesso, usando uma via indireta, precisamente à realidade da biologia molecular. (p. 86)

Às vezes, a serpente alada toma a forma de um dragão, o animal mítico e duplo por excelência, que vive na água e cospe fogo. Segundo o Dicionário dos símbolos, o dragão representa “a união de dois princípios opostos. Sua natureza andrógina é mais claramente simbolizada como Ouroboros, a serpente-dragão que “encarna a união sexual permanentemente autofecundadora, como a sua cauda enfiada na boca indica” (p. 89).

Nota da p. 91 (nota 92): […] Eliade (1949) escreve: “Existem inúmeras lendas e mitos representando Serpentes ou Dragões que controlam as nuvens, vivem em charcos e abastecem o mundo de água” (p. 154-5). Segundo Mundkur (1983): “Entre os aborígenes da Austrália, a crença mítica mais disseminada cita uma gigantesca Serpente do Arco-íris, uma criatura primordial associada quase sempre aos poderes befazejos da fertilidade e da água. Ela (às vezes ele) é a fonte dos cristais mágicos de quartzo, chamados kimba, dos quais o homem-medicina retira o seu poder” (p. 58). Segundo Chevalier e Gheerbrant (1982): os infernos e os oceanos, a água primeva e a terra profunda formam uma só matéria-prima, uma substância primordial, que é a da serpente. Espírito da água primeva, ela é o espírito de todas as águas, as subterrâneas, as que correm à superfície da terra, ou as celestes” (p. 869). Davis (1986) escreve sobre Damballah, a Grande Serpente do mito haitiano: “Ela gerou a criação na Terra, serpenteando pelas encostas de lava derretida para esculpir os rios, que, como veias, se tornaram os canais por onde fluiu a essência de toda a vida. Forjou metais no calor abrasador e, erguendo-se novamente ao céu, lançou raios sobre a terra que geraram as pedras sagradas. Então estendeu-se ao longo do caminho palmilhado pelo Sol e partilhou a sua natureza. No interior da sua pele em camadas, a serpente reteve a fonte da vida eterna e a partir do zênite largou-a nas águas que encheram os rios que nutririam as pessoas. Quando a água atingiu a terra, surgiu o Arco-íris e a serpente tomou-o como esposo. O amor os entrelaçou numa hélice cósmica que abarcava os céus” (p. 177). Davis (1996) discute as noções cosmológicas dos índios kogi, tal como foram relatadas por Dolmatoff: “No começo, havia apenas escuridão e água. Não existia Terra nem Sol nem Lua nem nada que fosse vivo. A água era a Grande Mãe. Era o espírito no interior da natureza, a fonte de todas as possibilidades. Era vida em formação, vazio, pensamento puro. A água assumiu muitas formas. Como mulher, sentou-se numa pedra negra no fundo do mar. Como serpente, circundava o mundo. Era filha do Senhor do Trovão, a Mulher-Aranha cuja teia abraçava os céus. Como Mãe do Gelo, vivia numa lagoa escura no alto da Sierra. Como Mãe do Fogo, habitava em todos os lares. Na primeira madrugada, a Grande Mãe começou a pensar. Sob a forma de serpente, colocou um ovo no vazio e esse ovo se tornou o universo” (p. 43) – ver também Reichel-Dolmatoff (1987). A propósito do simbolismo da serpente, Bayard (1987) escreve: “Na relação com as profundezas da água primeva e com a vida, as serpentes se entrelaçam e estabelecem o nó da vida, o mesmo que encontramos na via osiriana da concepção druida do Nwyre (…)” (p. 74).

Uma linha de DNA é muito menor que a luz visível aos seres humanos. Mesmo driblando os limites do olho nu com o mais poderoso dos microscópios óticos, não se pode distingui-la: o DNA é cerca de 120 vezes mais fino que o menor comprimento de onda luminosa visível.

O núcleo de uma célula tem, aproximadamente, o tamanho de dois milionésimos de uma cabeça de alfinete. O DNA, com dois metros de comprimento, se compacta no interior desse volume minúsculo, enrolando-se infinitamente em torno de si mesmo, ou seja, conciliando comprimento extremo e pequenez infinitesimal, como as serpentes mitológicas.

Um ser humano médio é composto por cerca de cem bilhões de células. Isso significa que existem, aproximadamente, duzentos bilhões de quilômetros de DNA num corpo humano – o que corresponde a setenta viagens de ida e volta entre Saturno e o Sol. O leitor poderia viajar a vida inteira num Boeing 747, em velocidade máxima, e sequer cobriria um centésimo dessa distância. O nosso DNA pessoal pode circundar a Terra cinco milhões de vezes.

Todas as células do mundo – humanas, animais, vegetais ou bacterianas – contêm DNA. Além disso, todas estão cheias de água salgada, com um teor de sais minerais que se assemelha ao dos oceanos: choramos e transpiramos, basicamente, água do mar. O DNA, então, banha na água, que desempenha um papel crucial no estabelecimento da sua forma e, assim, da sua função. De fato, é o meio líquido que confere ao DNA a sua forma de escada em caracol, porque suas quatro bases (adenina, guanina, citosina e timina) são insolúveis na água e se viram para o interior da molécula, de modo a formar, associando-se aos pares, os degraus da escada. E, depois, enrolam-se numa pilha em espiral, de forma a evitar ao máximo o contato com o meio úmido que as cercam. A forma de escada em espiral do DNA é uma consequência direta do ambiente líquido da célula. O DNA está associado à água, assim como as serpentes míticas. (p. 93)

No interior do núcleo, o DNA se enrosca e se estende, se contorce e ondula. Frequentemente os cientistas comparam a forma e os movimentos dessa longa molécula com os de uma serpente. O biólogo molecular Christopher Wills, por exemplo, escreve: “As duas cadeias de DNA parecem duas cobras enroladas em si mesmas, numa espécie de ritual amoroso”.

Resumindo, o DNA é mestre em transformação na forma serpentina, vivendo na água e sendo, ao mesmo tempo, muito comprido e minúsculo, simples e duplo.

Exatamente como a serpente cósmica.

Eu sabia que muitos povos xamânicos utilizam imagens diferentes da “serpente cósmica” para explicar a criação da vida, mencionando, sobretudo, uma corda, liana, escada ou escadaria de origem celestial, ligando céu e terra.

Mircea Eliade mostrou que essas diferentes imagens formam um tema comum, que ele chamou axis mundi, eixo do mundo, encontrado nas tradições xamânicas de todo o planeta. Segundo Eliade, o axis mundi abre acesso ao além e ao saber xamânico, por existir uma passagem paradoxal, normalmente reservada aos mortos, mas que os xamãs conseguem atravessar mesmo vivos, passagem em geral guardada por uma serpente ou um dragão. Para Eliade, o xamanismo é o conjunto de técnicas que permitem abordar essa passagem, chegar ao eixo, adquirir o saber a ele associado e voltar – na maior parte das vezes com o objetivo de curar pessoas. (p. 97-98)

Notas da p. 99 (nota 102 e 103):

[102] […] “O motivo da corda do céu, que já tínhamos encontrado entre os campa e os machiguenga, e encontramos agora entre os piro, está muito difundida em tribos da floresta tropical. Sob uma ou outra forma, é assinalado pelos kaxinawa, marinawa, jívaro, canelo, quijo, yagua, huitoto, diversas tribos cuiana (korobohana, taulipang e warrau), bacairi, umotina, bororo, mosetene e tiatinagua; é também assinalado entre os lengua, mataco, toba e vilela da região do Chaco (…) o conceito de escada celestial é claramente equivalente ao de corda celeste e foi assinalado entre os conibo, tucuna e shipaya; a árvore celeste é também mencionada pelos sherente, cariri, chamaco, mataco, mocovi e toba – entendida, em todos os casos, como tendo, no passado, ligado o céu e a terra. A extensão desse motivo pode ainda mais se ampliar se nos dermos ao trabalho de reconhecer como equivalente a noção de uma cadeia de flechas indo até o céu, imagem que encontramos entre os conibo, shipibo, jívaro, waiwai, tupinambá, chiriguano, guarayú, cumana e mataco” (Weiss, p. 470). Mais adiante, Weiss observa: “(…) é particularmente interessante observar que os taulipang identificam a Corda Celeste com a mesma liana com uma forma peculiar em escada que meus informantes campa adotaram como sendo a sua inkíteca” (p. 505).

[103] Bayard (1987) escreve em seu livro O Simbolismo do caduceu: “Em primeiro lugar, devemos reter a associação de elementos que se encontram em todas as civilizações, da Índia ao Mediterrâneo, passando pelo Egito, Palestina e Mesopotâmia suméria: a pedra, a coluna, a árvore truncada e sagrada, com uma ou duas serpentes entrelaçadas. A varinha se associa ao culto a árvore ou da pedra sagrada, é a moradia da divindade, de onde irradia e transmite o seu poder àquele que por ela vem rezar (…) O culto da serpente esteve então ligado à arte de curar desde os tempos mais remotos. Mesmo na pré-história pode-se encontrar esse culto estelo-solar” (p. 161-3). A propósito do caduceu, Chevalier e Gheerbrandt (1982) escrevem: “A serpente tem um duplo aspecto simbólico, benéfico e maléfico, apresentado pelo caduceu, por assim dizer, como o antagonismo e o equilíbrio; esse equilíbrio e polaridade são sobretudo os das correntes cósmicas, retratadas mais geralmente pela dupla espiral”; no esoterismo budista, por exemplo, “a vara do caduceu corresponde ao eixo do mundo e as serpentes ao kundalini”, essa energia cósmica que se encontra no interior de cada ser (p. 153-5). […] Segundo Bayard (1987), as duas serpentes enroladas do caduceu, o ying/yang do T’ai Chi e a suástica ou cruz gamada dos hindus, simbolizam “uma força cósmica, com direções de rotação invertidas” (p. 134). Sobre a equivalência entre o caduceu e o ying/yang, ver também Guénon (1962, p. 153).

Métraux explica ainda que esses xamãs bebem “uma infusão preparada com um cipó cuja forma sugere uma escada”. É verdade, a liana do ayahuasca é muitas vezes descrita como uma escada ou mesmo uma dupla hélice (p. 101).

Os xamãs compreendem muito claramente o significado dessas metáforas, que eles chamam tsai yooshtoyhto, expressão que Townsley traduz como “linguagem-twisting-twisting”, em inglês.

A palavra twist tem a mesma raiz que two, dois, e twin, gêmeo. Assim, mais do que torcido, torcionado ou enrolado, twisted tecnicamente significa “duplo e enrolado em volta de si mesmo”. Aquilo que Townsley denomina twisted language corresponde então à linguagem dupla e entrelaçada.

Por que motivo os xamãs yaminawa se servem dessa maneira de expressão? Um deles diz: “Com os meus koshuiti eu quero ver; ao cantar, examino cuidadosamente as coisas; a linguagem dupla e entrelaçada me aproxima delas, mas não demais; com palavras normais, eu me choco contra, mas com palavras duplas e entrelaçadas eu rodo à sua volta e consigo vê-las claramente”.

Para Townsley, todas as relações xamânicas com os espíritos são “deliberadamente construídas de maneira elíptica e multi-referencial, para refletir a natureza refratária dos seres que são o seu objeto”. E ele conclui: “Os yoshi são seres verdadeiros que, ao mesmo tempo, ‘são e não são’ como as coisas que eles animam. Não têm uma natureza estável nem unitária e por isso, paradoxalmente, a linguagem dupla e entrelaçada que permite ‘vê-los à maneira deles’ é a única capaz de descrevê-los. A aproximação metafórica, nesse caso, não falseia as coisas, mas, pelo contrário, revela-se a única maneira de nomeá-las corretamente”. (p. 103)

Capítulo 8 – Os olhos da formiga

Numa bela tarde de primavera, sentado no jardim com meus filhos, com o sol brilhando e os passarinhos cantando nas árvores, pensei: eu que sou um puro produto da racionalidade do século XX, precisando de números e de moléculas para acreditar na realidade de uma coisa – e não de mitos –, via-me diante de números mitológicos relativos a uma molécula, dos quais não se podia duvidar. No interior do meu corpo mesmo, ali tomando sol, havia duzentos bilhões de quilômetros de DNA. Eu estava infinitamente conectado por cabos e até bem recentemente nem sabia disso! Esse número astronômico realmente significava apenas um “fato inútil, mas divertido”, como diriam alguns cientistas? Ou indicava que nosso DNA, pelo menos em suas dimensões, é cósmico?

Alguns biólogos descrevem o DNA como “uma forma antiga e superior de biotecnologia”, contendo, em igual volume, “até cem bilhões de vezes mais informação do que os nossos chips informáticos mais sofisticados”. Assim sendo, será possível, ainda, falar de “tecnologia”? Na verdade, sim, pois não há outra palavra para qualificar esse suporte informático capaz de se autoduplicar. A molécula de DNA, com uma dezena de átomos de espessura, constitui uma espécie de tecnologia última: é orgânica e tão miniaturizada que se aproxima dos próprios limites da existência material. (p. 108)

Minha experiência pessoal com as alucinações induzidas pelo ayahuasca era muito limitada, mas suficiente para sugerir uma pista. O ayahuasquero Ruperto Gomez, que me havia iniciado, comparava o preparado alucinógeno à “televisão da floresta”. E eu, de fato, vi, entre outras coisas, uma sequência de imagens alucinatórias desfilar numa velocidade inaudita, como se realmente se tratasse de uma transmissão vinda de fora do meu corpo, mas captada no interior da minha cabeça.

Eu não tinha conhecimento de qualquer mecanismo sobre o qual pudesse basear essa hipótese de trabalho, mas sei que o DNA é um “cristal aperiódico” que capta e transporta elétrons com eficiência e emite, em frequências ultrafacas e no limite do mensurável, fótons, isto é, ondas eletromagnéticas – e isso em maior escala que qualquer outra matéria viva. Eu dispunha, assim, de um responsável potencial pelas transmissões: a rede geral de vida baseada no DNA. (p. 114)

[…] a rede global da vida, à base de DNA, emite ondas de rádio ultrafracas, no limite do que é atualmente mensurável, que podemos, no entanto, perceber em estado desfocado, como nas alucinações ou sonhos. E como o cristal aperiódico do DNA se apresenta sob a forma de duas serpentes entrelaçadas, duas fitas, uma escada em espiral, uma corda ou cipó, vemos, em nossos transes, serpentes, escadas, cordas, cipós, árvores, espirais, cristais etc. E tendo em vista ser o DNA um mestre da transformação, podemos igualmente ver jaguares, jacarés, touros, ou qualquer outro ser vivo. Mas os apresentadores preferidos pela direção da televisão DNA são visivelmente as serpentes fluorescentes e gigantescas.

Isso me leva a crer que a serpente cósmica demonstra certa tendência narcisista – ou, pelo menos, parece obcecada pela própria reprodução, mesmo que apenas em imagem. (p. 120)

Capítulo 9 – Receptores e transmissores

O gosto dos maninkari pelo fumo sempre me parecera estranho. Até então eu percebia os “espíritos” como uma espécie de personagem imaginário que não podia realmente usufruir de substâncias materiais. Além disso, considerava o tabagismo um vício, sendo pouco provável que os espíritos (caso existissem) sofressem das mesmas toxicomanias que os seres humanos. Mas estava decidido a não deixar que dúvidas assim me impedissem. Pelo contrário, tomaria os xamãs ao pé da letra. E todos são categóricos: os espíritos têm um apetite quase insaciável por tabaco.

Comecei a explorar essa pista passando alguns dias na biblioteca. E inclusive telefonei várias vezes a um especialista em mecanismos neurológicos da nicotina, querendo aprofundar meus conhecimentos e assegurar-me de não estar criando conexões imaginárias – sendo a neurologia a última das minhas competências. Resumo o que vim a saber:

No cérebro humano, cada célula nervosa, ou neurônio, tem bilhões de receptores em sua superfície, que são proteínas especializadas no reconhecimento e captação de neurotransmissores específicos ou de substâncias semelhantes. Desse modo, a molécula de nicotina, que estruturalmente se assemelha ao neurotransmissor acetilcolina, encaixa-se bem no receptor previsto para ele em certos neurônios. Esse receptor, que atravessa a membrana da célula, é uma grande proteína que inclui não só uma “fechadura” (o ponto de acoplagem para as moléculas vindas do exterior) como também um canal que, em geral, está fechado. Quando uma chave é introduzida na fechadura – isto é, quando uma molécula de nicotina se acopla ao alto do receptor –, o portão do canal se abre, permitindo a entrada seletiva de um influxo de íons, ou átomos carregados eletricamente de cálcio e de sódio. Estes últimos disparam uma corrente ainda mal compreendida de reações elétricas no interior da célula, que culmina numa excitação do DNA, que, do núcleo do neurônio, ativa a transcrição de toda uma série de genes, sobretudo os que correspondem às proteínas constitutivas dos receptores nicotínicos.

Quanto mais nicotina dermos aos nossos neurônios, mais o DNA contido em seu interior ativa a construção de receptores para essa substância – dentro de certos limites, é claro. É como se explica, pensei, o apetite quase insaciável dos espíritos pelo tabaco: quanto mais recebem, mais querem! (p. 122-123)

O tabaco da Amazônia é cultivado sem fertilizantes químicos nem pesticidas e não contém nenhum dos ingredientes adicionados ao tabaco, tais como óxido de alumínio, nitrato de potássio, fosfatos de amônio, acetato de polvinilo e uma centena de outros, que chegam a dez por cento da matéria fumável. Durante a combustão, um cigarro libera cerca de quatro mil substâncias, a maioria tóxicas. Algumas inclusive radioativas, fazendo do cigarro a principal fonte de radiação na vida cotidiana do fumante médio. Com dois ou três maços por dia, ele absorve, segundo estimativas, o equivalente em radioatividade a cerca de duzentas e cinquenta radiografias pulmonares por ano. O fumo de cigarro está diretamente implicado em mais de vinte e cinco doenças graves, entre as quais 17 tipos de câncer. Na Amazônia, pelo contrário, o tabaco é considerado um remédio. Para “curandeiro” ou “xamã”, os ashaninka usam a palavra sheripiári. Tão velhos que sequer sabiam a idade que tinham, mas apesar das rugas traírem o passar dos anos, continuavam admiravelmente lúcidos e saudáveis. (p. 124)

Ao longo das minhas leituras, descobri, surpreso, que o comprimento de onda pelo qual o DNA emite esses fótons corresponde exatamente à banda estreita da luz visível (p. 129).

[…] segundo os pesquisadores que a mediram, apesar de sua intensidade corresponder “à de uma vela situada a uma dezena de quilômetros”, ela, ao mesmo tempo, exibe “um grau de coerência espantosamente elevado, comparável ao de um laser”. (p. 130)

Procurei então o meu amigo jornalista científico, que rapidamente me explicou: “Uma fonte de luz coerente como um laser dá uma sensação de cores vivas, de luminescência, assim como a impressão de profundidade holográfica”.

A explicação forneceu um elemento essencial: as descrições pormenorizadas de experiências alucinógenas com ayahuasca invariavelmente mencionam luzes vivas e coloridas. Da mesma maneira, segundo os autores sobre a dimetiltriptamina (p. 130).

Decidi então telefonar para o laboratório universitário de Fritz-Albert Popp, na Alemanha. Ele teve a gentileza de ceder algum tempo a um antropólogo desconhecido, fazendo pesquisa sobre o xamanismo alucinatório amazônico. Durante a conversa, que confirmou a maior parte das minhas impressões, perguntei se ele já havia considerado a possibilidade da existência de uma ligação entre a emissão de fótons pelo DNA e a consciência. E ele respondeu: “Já, a consciência pode ser constituída pelo campo eletromagnético formado pelo conjunto dessas emissões. Mas, como sabe, compreendemos ainda muito pouca coisa quanto às bases neurológicas da consciência”.

Ao consultar a literatura sobre biofótons, algo me deixou atônito: em quase todas as experiências realizadas para medir os biofótons, os pesquisadores utilizavam quartzo.

O quartzo é um cristal, ou seja, uma disposição extremamente regular de átomos que vibram a uma frequência muito estável. Tais particularidades fazem do quartzo um excelente receptor e emissor de ondas eletromagnéticas, razão pela qual ele é muito usado em rádios, relógios e na maioria das tecnologias eletrônicas. Os cristais de quartzo são também utilizados no xamanismo do mundo inteiro. Gerardo Reichel-Dolmatoff escreveu: “Os cristais de quartzo, ou cristais de rocha translúcida, têm desempenhado um papel fundamental nas crenças e nas práticas xamânicas em muitos momentos da história e em diversos pontos do mundo. […]”

Os xamãs da Amazônia, em particular, consideram que os espíritos podem se materializar, ficando invisíveis nos cristais de quartzo. Alguns sheripiari chegam inclusive a diariamente alimentar suas pedras com sumo de tabaco… (p. 132-133)

Apesar de tantas incertezas, gostaria de continuar a desenvolver a minha hipótese, propondo a seguinte ideia: e se o DNA, estimulado pela nicotina ou pela dimetiltriptamina, ativasse não só a sua emissão de fótons (que inundam a nossa consciência na forma de alucinações), mas também a sua capacidade de captar fótons da rede mundial formada pelo conjunto dos seres vivos à base de DNA? Isso significaria que a própria biosfera, que pode ser considerada “uma unidade mais ou menos plenamente interligada”, seria uma fonte de imagens. (p. 134)

Capítulo 10 – O ângulo cego da biologia

Minha hipótese sugere que o DNA descrito pelos cientistas corresponde às essências animadas, comuns a todas as formas de vida, às quais os xamãs se referem e com as quais se comunicam em transe. No entanto, a biologia moderna se fundamenta na ideia de que a natureza não tem inteligência nem objetivo, ou seja, não está animada por espírito algum nem pode se comunicar. (p. 136)

Os biológos pensaram, então, ter encontrado a verdade e não hesitaram em chamá-la “dogma”. Estranhamente, essa nova convicção quase não foi abalada pela descoberta, nos anos 1960, de um código genético que é o mesmo para todos os seres vivos e apresenta semelhanças gritantes com os sistemas humanos de codificação, ou línguas. Para transmitir informação, o código genético usa elementos (A, G, C e T) que individualmente não têm significado, mas que formam unidades de significação quando combinados, da mesma maneira que as letras formam palavras. O código genético contém “palavras” de 64 letras, todas com significado, incluindo dois sinais de pontuação. (p. 138)

Quando comecei a ler os textos recentes sobre DNA, escritos por biólogos moleculares, algumas descrições me deixaram boquiaberto. Eu estava em busca, é verdade, de coisas fora do comum, com tudo me levando a acreditar que o DNA e seu mecanismo são uma tecnologia sofisticadíssima de origem cósmica. Mas, ao devorar milhares de páginas de literatura biológica, foi um verdadeiro mundo de ficção científica que descobri, confirmando explicitamente minha ideia. Proteínas-enzimas são simplesmente descritas como “robôs miniaturizados” e as células como “fábricas”. Os ribossomos se apresentam como “computadores moleculares” e o próprio DNA como um “texto”, um “programa”, uma “língua” ou “dados”. Basta uma leitura literal de textos biológicos contemporâneos para chegar a conclusões demolidoras – e, mesmo assim, página a página constatei total ausência de espanto, por parte da maioria dos autores, para os quais a vida parecia continuar sendo um “fenômeno físico-químico normal”.

Um dos destalhes que mais me perturbavam era o comprimento astronômico do DNA contido no corpo humano: duzentos bilhões de quilômetros! Então pensava ser ele a corda celeste a que se referem os ashaninka: está dentro de nós e é bastante longa para ligar céu e terra. O que achavam os biólogos desse número cósmico? A maioria sequer o mencionava e os demais o registravam, em nota ou à margem de seus trabalhos, como “algo inútil mas divertido”. (p. 139)

Em biologia, essa questão parecia previamente respondida. O DNA é um “simples produto químico”, o ácido desoxirribonucleico, para ser mais exato. Pode-se descrevê-lo tanto como molécula quanto como linguagem (fazendo dele uma espécie de substância informacional da vida), mas não considerá-lo como sendo consciente, ou vivo, uma vez que os produtos químicos são por definição inertes.

Fiz-me a pergunta: como pode a biologia pressupor o DNA não consciente, sem nem mesmo compreender o funcionamento do cérebro humano, a sede da nossa consciência, também elaborada a partir de instruções contidas no DNA? Como pode a natureza não ser consciente, sendo nossa consciência fruto da natureza? (p. 141)

Capítulo 11 – “Por que levou tanto tempo?”

Os acordos da ECO 92, assinados pelos governos do mundo, receonhecem o valor dos conhecimentos dos povos indígenas em matéria de botânica e biodiversidade, além de afirmar a importância de remunerá-los “equitativamente”. Apesar disso, como creio ter mostrado nesse livro, o mundo ocidental não está pronto para se envolver num diálogo verdadeiro com esses povos, dado o bloqueio epistemológico que impede a ciência biológica de receber aquele saber.

A meu ver, tal incapacidade para o diálogo paradoxalmente constitui uma vantagem para os povos indígenas, dando-lhes algum tempo para que se preparem. De fato, se a hipótese aqui elaborada estiver correta (mesmo não coincidindo com os pressupostos atuais da biologia), isso significa que eles dispõem não só de preciosos conhecimentos sobre plantas e remédios específicos como também de uma verdadeira fonte insuspeitada de saber biomolecular, de valor financeiro inestimével, relevante principalmente para a ciência do futuro.

Quero voltar à Amazônia e conversar com representantes de organizações indígenas sobre as eventuais consequências da hipóteses apresentada neste livro. Entre outras coisas, direi que a ciência materialista está prestes a alcançar o saber xamânico mas que ela não tem freios, e sua sede de conhecimentos é guiada por fins comerciais que excluem as dimensões éticas e espirituais.

Cabe aos indígenas decidirem qual estratégia adotar. (p. 150)

De onde vem a vida? Talvez a resposta não possa ser conhecida para simples seres humanos. Era o que, há muito tempo, Chuang-Tzu dava a entender quando escreveu. “Há um começo. Há um começo que ainda não começou a ser. Há um começo que ainda não começou a ser um começo que ainda não começou a ser. Há o ser. Há o não ser. Há o não ser que ainda não começou a ser. Há o não ser que ainda não começou a ser um não ser que ainda não começou a ser. Subitamente, há o não ser. Acabo agora de dizer alguma coisa. Mas não sei se o que disse realmente disse alguma coisa ou não.”

No final, a sabedoria exige não só a investigação de inúmeras coisas, mas também a contemplação do mistério. (p. 165)

]]>
http://vidaboa.redelivre.org.br/2022/10/24/a-serpente-cosmica-o-dna-e-a-origem-do-saber/feed/ 0
Escute as feras http://vidaboa.redelivre.org.br/2022/10/20/escute-as-feras/ http://vidaboa.redelivre.org.br/2022/10/20/escute-as-feras/#respond Thu, 20 Oct 2022 13:18:14 +0000 http://vidaboa.redelivre.org.br/?p=3381

 

Trechos de “Escute as feras”, de Nastassja Martin. São Paulo: Editora 34, 2021.

Não existem mais absurdos, estranhezas, coincidências fortuitas. Existem apenas ressonâncias. (p. 16)

Eu me vejo novamente na iurta em Mílkovo, pouco tempo depois da minha chegada naquele verão, há quatro anos; a febre que me deixa de molho sobre a coberta de pele, Andrei e suas tisanas. O lugar entra em você, você vai ficar mais forte depois, ele tinha dito. Eu havia passado duas semanas, talvez três, enfurnada na iurta com ele, falando sobre o espírito dos animais, daqueles que nos escolhem antes mesmo que os encontremos. (p. 21)

Eu o ouço lembrando-me de nossas discussões durante meus delírios febris e alertando-me contra o espírito do urso, que me segue, que me espera, que me conhece. No entanto, ele não me detém. Ele não faz nenhum gesto para me impedir de subir os vulcões. E é por isso que Dária o recrimina. Que ele saiba, por mim, pelo urso, e que não faça nada. Que ele nunca tenha feito nada; ou melhor: que ele tenha dito tudo a uma fera que, por desafio, corria de todo modo para a sua perdição, ao encontro de sua iniciação, e que seja preciso a intervenção de um milagre para que ela sobreviva a tudo isso. Não, nada é culpa dele. O que ele fez: guiou meus passos para que eu fosse ao encontro do meu sonho.

Dária, ela também, sempre soube. Ela sabe quem me visita quando durmo; conto para ela de manhã cedo os ursos da minha noite, familiares, hostis, engraçados, perniciosos, afetuosos, inquietantes. Ela escuta em silêncio. Ri por me ver agachada nos arbustos de bagas com meus cabelos loiros que ficam por cima das folhagens, você tem como que uma pelagem, ela me diz toda vez. Ela compara o meu corpo musculoso com o da ursa, ela se pergunta qual das duas dorme na toca de seu duplo. Mas Dária tem alguma coisa que Andrei não tem, que Andrei nunca terá: ela é mãe. Uma mulher que conhece a dor em sua carne, a vida e a morte, e que mais do que tudo no mundo aspira a proteger aqueles que ama e a poupá-los do sofrimento. Dária também sabe ver entre os mundos. No entanto, ela nunca arrancaria um menino de seu ambiente familiar, ela não o levaria à floresta, não desenharia um círculo em torno dele dizendo você fique aí, não o confiaria ao mundo exterior durante uma lunação para que ele tecesse sob a pele as relações que mais tarde farão dele um homem. Esse é o papel do pai. De jogar o filho no mundo uma segunda vez. Não tenho pai desde a adolescência. Andrei de alguma forma se apoderou desse lugar que ficou vago, assumiu o papel daquele que inicia, empurrando a criança para fora da doçura e da evidência intrauterina. É precisamente por isso que Dária o detestará para sempre. (p. 22-23)

Mais tarde nessa noite, as linhas correm na página, eu escrevo e é um fluxo, uma evidência, escrevo porque estou profundamente afetada. Devo dizer que tenho dois cadernos de campo. Um é diurno. Ele é repleto de notas esparsas, descrições minuciosas, transcrições de diálogos ou de falas, opacos na maioria das vezes, até que eu volte para casa e confira a eles uma ordem; até que eu ordene esse amontoado de dados detalhados para fazer dele algo estável, inteligível, compartilhável. O outro é noturno. Seu conteúdo é parcial, fragmentário, instável. Eu o chamo de caderno preto, porque não sei definir bem o que vai dentro dele. O caderno diurno e o caderno noturno são a expressão da dualidade que me corrói; de uma ideia do objetivo e do subjetivo que preservo apesar de mim mesma. Eles são respectivamente o de dentro e o de fora; a escrita automática, imediata, pulsional, selvagem, que não tem outra vocação além de revelar o que me atravessa, um estado de corpo e alma um dado momento, e aquela, paradoxalmente menos bem-acabada, porém mais controlada, que será trabalhada em seguida para se tornar reflexiva, e que terminará nas páginas de um livro. Obviamente, depois do urso, nessa noite foi o caderno preto que eu peguei. (p. 26-27)

[No hospital] Não tenho nenhuma vontade de estar aqui, penso, detendo-me diante da grande porta de vidro. Entro mesmo assim. O cheiro, o linóleo, as cores, os uniformes, as senhas de espera no guichê de recepção, tudo me causa repulsa. (p. 48)

Há três anos, Dária me contou sobre a derrocada da União Soviética. Ela me disse, Nástia, um dia a luz se apagou e os espíritos retornaram. E voltamos para a floresta. Sobre meu trenó na noite gélida, deixo meu pensamento vagar em torno da frase. De onde venho a luz não se apagou e os espíritos fugiram. Tenho muita vontade de apagar a luz. Eu também, nessa noite, volto para a floresta. (p. 73)

A criança possui uma coisa que o adulto procura desesperadamente ao longo de toda a sua existência: um refúgio. São as paredes do útero com todos os nutrientes afluindo cotidianamente e que é preciso às vezes conseguir reconstruir em torno de si. Tenho a estranha impressão de que, quando fracassamos, o mundo procura nos levar de volta a esse lugar por meio de um golpe do destino, alguma coisa exterior nos faz retornar à vida interior num confinamento a portas fechadas a priori lúgube, mas na realidade salvador. Quatro paredes apertadas, uma porta pequena e contatos restritos – Victor Hugo na ilha, na paróquia diante do mar, compõe seus versos; Soljenítsin nos bosques do Vermont se recupera da história russa; Trótski em suas prisões escapa da morte e escreve; Lowry em sua cabana diante do mar compila a agitação do mundo no entanto invisível dali onde ele se encontra. O que faço de diferente daquilo que eles realizaram, na minha floresta sob o vulcão, de volta da quase-morte que me espreitou? O que faço senão ousar dar um passo para o lado para ver melhor, ver os sinais que pulsam em mim e que anunciam a Época, suas contradições, seu furor, sua tragédia e sua impossível reprodução? Vi o mundo demasiado alter do bicho; o mundo demasiado humano dos hospitais. Perdi meu lugar, procuro um entre-meio. Um lugar onde me reconstituir. Esse recolhimento deve ajudar a alma a se reerguer. Porque será muito necessário construir essas pontes e portas entre os mundos […]. (p. 75-76)

Eis nossa situação atual, a do urso e a minha. Nós nos tornamos um foco de atenção sobre o qual todo mundo fala, mas ninguém capta. É precisamente por essa razão que não paro de tropeçar em interpretações redutoras, até mesmo trivais, por mais bem-intencionadas que sejam: porque estamos diante de um vazio semântico, de algo fora do enquadramento, que diz respeito a todos os coletivos e que lhes dá medo. Daí a pressa de uns e outros para rotular, para definir, delimitar, dar uma forma ao acontecimento. Não deixar pairar a incerteza a seu respeito é normalizá-lo para fazer com que entre no coletivo humano custe o que custar. E contudo. O urso e eu falamos de liminaridade, e, mesmo que seja assustador, ninguém mudará nada disso. Os galhos estalam atrás de mim, vem vindo alguém. Decido: eles dirão o que quiserem. Quanto a mim, vou permanecer nessa no man’s land. (p. 78)

Penso em Clarence, o velho sábio gwich’in de Fort Yukon, no Alasca, meu amigo e precioso interlocutor durante os anos em que morei em seu vilarejo. Sempre o observei com olhar entretido quando ele me dizia que tudo era constantemente “gravado” e que a floresta era “informada”. Everything is being recorded all the time, ele repetia. As árvores, os animais, os rios, cada parte do mundo guarda tudo o que se faz e tudo o que se diz, e até mesmo, às vezes, o que se sonha e o que se pensa. Por isso é preciso prestar muita atenção nos pensamentos que formulamos, porque o mundo não se esquece de nada, e cada um de seus elementos componentes vê, ouve, sabe. O que aconteceu, o que sucede, o que se prepara. Existe um sinal de alerta dos seres exteriores aos homens, sempre prontos a extrapolar suas expectativas. Além disso, cada forma-pensamento que depositamos fora de nós mesmos vem se misturar e se acrescentar às antigas histórias que informam o meio ambiente, bem como às disposições daqueles que o povoam.

Segundo Clarence, existe um sem-limites que aflora à superfície do presente, um tempo do sonho que se alimenta de cada fragmento de história que continuamos a nele agregar. Há no mundo uma latência e uma ebulição, semelhantes à lava que espera sob o vulcão até que alguma coisa a force a sair da cratera. É precisamente por isso que Dária e Vássia abaixam a voz e sussurram na alvorada dentro da iurta sonolenta quando contam seus sonhos um ao outro. Você tem medo de acordar os outros?, pergunto certa manhã. Não, não quero que eles nos escutem, lá fora, responde Dária.

(p.80-81)

Faz nove anos que trabalho junto daqueles que “partem para sonhar mais além”, como diz Clarence. O que você está fazendo com a barraca nas costas?, eu lhe perguntava há cinco anos quando ele se distanciava sub-repticiamente para fora de Fort Yukon em direção à floresta. Não ouço nada aqui. Também não vejo nada. Muito falatório, muito conforto, muita família, e quase mais nada. Too much fuss! Saio para sonhar mais além. (p. 81)

É que para sonhar é preciso estar deslocado, ela me disse um dia. Por isso nunca fico muito tempo na minha casa, continuou. Você está tão longe da sua casa… Não surpreende que você veja tantas coisas, ela concluíra. (p. 82)

Dária diz que as imagens noturnas não são sempre puras projeções. Sonhos-lembranças ou sonhos-desejos. Existem outros sonhos, […] que não controlamos, mas que esperamos, porque eles estabelecem uma conexão com os seres do lado de fora e abrem a possibilidade de um diálogo. Por que isso é importante? Porque eles permitem que os humanos se orientem durante o dia; porque eles dão uma indicação sobre a tonalidade das relações por vir. Sonhar com significa ser informado. (p. 83)

[…] niguém escutou Antonin Artaud, que, no entanto, tinha razão. É preciso sair da alienação que nossa civilização produz. Mas a droga, o álcool, a melancolia e in fine a loucura e/ou a morte não são uma solução, é preciso encontrar outra coisa. Foi o que procurei nas florestas do Norte, o que encontrei apenas parcialmente, o que continuo a perseguir. (p. 85)

Quantos psicólogos me tomariam por louca se eu lhes dissesse que sou afetada pelo que acontece fora de mim? Que a aceleração do desastre me petrifica? Que tenho a impressão de não mais ter controle sobre nada? Ah, então esse é o motivo que leva você a se agarrar às montanhas! Sim, e a coisa fica grave é quando até mesmo a montanha está desabando. […] algo ressoa em mim, algo que dói e desorienta.

Teria sido tão simples se minha perturbação interior se resumisse a uma problemática familiar não resolvida, ao meu pai morto cedo demais, às expectativas não satisfeitas da minha mãe. Então eu poderia “resolver” minha depressão. Mas não. Meu problema é que meu problema não pertence apenas a mim. Que a melancolia que se exprime no meu corpo vem do mundo. Acredito que sim, é possível se tornar “o vento que sopra através de nós”, como dizia Lowry. E que é comum não voltar atrás, como ele, como tantos outros. Fui ter com os evens do Itcha e vivi na floresta com eles por uma razão bem distante de uma pesquisa comparativa. Entendi uma coisa: o mundo desmorona simultaneamente em todos os lugares, apesar das aparências. O que acontece em Tvaián é que se vive conscientemente em suas ruínas. (p. 86-87)

Escrevo há anos sobre os confins, a margem, a liminaridade, a zona fronteiriça, o espaço entre dois mundos; acerca desse lugar tão especial onde é possível encontrar uma potência outra, onde se assume o risco de se alterar, de onde é difícil voltar. Sempre disse a mim mesma que não se deve cair na armadilha da fascinação. O caçador, coberto dos cheiros de sua presa e usando suas vestes, modula a voz para adotar a do outro e, ao fazer isso, entra em seu mundo, mascarado, mas ainda ele mesmo sob a máscara. Eis o truque, eis o perigo. Toda a questão passa a ser então: conseguir matar para poder voltar – a si, aos seus. Ou então: falhar, deixar-se engolir pelo outro e deixar de estar vivo no mundo dos humanos. Escrevi essas coisas no Alasca; vim a vivê-las em Kamtchátka. Ironia do trabalho comparativo, piada dos dois blocos que se observam de um lado e do outro do estreito de Bering; estranheza do confronto entre meu espírito na América que observa meu corpo na Rússia.

Fui até o fim do encontro arcaico, mas voltei porque não morri. Houve hibridização e, no entanto, continuo sendo eu mesma. Quer dizer, eu acho. Alguma coisa que se parece comigo, mais os traços da máscara animista: estou inside out. O fundo animista dos humanos é o rosto deformado da máscara. Metade homem metade foca; metade homem metade águia; metade homem metade lobo. Metade mulher metade urso. O que está por baixo do rosto, o fundo humano dos bichos é o que o urso vê nos olhos daquele que ele não devia olhar; é o que meu urso viu nos meus olhos. Sua parcela de humanidade; o rosto por baixo do seu rosto. (p. 90-91)

Para nós, os miêdka devem ser evitados e, acima de tudo, não se deve encostar nas coisas deles. Por quê? Sua tergiversação me irrita profundamente, fale por favor, não me esconda nada. Porque eles não são mais eles mesmos de fato, entende? Porque carregam parte do urso neles. Dária suspira. Para alguns, isso vai mais além. Dizem que eles ficam “perseguidos” pelo urso para o resto da vida. Perseguidos no sonho ou perseguidos de verdade?, pergunto. Os dois, diz Dária abaixando os olhos. É um pouco como se essas pessoas estivessem enfeitiçadas, você entende? Entendo. Uma lágrima escorre pela minha face. Dária puxa um pedaço de lençol e a enxuga. Então você também acredita que estou enfeitiçada? Se sou de fato miêdka e ser miêdka é ser tudo isso, então por que você não me evita também? Não acredito em nada disso, responde Dária. Tudo isso não passa de história. Aqui a gente vive com todas as almas, aquelas que erram, aquelas que viajam, os vivos e os mortos, os miêdka e os outros. Todo mundo. (p. 93)

Quer saber o que eu acho? Por favor, eu suspiro. Acho que você mesma não sabe o que a leva sempre a partir para lugares cada vez mais distantes. Talvez seja isso, concordo. Ou então talvez seja algo da ordem do indizível. Ou do intraduzível. Como uma outra língua, entende, um negócio que se vive, mas que escapa a qualquer explicação. Um negócio que ultrapassa, um negócio que ultrapassa você. Ivan balança a cabeça, ele balança a cabeça como se estivesse se livrando da tristeza que detesta sentir despontando em seu próprio corpo. Ele ri de novo. Você é engraçada. Você também. Um negócio como os sonhos? Sim. Um negócio como os sonhos. (p. 94)

Penso no primeiro sonho aqui e não respondo mais nada a Ivan porque não tenho nada mais a dizer. Não é um truque, e de todo modo não ganharei esse jogo contra ele, um caçador muito melhor do que eu. Tento. Tento ordenar as coisas pelo menos na minha cabeça. Essa coisa qualquer que emerge, essa espécie de resposta em forma de pergunta aberta, esse algo anterior ao aborrecimento e aos sonhos recorrentes que me fizeram fugir dessa floresta e, junto com ela, de seus habitantes e do lugar que eles quiseram me dar. Esse lugar que continuo não querendo, um lugar em meio aos xamãs que partiram cedo demais e aos miêdka que chegaram tarde demais. (p. 95)

Nesse dia 25 de agosto de 2015, o acontecimento não é: um urso ataca uma antropóloga francesa em algum lugar nas montanhas de Kamtchátka. O acontecimento é: um urso e uma mulher se encontram e as fronteiras entre os mundos implodem. Não apenas os limites físicos entre um humano e um bicho que, ao se confrontarem, abrem fendas no corpo e na cabeça. É também o tempo do mito que encontra a realidade; o outrora que encontra o atual; o sonho que encontra o encarnado. A cena acontece nos dias de hoje, mas poderia muito bem ter ocorrido há mil anos. Somos apenas eu e esse urso no mundo contemporâneo, indiferente às nossas ínfimas trajetórias pessoais; mas é também o confronto arquetípico, é o homem cambaleante com o sexo ereto diante do bisão ferido no poço de Lascaux. Como na cena do poço, é a incerteza quanto ao desfecho do combate que preside o acontecimento inacreditável que, contudo, se dá. Mas ao contrário da cena do poço, a continuação não é um mistério, pois nenhum de nós morre, pois retornamos do impossível que ocorreu.

Não é um pensamento que eu gostaria de verbalizar; prefiro escrevê-lo: hoje, sentada na beira do rio, na neve molhada, escrevo que existe uma lei implícita, silenciosa. Uma lei própria aos predadores que se procuram e se evitam nas profundezas das matas ou nas dorsais da terra. A lei é a seguinte: quando e se eles se encontram, seus territórios implodem, seus mundos se reviram, seus encaminhamentos usuais se alteram e seus vínculos se tornam indefectíveis. Existe uma suspensão do movimento uma retenção uma parada um estupor que se apossa das duas feras pegas no encontro arcaico – aquele que não se planeja, aquele que não se evita, aquele do qual não se foge. (p. 97-98)

Penso em todas essas histórias e em todos esses mitos que eu e tantos outros antropólogos transcrevemos cuidadosamente em nossas monografias sobre os povos que estudamos, em todas essas viagens de um mundo a outro que atiçam nosso interesse científico, em todos esses homens um tanto especiais, esses xamãs que perseguimos como os caçadores rastreiam os animais que os fascinam. Penso em todos esses seres que se embrenharam nas zonas sombrias e desconhecidas da alteridade e que delas voltaram, metamorfoseados, capazes de encarar “aquilo que vem” de maneira não convencional, eles agem agora a partir daquilo que lhes foi confiado debaixo do mar, debaixo da terra, no céu, debaixo do lago, no ventre, debaixo dos dentes. (p. 99)

DEBAIXO DA PELE

E eu? Sabia o que estava procurando com o urso? Sabia quem eu estava esperando e quem eu via em sonho? Sabia por que eu seguia as pistas dos seus rastros por toda parte e por que eu esperava secretamente um dia cruzar o seu olhar? Claro, não desse jeito. Não tão rápido, não tão forte. Partir, eu dizia. Um pouco de ar, de gelo, de rochas, o horizonte. Acrescentou-se o sangue. Ele me pegou desprevenida em minha espera. Seu beijo? Íntimo para além do imaginável. Meu olhar se turva e tudo fica desfocado, as cabeças de rena que cobrem o chão, os corpos decapitados que perdem o sangue, os homens atarefados em volta. Ivan pare com isso não aguento mais. Será possível viver sem esse furor que pulsa no fundo de nós, que ameaça periodicamente aniquilar tudo? Seria preciso ter sempre a certeza de poder voltar. Voltar do outro mundo, como Perséfone. Seis meses no alto, seis meses embaixo, prático. Mas fora do tempo do mito, o ciclo se interrompe, porque é assim, porque é a Época, porque é aquilo que todos nós encaramos. Seria preciso que os dois rostos da máscara animista parassem de matar um ao outro, que eles criassem a vida, que eles criassem outra coisa além de si mesmos. Seria preciso, não, é preciso a todo custo sair dessa dualidade reversível e mortífera. (p. 102)

[da editora, sobre a coleção “fábula”, na qual  o livro se insere]

FÁBULA: do verbo latino fari, “falar”, como a sugerir que a fabulação é extensão natural da fala e, assim, tão elementar, diversa e escapadiça quanto esta; donde também falatório, rumor, diz que diz, mas também enredo, trama completa do que se tem para contar (acta est fabula, diziam mais uma vez os latinos, para pôr fim a uma encenação teatral); “narração inventada e composta de sucessos que nem são verdadeiros, nem verossímeis, mas com curiosa novidade admiráveis”, define o padre Bluteau em seu Vocabulário português e latino; história para a infância, fora da medida da verdade, mas também história de deuses, heróis, gigantes, grei desmedida por definição; história sobre animais, para boi dormir, mas mesmo então todo cuidado é pouco, pois há sempre um lobo escondido (lupus in fabula) e, na verdade, “é de ti que trata a fábula”, como adverte Horácio; patranha, prodígio, patrimônio; conto de intenção moral, mentira deslavada ou quem sabe apenas “mentirada gentil do que me falta”, suspira Mário de Andrade em “Louvação da tarde”; início, com que Valéry ao dizer, em diapasão bíblico, que “no início era a fábula”; ou destino, como quer Cortázar ao insinuar, no Jogo da Amarelinha, que “tudo é escritura, quer dizer, fábula”; fábula dos poetas, das crianças, dos antigos, mas também dos filósofos, como sabe o Descartes do Discurso do método (“uma fábula”) ou o Descartes do retrato que lhe pinta J. B. Weenix em 1647, segurando um calhamaço onde se entrelê um espantoso Mundus est fabula; ficção, não ficção e assim infinitamente; prosa, poesia, pensamento.

]]>
http://vidaboa.redelivre.org.br/2022/10/20/escute-as-feras/feed/ 0
Auto mapeamento a partir das dores de um corpo de mulher http://vidaboa.redelivre.org.br/2022/07/06/auto-mapeamento-a-partir-das-dores-de-um-corpo-de-mulher/ http://vidaboa.redelivre.org.br/2022/07/06/auto-mapeamento-a-partir-das-dores-de-um-corpo-de-mulher/#respond Wed, 06 Jul 2022 22:31:03 +0000 http://vidaboa.redelivre.org.br/?p=3348 Cair, caminhar, dirigir. Ossos, palavras, desafios. Dos condicionamentos ancestrais, das libertadoras e doloridas rupturas, do suporte da trama de redes que tornam a vida mais vivível

 

Uma ancestral muito torta que reexiste e encanta a vida. Figueira na Amó – espaço de bem viver, Máquiné (RS). Foto de Pascal Berten.

Estava andando nas calçadas de Osório numa tarde ensolarada de inverno rumo à minha primeira prova na autoescola. Tinha feito duas aulas práticas de manhã, pra chegar aquecida no teste, e estava faceira pedindo mentalmente guiança e proteção para esse momento. Aos 36 anos resolvi aprender a dirigir. Aprecio um outro ritmo, um outro tempo das coisas, e o modelo individualista de cada pessoa ter seu carro me parece insustentável. Sou muito feliz de habitar um local em que não transitam carros, sem seus ruídos, cheiros e apressamentos. Consegui me virar no mundo caminhando, andando de transporte coletivo e pedindo carona até então, e fui mais longe e mais adentro dos confins desse continente que muita gente que dirige há muito tempo. Mas… chegou minha hora.

Morando num município de cerca de 7 mil habitantes no fim de uma estrada rural, aos bordes de uma área de preservação, com tentativas frustradas de motivar um sistema de caronas coletivas na vizinhança e com a ausência de transporte público e nenhuma perspectiva para tal (e ausência de interesse da população com quem tenho contato de comprar essa briga com o poder público), resolvi me render. Por esses fatores externos mas também por fatores pessoais: tem sido um rebolado conseguir viver aqui nesses 3 anos e ter comida na mesa, e construir uma casa, e cuidar da minha saúde, sem ter um carro à disposição. As eventuais caronas não dão conta. Minhas costas exigem cuidados, meu tornozelo também, passou o tempo antes dos 30 em que me sentia capaz de carregar nas costas qualquer peso a qualquer distância. Chamar “uber” rural demanda disponibilidade alheia, combinação prévia e é caro. E a vida tem me pedido dinamismo. Poder ir visitar a amiga no outro fundão, participar de atividades nas coletividades da rede e comunidades indígenas, carregar coisas e pessoas pra cima e pra baixo com autonomia. Sim, saber dirigir e ter um carro, nas atuais circunstâncias, virou sinônimo de autonomia.

E assim ia caminhando para a prova em Osório, depois de alguns meses de um processo chatíssimo e caro com a autoescola (e poder pagar e ter tempo pra isso é um baita privilégio). Aulas teóricas online no verão. Aulas práticas (presenciais, por supuesto) no outono, o que me exigiu deixar minha casa, minhas lidas, minha rotina, para passar pequenas temporadas em Osório – cidade mais próxima com alguma estrutura, a 30 km daqui – na casa de amigues de amigues, gente solícita que se disponibilizou a contribuir nesse meu processo.

O meu caso é um entre muitos. Realmente vai ser difícil reverter o inchaço populacional das metrópoles com a falta de estrutura das cidades do interior. Muitas demandas envolvem ir a outra cidade – banco, saúde, auto escola, algumas compras – e é uma mão. Muita gente da roça não consegue ter acesso a direitos e facilidades básicas. E fica por isso mesmo, até que sejam quase obrigades e seduzides a ir morar na cidade. A não ser que contem com uma sólida rede de apoio – no mundo em que vivemos, normalmente restrita à família nuclear, e olhe lá.

Mas, além de ser uma escolha política e uma maneira de (literalmente) caminhar nesse mundo, meu processo com a condução (ou não condução) passa por um atravancamento. Quase um trauma. Uma limitação.

Uma limitação que se revela nos meus pés tortos (e pernas, e bacia e coluna, e até mordida, sem falar no estrabismo da infância que hora ou outra ainda se revela, escapa). Na minha inabilidade em andar de bicicleta. E nessa negação, até então, de aprender a dirigir. Eu costumava sonhar que dirigia carros sem saber conduzir, num divertido desespero onírico. Cheguei a sonhar que eu comprava um carro mas na hora de sair com ele lembrava que eu não dirigia…

Olhando desde uma perspectiva simbólica, isso poderia apontar uma dificuldade em conduzir minha própria vida. Mas vejo que tenho trilhado caminhos genuínos, com verdade e coração, e aberto trilhas no facão, com esforço porém cantando coletivamente, e com muito propósito e determinação pessoal.

Fica cada vez mais nítido pra mim que onde está minha potência está também meu entrave.

Ou desafio.

A astrologia ocidental clássica pode me ajudar a visualizar isso. Tenho Saturno e Sol conjuntos em Sagitário na casa 3. Sol, quem somos em essência, nossas características genuínas. Saturno, o senhor do tempo, da responsabilidade, da perseverança, do conseguir as coisas a muito custo, dos ritos de passagem, dos ciclos da vida, da maturidade. Dos desafios. Tenho minha luz e minha sombra conjuntas, o grande astro que ilumina e alimenta a vida na Terra junto ao chamado Grande Maléfico. Na casa 3. Das comunicações e movimentos cotidianos. Um astrólogo já falou lendo meu mapa que eu teria tudo para ser um foguete, mas tem esse freio de mão puxado. Que essa conjunção é desafiadora mas tem o seu papel. Freia. Traz pro corpo. Pra terra. Pra responsabilidade. Pro cotidiano. Pro tempo dos ciclos.

Por meio dos desafios…

Saturno rege Capricórnio, onde tenho meu fundo de céu. Tem a ver com ancestralidade. Família. Raízes. Ossos.

Pé, tornozelo, as raízes do corpo. Cóccix, a raiz da coluna vertebral, um rabinho de osso, resquício de quando tínhamos rabo, esse traço tão animal. Diz que o ser humano deixou de ter rabo quando se tornou bípede… Quando aprendeu a andar.

O pé, e tornozelo, parece que tem a ver com infância. O lado direito, com o pai. Esse astrólogo relacionou a casa 4 no meu mapa com a figura do pai também. Um pai, em muitos aspectos, Saturno. Cronos. Que eu acabo de visitar depois de muito tempo.

Quando criança eu não falava muito (pelo menos não para os padrões da família do que se considera falar muito), e quando falava, comia alguns fonemas. Não conseguia fazer o som do “q” nem do “r”. Frequentei uma fonoaudióloga, o que ajudou muito, apesar de até hoje não conseguir fazer o “erre com a língua”, aquele som do espanhol – e frequentemente quando estou viajando em outros países acharem, por isso, que sou francesa. Mas desde criança gostava de cantar e fui incentivada a isso. Gostava de ler e escrever. Comecei a participar dos concursos de poesia do colégio, envolvendo declamação em público, com 7 anos. Fiz aula de canto popular, cantei em palcos, fui vocalista de banda. Fui presidenta da academia de oratória do colégio… E resolvi estudar comunicação. Me inseri em veredas da comunicação popular e abri minhas próprias, e até hoje me considero uma comunicadora (apesar de ter dificuldade com os rótulos, esse ainda me contempla, e cá estou eu escrevendo pra me entender, me mapear, mas também pra compartilhar). E, ao caminhar da vida, a partir da ancestralidade Guarani, me aproximei da palavra sagrada – que circula pelos ossos. E praticamos essa palavra sagrada na coletividade em que habito.

A limitação que é, ao mesmo tempo, o potencial.

Sinto um chamado muito exigente da vida. Parece que não posso me contentar com o que está dado (e convenhamos que, numa sociedade insana, de fato o que está dado costuma ser medíocre). Sou convocada, periodicamente, a ir além e além das máscaras que adotei para me transformar numa versão mais sincera e real de mim. Ir além dos comportamentos automatizados, daquilo que a bolha sociocultural oferece. E que estão introjetados no meu corpo. Até nos meus ossos. Padrões muito ancestrais dos quais busco me libertar, mas não é assim tão simples. Os entraves são físicos.

Às vezes só queria poder desfrutar do sossego, mas parece que o movimento precisa ser constante. E na verdade eu busco e crio esse movimento. Mesmo de tornozelo torcido, mesmo com o cóccix fraturado. Me move. Talvez o que me resta é a busca do equilíbrio nesse movimento. Conseguir me desprender de alguns padrões antigos, fazer algumas rupturas que se mostram necessárias.

Quase como se me fosse proibido caminhar e me levantar frente ao mundo com liberdade.

Bom, voltando ao enredo que dá origem a esse texto, lá ia eu finalmente fazer prova de auto escola, pra tirar a tão desejada e necessária carteira. Ia pedindo minhas bendiciones mentalmente, caminhando tranquila depois do almoço, quando “clec”, piso em falso, viro o pé pra dentro com tudo e desabo no chão. Sem nenhum fator externo, eu mesma me entortando. Isso acontece de tempos em tempos desde os 15 anos, por isso já tenho prática, já rompi um ligamento, mas não adianta. Toda vez me abala. Ser tirada de minha inteireza, do meu caminhar tão cotidiano e singelo, quase automático, do mundo das ideias e pensamentos aonde os passos me levam, e repentinamente cair com tudo no chão. Dói pacas. E a frustração de “ainda”… “De novo”… Debilidade. Fragilidade. Processo profundo, antigo, não superado.

Xinguei, chorei e repeti muitas vezes “não acredito” depois de conseguir dispensar duas mulheres que vieram ver o que estava acontecendo e perguntar se podiam ajudar. Eu só queria que elas saíssem logo para eu poder tirar minha máscara de polidez e chorar e esbravejar em paz. Deitei na grama ao lado, levantei meu pé na árvore e aí estive alguns minutos, quase indiferente às pessoas que transitavam na calçada ao lado, podendo vivenciar minha raiva, dor e frustração. Sensação de fragilidade, de incapacidade. E revolta contra as forças da vida, que nem pra me apoiar, mais ainda nessa hora. Poxa, eu pedindo proteção e aí me vem uma dessas. Sacanagem.

Me levantei, me arrastei, era impossível não umedecer os olhos. Estava a poucas quadras de onde se daria o exame da autoescola, nenhum uber aceitaria essa corrida, me restava caminhar mesmo, com pausas pra sentar. Pelo menos eu tinha tempo. Estava tão transtornada por esse acontecimento, que traz à tona esse processo tão marcante na minha vida, que a prova ficou em segundo plano. Liguei o “foda-se”. Se passasse no exame, seria ótimo me livrar desse desgastante processo. Se não, nada mais compreensível. Fazer o quê.

Fiz o percurso do teste e me surpreendi ao final quando a examinadora falou que eu estava aprovada. Acho que ela foi legal comigo. Veio um grande alívio. Um consolo nesse momento difícil. Pelo menos isso! Fase encerrada.

Os ligamentos da abuela figueira. Foto de Pascal Berten.

Chegando em Maquiné (de “uber”…), aproveitei pra ir atrás do Seu Roque, que é conhecido por fazer curas, pra colocar meu tornozelo no lugar (experiência que merecia um texto à parte). Ele atende na Caroline Modas, que parece ser a loja de roupas mais estruturadinha de Maquiné (não que haja muitas). Vários gatos ficam circulando entre roupas e manequins, eu interagi com um laranja e gordo que parece o Garfield. Aguardei Seu Roque terminar de atender um cliente da loja. Em seguida, ele se mostrou muito solícito e me levou pra uma sala de depósito. E lá, entre caixas vazias de papelão, fez a sua cura – sua não, ele apontou pra uma estatuazinha em cima do armário, “é ele quem faz a cura”. São Miguel. Apertou, puxou, esticou meu pé. Foi de doer. Me lembrou os hueseros e hueseras de México e Guatemala. Se ele colocou mesmo o tornozelo no lugar, o tempo dirá. No mínimo, levantou o meu astral. Consegui me desvencilhar um pouco do meu drama pessoal e seguir caminhando, mesmo que com dificuldade, mesmo que devagar.

Agora, fazendo uma retrospectiva, percebo que fraturei o cóccix poucos dias antes de começar as aulas práticas na auto escola. Voltando pra casa de noite de uma atividade coletiva no território, a poucos metros da minha casa, escorreguei na lama. Estava segurando coisas nas duas mãos e caí mal, com tudo em cima do cóccix. Isso foi na quinta à noite. Naquele fim de semana, a partir de sexta, estava responsável por receber pessoas e ser anfitriã de atividades coletivas exigentes. Na segunda, começavam minha aulas práticas em Osório. Toda uma função pra agendar, separar esses dias para estar em Osório, combinar de estar na casa do amigo da amiga. Eu não sabia que tinha fraturado, nunca tinha caído em cima do cóccix desse jeito. Fui. No primeiro dia me senti tão mal, me arrastando, que apelei pros anti-inflamatórios, coisa que não tomava há anos, nem nos piores momentos de dor. Tomar esses remédios significou flexibilizar e me adaptar, não ser tão rígida com meus princípios. Consegui cancelar algumas aulas de autoescola, mas a burocracia exige antecedência de 72 horas, senão tem que pagar de novo. Segui nesse esforço, fazendo as aulas, por mais dois dias. Voltei pra casa e esperei algumas semanas até aliviar a dor e retomar as aulas práticas.

Agora cá estou eu com o cóccix fraturado há cerca de três meses (ainda dói, bem menos, mas dói), o tornozelo recém torcido e aprovada na autoescola, pesquisando possibilidades de carros. Cair, sentar, caminhar, dirigir. Limitações e superações. Desafios.

Pra me cuidar, estou fazendo um tratamento da bioenergética. Fiz muuuuitos desses tratamentos nos últimos anos, pra lidar com o que entendo ter sido uma hérnia, o que entendo ser artrite, além desses processos relativamente recorrentes com o tornozelo, e outros processinhos físicos, emocionais e porque não espirituais. Fazia mais de ano que não encarava um tratamento desse tipo, estive menos voltada pro meu interior, mais voltada pra estruturação na matéria, no cotidiano externo. Construir a casa, nutrir a coletividade, as redes, atuar no mundo. “Morder”, me apontou a carta do I Ching na última tirada. Romper os obstáculos com a própria vontade. Interpretei como “me colocar no mundo”. Aprender a dirigir. Passar na autoescola. Conseguir um carro. Assumir o papel que me cabe nos processos coletivos.Poder me movimentar com autonomia.

Eis que chegou o momento de reunir todos os fitoterápicos necessários, os suplementos e ervas, cortar o açúcar e as frituras da alimentação e viver toda uma rotina de autocuidado por 21 dias. Voltar a olhar pra dentro e pro cuidado de si, pro cotidiano do corpo, dos vários corpos que nos compõem. Um punhado de práticas terapêuticas combinadas. Buscar me restaurar e encontrar um novo equilíbrio, depois das quedas, da fratura, da torção. Na verdade retomando um processo longo, de anos, talvez de uma vida toda. Que exige ser priorizado.

Lembro que uma vez eu vi uma figueira enorme, no meio do mato, toda torta, mas que de alguma maneira encontrou seu equilíbrio e é magnífica. Pensei que quero ser que nem ela. Me adaptar e encontrar força e equilíbrio no meu jeitinho torto.

A figueira torta. Foto de Pascal Berten

Já o desafio de dirigir não é só meu. É historicamente das mulheres, como entre tantas outras atividades consideradas “masculinas”. Vem sendo superado, mas ainda são muito mais homens que mulheres motoristas. Entre as amigas, algumas relatam dificuldades nesse processo.

Quando torci meu pé pela primeira vez, aos quinze anos, morava na mesma casa que meu pai, mas não nos dirigíamos a palavra. Eu sempre sofri muito com a relação ao meu ver tenebrosa que ele tinha com minha mãe, o jeito que tratava ela. Também com as filhas, mas principalmente com a esposa. Numa dessas não consegui calar, brigamos, ficamos sem falar. Essa situação durou mais de ano… Morando na mesma casa sem se dirigir a palavra. Quando minha mãe estava grávida de mim ele também simplesmente não falava com ela. Não levou minha mãe ao hospital para parir. Minha mãe conta que nasci na madrugada de 24 de novembro (no aniversário dela) de parto normal, com uma ginecologista e Tia Daura segurando sua mão. Apenas mulheres no silêncio da madrugada rompido pelos seus gritos e pelo meu choro.

Helène Clastres, em “A terra sem mal”, fala da dimensão sagrada da palavra para o povo Guarani. Ñe’e significaria, ao mesmo tempo, “palavra” e “alma”. “A palavra, a alma, é justamente o que mantém de pé, ereto, como está manifesto na ideia de que a palavra circula no esqueleto”, diz ela. Os ossos, o que a gente tem de mais antigo, de mais ancestral. Ao mesmo tempo que a gente não vê, nos estrutura. Como a palavra sagrada que desde os primórdios cria o mundo. A gente não vê, mas dá sustentação a todas as coisas.

Trabalhar os entraves da minha ancestralidade, da minha árvore genealógica, a partir da palavra sagrada, pra poder me manter de pé. Deixar essa palavra circular pelos meus ossos. E, em alguma medida, me reconstruir.

Entendo que esse processo não é só meu. Numa escala micro me sinto vencendo, ao mesmo tempo, a burocracia oficial e o patriarcado. E lidando no meu esqueleto com questões muito profundas, muito antigas. Me sinto trabalhando processos patriarcais, da relação feminino-masculino, de toda a minha ancestralidade, da humanidade. E, de uma maneira ou de outra, consciente ou inconscientemente, todes estamos. Mas às vezes é simplesmente impossível ignorar, impossível fugir. Dói na carne.

Apesar de muitas vezes me sentir sozinha, e tendo que dar conta de tudo, exercendo a arte do me virar em escala infinita (das minhas carências, dos meus calos, o outro lado da tão adorada independência, que fala também do sobrecarregamento das mulheres que ousam não seguir os padrões nesse velho e pesado patriarcado), vejo que sem essa rede de cuidados, principalmente de mulheres, a coisa seria bem difícil senão impossível.

Esses processinhos tão pessoais, tão individuais, em alguma medida são também comuns. “Nada mais universal do que o mais entranhadamente íntimo”, li mais ou menos assim nesse texto que adoro e me inspira a fazer essas relações micro-macro, individual-social, político-cultural, do meu corpo pro corpo do mundo – o “teoría de la mujer enferma”.

E reconhecer as debilidades, aprisionamentos e frustrações da minha ancestralidade, tanto na figura de homens – em grande medida opressores – quanto na de mulheres – em grande medida oprimidas. E ver também nas pessoas que compõem essa ancestralidade uma grande resistência, uma resiliência que permitiu seguir reproduzindo a vida de geração em geração: que me permite existir. Apesar dos pesares do mundo, apesar da dureza das relações, apesar do capitalismo, do colonialismo, do antropocentrismo, do patriarcado.

Importante e bonito poder seguir me cuidando, olhando pra dentro, acertando o passo, mas sabendo que é um processo inserido num contexto maior. Que se torna vivível e suportável por contar com uma ou mais mãos amigas ao lado. Assim vamos tecendo nossas redes infinitas de afeto e cuidado que nos impulsam a levantar e caminhar. E mesmo quando a gente cai, essas redes suportam a nossa queda – com inúmeras tramas e pessoas segurando, desde muitos tempos e espaços.

Foto de Pascal Berten

]]>
http://vidaboa.redelivre.org.br/2022/07/06/auto-mapeamento-a-partir-das-dores-de-um-corpo-de-mulher/feed/ 0
Águas http://vidaboa.redelivre.org.br/2021/09/20/aguas/ http://vidaboa.redelivre.org.br/2021/09/20/aguas/#comments Tue, 21 Sep 2021 01:02:49 +0000 http://vidaboa.redelivre.org.br/?p=3341

 

 

Lembrei que no México a expressão “aguas!” quer dizer “cuidado!”.

Águas!

Delicinha, fresca, líquida, convidativa mas… “aguas!”.

Águas…

 

Como vão os sentimentos? Fluindo para o mar?

Fiz essa pergunta há uns dias na chamada que escrevi pra cerimônia que teremos no próximo sábado. Equinócio de primavera. Entrada na estação das flores e das águas.

No momento da escrita eu estava cansada. Sangrando. Pós vivência entre mulheres. Construindo a casa fora, nos acolhendo entre e dentro. Intensidade das partilhas. E a Nury esteve nessa vivência.

“A Nury por si só é uma vivência”, tinha compartilhado com as hermanas no grupo no whats – porque não, a Nury não tem celular.

Falei pra ela que fiquei constipada e exausta pós vivência, com receio que ela também estivesse com esses sintomas… O fantasma do vírus. Nossa abuela. Ela estava ótima. Desejou melhoras e comentou: “é que foram muitas as emoções e águas rolaram…”.

Ela trabalhou consciência corporal com a gente. Acessar nossas profundezas através do corpo. Dentro do corpo. Pelo corpo.

Pisamos terra e água pra levantar a parede da minha casa. Barro. Colocado na parede com as mãos.

 

Acabou a vivência (para as manas), eu fiquei terminando as últimas coisas, guardando o que precisava ser guardado, dando aquele gás final antes da sequência de dias de chuva que se anunciava. Deixar tudo minimamente encaminhado. Obra, barro, tinta, cozinha coletiva, comidas. Fazer minha mudança de volta (eu estava acampando na obra), duas viagens montanha abaixo super carregada de coisas, a última com a gatinha na caixinha, já debaixo de chuva.

No final eu já tava carregando meu corpo no modo automático pensando “já vai acabar, já vou poder descansar”. E o corpo deu pane. Exaustão.

Parei tudo para me cuidar. Até porque não restava outra, era isso ou me dopar. À medida que a coisa ia se mostrando longa, fui desmarcando os combinados, desfazendo os planos pros próximos dias. Senti necessidade de me recolher. E, dia após dia, comecei a sentir as águas estagnadas. Que, finalmente, começam a aflorar.

 

“Se deixar ser rio e transbordar”, me disse Yxapy, ao tirar os maravilhosos arcanos guaraníticos para mim.

Transbordar. Primeiro por tristeza, carência, incompreensão, irritação. Depois… Simplesmente por emoção. Sentir, esse troço tão perigoso! Sentir é arriscar-se. Abrir-se. Diluir margens. Transfigurar-se.

Parece que a sensibilidade não cabe no modo de vida (bizarro, diga-se de passagem) que os humanos criaram, esses tais civilizados.

Que força o sentimento tem! Como a cachoeira depois que chove. O que fazer com essa doce fera que trazemos dentro? Como se reconstituir depois que a gente se dissolve?

“A gente quer gerar uma emoção bonita nas pessoas”, diz Luhli no documentário sobre ela e Lucina, dupla que estava entrando no jogo das gravadoras mas preferiu o circuito independente na década de 1970. E que viveu uma vida verdadeira, com muita emoção, quebrando vários tabus.

Rever esse documentário e, depois, ouvir e reouvir essa música, me fez transbordar. Muito. Não é nem tanto pelo significado da letra, não é nem por saudade (ou talvez aquela saudade de tudo o que já foi do que é e há de vir), talvez mais pela emoção da melodia, pela poesia, aquela coisa que a gente não explica, só dá um nó na garganta e jorra em lágrimas. Emoção pela vida.

 

Passei mais de dez dias na caverna. Minha primeira sinusite, demorei pra sacar. Talvez também Covid. Por via das dúvidas, fiz o isolamento.

Mas entendo que doença é sintoma.

 

O inevitável mergulho que a solitude (ou quase) traz. No início não tinha dimensão do processo que se passava dentro de mim. E à medida que fui entendendo cheguei a duvidar das minhas certezas. Mas agora tenho certeza da certeza, uma certeza que é um vislumbre. (Como o clarão do raio em meio às trevas, agora vejo…).

Quando eu não me dou o tempo/espaço que preciso, o corpo exige… Há de se cultivar os ritos de passagem. Saber seus momentos. As sabedorias ancestrais ensinam. O corpo também. Afinal, trazemos toda a ancestralidade da vida no corpo. Em cada célula.

Há de se cultivar os cuidados diários, uma rotina sã. Ter tempo para nós mesmas. Respeitar nosso entendimento, nossa intuição sobre os processos que estamos passando. Ninguém conhece melhor nosso corpo e nossa vida do que nós mesmas.

Entender que a doença abre um caminho de entendimento, que pode ser acessado ou simplesmente ignorado e se acumular. Entender que quando a doença aparece, o corpo está pedindo um tempo. Dar esse tempo.

Em tempos de Covid e fundamentalismos: sim, eu tomei a vacina. Preferi me tratar dos sintomas naturalmente, com fortes medicinas e muito autocuidado. Não tive sintomas graves, minha respiração esteve muito bem o tempo todo, não tive febre.

Mas não me restringi ao cuidado com o corpo. Afinal, não está separado.

 

Preparação pra primavera, estação das águas, saindo do inverno, estação da terra. Transição.

Água e terra, mangue. Entender a água estagnada no corpo como o caldo da criação, da onde brota a diversidade da vida (nesse inverno, honramos Nanã e Obaluayê, e tudo vai fazendo mais sentido).

Ressignificar essa água acumulada em terra. Dela que pode brotar a vida! Ela é profunda! Ela é ancestral! Ela nutre! Mas há de se ter cuidado pra não ser soterrada pelo mangue. Cuidado pra não atolar, e lá ficar.

Há de se ter tempo para ir até o mangue, caminhar com cuidado pelo lodo. Enfiar as mãos nesse barro. Pisar esse barro. Se deixar impregnar de lama. Submergir. Desintoxicar. Corpo alma mente espírito.

Até chegar a hora de fluir. E desaguar.

Quanta emoção!

 

que a preço de espera

eu seja a primavera

madurando em verão

 

bananeira no quintal

na boca o gosto da vida

no ar, temporal

 

bananeira no jardim

gosto da fruta madura

dentro de mim

 

Caem as águas. Do céu. Dos olhos.

Nesse exato momento, noite de domingo, enquanto escrevia essa última frase, chegou uma forte trovoada na floresta. Com tudo. Granizo. Estrondos. Pirotecnia.

Acabou a luz. Senti um pouco de receio de que o teto podre que me abriga pudesse cair. Mas o encantamento com o temporal foi – é – maior.

Desde criança gosto quando acaba a luz em meio às chuvas, parar tudo para estar e observar. Ser atirada de volta ao tempo real da vida. Acender a vela. Sentimento de primórdios nas entranhas e de poesia na cabeça – o cheiro de chuva, os sons da água e do vento nas árvores, as visões deslumbrantes da tempestade. Clarões. Vislumbres (seria vislumbre a soma de visão + deslumbre?).

Gosto de admirar a potência dos raios. Atravessa a gente, né?

Saiu uma forte cartinha entre os arcanos guaraníticos. Werá. O raio. Ele é poderoso. Às vezes assusta. Abre uma clareira em meio à mata. Coloca uma grande árvore seca em chamas. O poder dele é tanto que abre caminhos de luz a partir dessa árvore. Feixes na terra a partir desse eixo.

Conexão céu e terra.

Que eu possa não ter medo, receber essa força que desestabiliza e ser canal. Fazer caminho. Ser caminho.

Conectar com o que há de mais profundo e estagnado, com a lama, mas poder emergir e fluir e cantar e seguir dançando a dança da vida nesse plano, na matéria, nesse tempo. Nesse aqui agora.

Tempo desafiador. Todes estamos sentindo. Em nossas corpas, em nossa mente, em nossas entranhas. Em nossos corações, conturbadas emoções. Que a gente possa se cuidar. Se acolher. Contar com uma rede de apoio, ser uma rede de apoio. Nada é mais amorosamente revolucionário que cuidarmos de nós mesmas e umas às outras. Cuidar da vida. É o mais importante. (E que delícia ler o livro “Redes de cuidado: revoluções invisíveis por uma vida vivível” do Coletivo Etinerências nesse momento, recém saído do forno. Páginas de afeto e cuidado.).

E a vida é tão bonita. Que deslumbre é sentir.

 

Gracias hermanes que me trouxeram gengibre, própolis, ervas, elixires, mel, tantas coisas pra eu me cuidar. À Ananda que me aplicou reiki com ervas. Às hermanas que compartilharam desse momento à distância, dando aconchego nas mensagens e áudios.

Gracias, águas! Leva, lava, nutre, limpa. Cria lagos, mangues, canais. Escorre nos rios e cachoeiras. Desagua en la mar. Corre no nosso sangue, nossas lágrimas, nossa saliva, nosso suor.

Como aprendi no México nos tezmacais (o ventre da mãe terra):  “aramara, contigo todo, sin ti, nada”. Água, a primeira medicina. Desde o ventre de nossas mães.

 

Hoje armei um tambor lakota, uma hermana querida deu de presente pra gente, enviou todos os elementos já trabalhados, só faltava amarrar. Fui em jejum, depois de muito desaguar. Tinha deixado o couro de molho. Fiz um foguinho perto de casa. Acendi meu petyngua, fumei meu primeiro tabaquito depois de 14 dias. E já deu pra sentir as primeiras batidas desse novo coração. Agora tá secando. Em breve, a estreia coletiva, em celebração de primavera.

 

Renascer. Fluir.

Transbordar e florescer.

Bienvenida, primavera!

Dentro e fora.

]]>
http://vidaboa.redelivre.org.br/2021/09/20/aguas/feed/ 1
Prazer, Michele Junana – ou porque resolvi deixar de usar meu sobrenome oficial http://vidaboa.redelivre.org.br/2021/05/09/prazer-michele-junana-ou-porque-resolvi-deixar-de-usar-meu-sobrenome-oficial/ http://vidaboa.redelivre.org.br/2021/05/09/prazer-michele-junana-ou-porque-resolvi-deixar-de-usar-meu-sobrenome-oficial/#respond Sun, 09 May 2021 23:07:43 +0000 http://vidaboa.redelivre.org.br/?p=3333 Cada coisa que eu faço poderia render um textão – sorte de vocês que eu não escrevo todos. Sorte minha. Escolhi viver mais a vida, fazer mais, pensar menos, ou pensar de maneira aliada a tudo que faço e me perder cada vez menos nos corredores da abstração. Uma filosofia de vida que se vive na prática – e quando se faz a própria comida, se esvazia o próprio balde de merda e de resíduos de alimentos, se planta, canta, estuda, reza, contempla, descansa, pratica o autocuidado, constrói a própria casa e, ainda, se organiza coletivamente e em redes, o tempo pra ficar divagando intelectualmente diminui.

Hoje, por exemplo, resolvi fazer pão. Eu não faço muito pão, apesar de gostar de cozinhar. E gostar de pão. Tenho uma certa resistência a comprar farinha de trigo. Quase todo o trigo que chega a nós é importado. O trigo é o símbolo da imposição cultural “civilizada” em forma de alimento. Isso se confirmou lendo a epopéia de vários volumes de “O tempo e o vento”, de Érico Veríssimo, que tô adorando ler e recomendo muito. No livro dá pra perceber como o trigo e o hábito de comer pão chegam junto com a “civilização”, diferenciando os cidadãos dos “selvagens comedores de abóbora e milho”. E quantos pequenos agricultores, deslumbrados com o sonho e promessas do trigo, deixaram sua diversidade de cultivos de lado, se endividaram, aderiram à monocultura e perderam suas terras.

Pois eu quero comer muita abóbora e muito milho. Mas um pãozinho de trigo de vez em quando cai bem, e essa farinha de trigo é especialmente maravilhosa e veio de uma compra coletiva que fizemos em rede aqui em Maquiné, cidade do litoral norte gaúcho em que habito em coletividade no Território Junana. Trigo orgânico, de uma família agricultora do estado que produz vários alimentos maravilhosos. E, já que apesar de não fazer, eu adoro quando alguém faz um bolinho ou um pãozinho, resolvi comprar. E assim ressignificamos o trigo colonizado com um trigo descolonizador, agroecológico e fortalecer de redes. E tudo isso passou pela minha cabeça enquanto eu fazia o pão a partir de receitas que pedi para amigues prendades.

Toda essa divagação é apenas um preâmbulo pra questã que eu realmente quero desenrolar em letrinhas, até pra (ou principalmente) eu mesma entender melhor: não tá mais fazendo sentido pra mim usar o sobrenome que me deram. Nada contra seu David Turinelli, que veio lá de Trento em mil oitocentos e lá vai bolinha numa aventura tresloucada (e colonial) para o desconhecido Vale do Itajaí, nem se trata de negar essa minha origem. Mas existem outras. Historicamente silenciadas por meio desse mecanismo patriarcal do sobrenome.

Eu só sei o sobrenome dos homens. Mesmo o sobrenome da minha mãe veio do pai dela, e o do pai dela veio do pai dele, e assim sucessivamente desde que o patriarcado se impõe violentamente no mundo. Sem falar que alguns sobrenomes foram negados, silenciados. Gente indígena e negra que foi “batizada”, cristianizada, que não tinham seus nomes de verdade aceitos nos cartórios. Que precisaram adotar nomes brancos pra sobreviver. Ademais das relações que foram proibidas, negadas, invisibilizadas. Pessoas que foram assassinadas. Por serem negras, indígenas, pobres.

Mais uma vez me remeto a “O tempo e o vento” (baita obra). No primeiro volume, conta-se de um Guarani que fugiu das Missões quando essas foram destruídas pelos colonizadores. Ele foi parar numa pequena estância no meio dos pampas, e era tão habilidoso que o pai da família anfitriã, mesmo com todo o preconceito que tinha, não conseguiu mandar ele embora, e ficou se aproveitando da mão de obra praticamente escrava dele. Acontece que a filha do patriarca se apaixonou pelo missioneiro, e ele por ela. Quando o pai e os irmãos descobriram, mataram ele. Ela já tava grávida. Teve um filho, que nunca veio a saber que o pai era Guarani, e que ele foi assassinado por seus tios e avô. Nem toda sua descendência veio a saber que tinha origem Guarani. A mãe dizia que o pai tinha morrido na guerra, e eram tantas guerras fronteiriças por essas bandas, e tantos homens que morriam nelas, que isso era aceito socialmente e a mulher conseguiu sobreviver e criar seu filho mesmo sendo solteira. Isso lá por mil setecentos e algo.

Así que todo mundo nesse continente é mestiço, só que essa mestiçagem não é cordial (como os poderes quiseram e querem fazer acreditar), mas carregada de injustiça, patriarcado, racismo, colonização e conflito. Ter consciência de que somos filhxs de um processo racista de estupros e preconceitos coloniais, de casamentos mais ou menos obrigados, e mulheres mais ou menos silenciadas, é o único modo de entendermos da onde viemos e vislumbrarmos para onde queremos ir. Como queremos viver que não desse modo.

Diz-se que em sociedades matriarcais, as pessoas carregam o nome da comunidade em que vivem. Em muitos povos indígenas, também. Esse é o sobrenome. O povo do qual fazem parte. Ailton Krenak, por exemplo. Ele é Krenak. E é o Ailton.

Por muito tempo não tinha muito apreço pelo meu nome Michele, mas em minha viagem pelo México me envolvi e conciliei com o seu significado – e isso daria um outro texto. Minha mãe e meu pai escolheram esse nome, eles tavam meio brigados, passei um tempo sem ter nome sendo chamada de “neném”, mas beleza, esse é meu nome, atendo por ele, sempre me chamaram assim e hoje em dia faz sentido. Mas carregar um sobrenome patriarcal e colonial já não tá mais fazendo sentido. Mas como me denominar então?

Eu habito uma comunidade, ou melhor, uma comum-diversidade. Uma coletividade. Um território. Me sinto parte disso. Aqui me conecto com as pessoas, com os ciclos da vida, com todos os seres, visíveis e invisíveis. Converso com a cachoeira e com a árvore. Planto milho e colho banana. Construo minha casa. Vivo as quatro estações. Então, pra mim, faz sentido carregar o nome dessa coletividade.

Me assumo agora, e pelo tempo que fizer sentido, como Michele Junana. Que é a continuidade da Michele Caroline Torinelli, e antecede algum outro nome ou o momento em que corpos e nomes já não me contenham nem definam. Compartilho essa reflexão porque ela não é só minha, e cada vez mais convivo com pessoas que adotaram outros nomes que não o do documento. Que bom poder escolher, e não me sentir presa a convenções que já não quero dar continuidade. (Eu tenho um nome espiritual também, que me deram no ciclo de plantio do awaxy eté, o milho sagrado Guarani Ñandewa de acordo com os ensinamentos da Tekowa Xiinguy, nome que eu honro muito e carrego comigo, mas prefiro preservar e utilizar apenas em momentos oportunos e/ou ao redor do fogo, em círculos de confiança. Essa história já rendeu alguns textos e certamente renderá outros.)

Talvez escrever esse texto na data em que convencionaram ser o dia das mães não seja mera coincidência. Viva o matriarcado de Pindorama! Salve a vida coletiva, a autonomia interdependente, as escolhas de como se quer viver e nomear, a consciência histórica e a relação com os ciclos da vida! Aguyjevete!

]]>
http://vidaboa.redelivre.org.br/2021/05/09/prazer-michele-junana-ou-porque-resolvi-deixar-de-usar-meu-sobrenome-oficial/feed/ 0
Diário de obra 3 http://vidaboa.redelivre.org.br/2021/03/12/diario-de-obra-3/ http://vidaboa.redelivre.org.br/2021/03/12/diario-de-obra-3/#comments Fri, 12 Mar 2021 22:16:49 +0000 http://vidaboa.redelivre.org.br/?p=3321

Mulheres em obra

Passei a segunda feira de 8 de março em cima de um telhado com outras mulheres. Aliás, não um telhado qualquer e nem bem um telhado: o suporte de madeira que sustentará o teto verde-morto-mulch-serrapilheira da minha casa. A minha garganta doía, meus lábios e a mucosa interna da minha boca estavam inchados, vermelhos, sensíveis, irritados, mas eu estava feliz.

 

Naquela tarde, apenas entre mulheres, finalizamos como pudemos esta etapa da obra – pintando a parte externa das tábuas com óleo queimado ao entardecer. A etapa foi muito trabalhosa, e muito mais demorada do que imaginava. Colocar os caibros com as madeiras verdes e empenadas. Tirar a craca das tábuas novas mas já mofando depois de alguns dias empilhadas sob lona, uma a uma, no facão ou algo que o valha. Depois lixa (na mão, porque a lixadeira emprestada parou de funcionar misteriosamente na 2a tábua), e ainda passar óleo queimado minuciosamente nas bordinhas laterais, onde elas encaixam uma na outra – ou se pinta esse local antes de pregar ou nunca mais. O óleo queimado é um material reutilizado, barato e que protege muito a madeira.

 

E aí subir as madeiras, medir o vão entre os caibros um a um, serrar na medida exata e ir encaixando e pregando lá em cima. Tudo isso com 105 tábuas. Aliás, mais. Não haviam sido consideradas as brechas entre os caibros, e que as tábuas precisariam ser cortadas. Desespero na obra: vai faltar madeira. Todo um esquema que foi feito pra subir as madeiras de tobata lá pra cima, todo um exaustivo diálogo com a madeireira, impossível de repetir num fim de tarde de sexta feira pra que a etapa pudesse ser finalizada no fim de semana. Começamos na terça, estávamos em 5 pessoas, achei que até sexta já teríamos terminado o telhado todinho, com serrapilheira, dreno e tudo. Doce ilusão.

 

Lembrei de umas madeiras empilhadas na vizinhança que já haviam sido colocadas à disposição. Solidariedade e enjambre total, madeira diferente, mas no final vai ficar pro beiral de trás, nem vai dar pra ver de dentro da casa (já tava imaginando aquela “charmosa” colcha de retalhos).

 

Momentos de cansaço, de estresse, de desafios, mas também de muito trabalho coletivo e aprendizados. Por coincidência – ou não – terminarmos essa etapa no dia 08 de março apenas entre mulheres.

 

Meu sonho inicial para a casinha era de fato construir apenas entre mulheres. Dei uma sondada inicial nesse sentido, mas acabou rolando com homens também – e agradeço muito aos amigos que colocaram sua energia pra subir essa casinha. Mas na tarde dessa segunda, uma ficha caiu: há de continuar prioritariamente entre mulheres.

 

Choris

O diálogo fluiu de outro jeito. O trabalho fluiu de outro jeito. Eu mesma que não havia pego na serra circular ainda durante a obra me vi medindo e serrando as tábuas. E cada vez mais manas disponíveis, com vontade, parceria e experiência, têm aparecido.

 

Nesse momento me dei conta de hermanas próximas que tão passando por processo de reinvenção de suas vidas, saindo de espaços onde colocaram sua energia por meses ou muitos anos, envolvendo relações com homens. Como uma delas me falou, quem tem que estar à mercê procurando uma casa e refazendo suas vidas em pleno auge da pandemia? As mulheres. Normalmente estoura pro lado delas, que já não se submetem a viver certos padrões que drenam suas energias. E lá vão elas, sempre segurando todas as ondas, muitas vezes com crianças, mesmo que destruídas por dentro. Enquanto isso, quem são os reconhecidões, os líderes, os grandes construtores, os proprietários, os xamãs? Não preciso nem dizer né.

 

Así que reconhecer as manas, chamá-las pra trabalhar, além de ser gostoso e gerar um outro clima, é também um ato político. E perceber que somos capazes, também.

 

Desejo força, acolhimento, apoio mútuo e serenidade pra mim e pras hermanas e hermanes; conscientização, abertura pra diálogo e controle de seus ímpetos (pra dizer o mínimo) pros hermanos. Que larguem mão de querer protagonizar tudo sempre. Que silenciem quando se há de ouvir, que falem com o coração quando há de se dialogar. Que valorizem e pratiquem os trabalhos relacionados ao cuidado, aquele trabalho invisibilizado e diário que permite que todo o show aconteça (gracias, Jean e Sabiá, por apoiarem com tanta dedicação na cozinha ❤).

 

Agradeço pricipalmente à força feminina e especialmente à Sofi, Bruna, Helena, Montanha e Ananda que colocaram sua energia diretamente nessa casinha, às outras hermanas que se disponibilizaram e apoiaram de outros modos (como Mirella, Mima e Fernanda), à Bruna e Dani da Yapó que co-fizeram o projeto, à Pati que foi lá ver e disse que a gente é muito valente, muito xondaria de estar construindo essa casinha, e a todas que estão enviando seu mbara’eté. ❤ ❤ ❤ ❤

 

Dia 08 de março não é só dia da mulher, mas aniversário da minha irmã, então agradeço também essas mulheres da minha vida que sempre estiveram aí pro que der e vier há tanto tempo, irmã Vivi e nossa mãe Cida, e agora também Clarinha, que cumpre 3 anos amanhã (essa família metade Peixinha, metade Sagita… Haja Júpiter).

 

Eu tô me recuperando desse baque de saúde misterioso que parece que surgiu de uma goiaba estranhona fermentada que eu comi só a casca – naturóloga mara amiga querida Grá me ajudou a desvendar que a casca da goiaba é rica em tanino, que em excesso dá essa sensação de amarrado na boca. Foi só parar de trabalhar na segunda feira que o corpo pediu arrego. Cansaço e estresse contribuem… O negócio foi forte, irritou gengiva, lábio, fechou garganta, mas com muito descanso, copaíba, própolis e chá de gengibre com cravo esses sintomas quase já passaram totalmente, ficou só a lesera. E que lesera. O corpo exige repouso total.

 

Escrevo essas palavras como exercício de cura e expressão tão necessário, que pelo que já andei conversando, vejo que reverbera muito nas mulheres. Não é à toa que esse processo historicamente masculino de obra me fragilizou justamente na boca e na garganta, canais de expressão.

 

Logo logo eu volto a cantar. Equanto isso, leio e escrevo. A desfrutar do descanso na caverna nessa lua que mingua e fica nova, em Peixes, junto com o sol – a última lua nova desse ciclo solar astrológico. Minguando e avaliando, discernindo o que fica e o que já não satisfaz. Para que o novo possa brotar a partir das boas sementes selecionadas, de um solo rico, trabalhado e descansado.

 

Choris, eu e Ananda. Fotos da Bruna.

]]>
http://vidaboa.redelivre.org.br/2021/03/12/diario-de-obra-3/feed/ 1
Mulher com M http://vidaboa.redelivre.org.br/2021/03/10/mulher-com-m/ http://vidaboa.redelivre.org.br/2021/03/10/mulher-com-m/#respond Wed, 10 Mar 2021 22:30:52 +0000 http://vidaboa.redelivre.org.br/?p=3298

mulher maravilhosa
medíocre

minha mãe, meu mundo
minha miséria, minha morte

muitos matizes

melhor mesmo manter a mente
minguante, mínima
minuciosamente me modelar
mexer minhas mãos meticulosamente

movimentar meu magma
mover minhas manadas
massagear meu mamilo
morder meus medos
mastigar minhas mordaças

machucar minhas máculas

menstruar
mel
mangue
mar

masturbação malemolente
me mostra meu mapa –
músculos
moluscos
membranas
morada

minhas madeixas meneiam
meu manacial

minhas mais memoráveis maneiras
miradas
mentiras
milagres

milagrosas mentiras.
manobras.
minimizam masculinidades
mitigam monstruosidades

malandra
magnânima
moribunda

menina mimosa

moça melindrosa
matronas maquiavélicas
madonas
mártires

marias
madalenas
marielles
malinallis

muitas
mulheres
mistérios
memórias
mensagens

]]>
http://vidaboa.redelivre.org.br/2021/03/10/mulher-com-m/feed/ 0
Diário de obra 2 http://vidaboa.redelivre.org.br/2021/02/17/diario-de-obra-2/ http://vidaboa.redelivre.org.br/2021/02/17/diario-de-obra-2/#respond Wed, 17 Feb 2021 15:14:27 +0000 http://vidaboa.redelivre.org.br/?p=3300 E continua a saga da casa própria…

Sofi e eu na obra, foto do Alan

Seria tão mais fácil simplesmente comprar um negócio pronto, padronizado, como os apartamentos da cidade… Você escolhe, paga (a parte que gargala pra muita gente…) e pronto! Pode ir morar.

A cultura da “fast casa”, que assim como o “fast food”, é carregada de malefícios, de falta de sintonia e sentido. De violência, de impacto negativo, de relações verticais de exploração humanidade-humanidade e humanidade-natureza (como se fossem coisas separadas, assim tem se tratado, e aí que tá o problema…).

Fazer minha própria casa, que desafio! Mas contando com muita ajuda, dá.

Primeiro foi momento de sonhar esse espaço, de conversar com os seres deste lugar pra descobrir onde iria ser (visíveis e invísiveis, pois quem primeiro me indicou que se pá eu gostaria de morar nesse cantinho específico foi a Karyn, que cohabitava comigo. Vista pra cachoeira na montanha! Pronto, me ganhou. Seríamos vizinhas, mas ela seguiu outros rumos.)

 

E desde então, muito trabalho, mas com calma e tranquilidade, observando os ciclos. Contando com a ajuda do Jacson, nascido e criado no Maquiné, conhecedor dessas terras, pra preparar o espaço da obra. Capinamos, abrimos a trilha para chegar ao local, arrancamos tocos e pedras, tiramos portas e janelas de uma casa velha. Cortamos e descascamos uns paus do mato que serão usados na obra.

Teve um mutirão pra tirar a terra superficial de onde será a casinha, separando num monte para ser usada na agricultura, e a terra mais dura e argilosa, mais profunda, em outro monte, para usar futuramente na parede de barro. E assim demos uma pseudo nivelada, abaixamos o ponto mais alto, e tiramos muitas pedras enormes (não precisa ser nivelado certinho pois a estrutura será de madeira e o piso elevado do chão). Viva a força coletiva!

Na sequência, hora de fazer a fundação. Sapatas de concreto com vergalhão, onde serão encaixados os pilares de madeira. Desde o começo que sonhei em fazer a casa, fui conversando com Sofi, Alan e Rossa, amigxs que fazem parte do Território Junana, com quem temos vínculos de apoio mútuo e de afeto. Sofi e Alan com experiência de obra e disponibilidade pra encarar a empreita, Rossa que tem acesso a uma tobata de sua família e se dispõe a manejá-la a serviço da rede (entre tantos outros serviços a que se dispõe). Portanto, já sabia que podia contar com a tobata pra levar os materiais até o local da obra, lá em cima, onde os carros não chegam. Melhoramos o trecho de trilha que já estava aberto, abrimos uma nova trilha até lá. E já sabia que teria braços e corações fortes para me ajudar.

Sapatinhas

E aí começou o trabalho rústico com a tobata, subir areia e brita, muito pesado, muitas levas. Abrindo o espaço pra tobata, tirando pedras. Dale enxada, motoserra, facão. As podas que já vão virando lenha para nossos rezos ao redor do fogo.

Calculamos bem onde seriam as sapatas (mas erros quase sempre acontecem, por mais que se façam e refaçam as medidas…), Alan e Sofi cavaram os buracos, eu fui atrás dos baldes que seriam a forma da parte superficial das sapatas, cortei eles com uma faca aquecida no fogo. E aí dá-lhe virar concreto.

Fizemos um intervalo, as chuvas chegaram e ficaram, e só quase um mês depois retomamos a obra. Enquanto isso eu chafurdei nos orçamentos, nos contatos com as serrarias, nos ajustes do projeto em diálogo com o Chico, da Yapó. E na logística pra conseguir firmar uma data entre chegada das madeiras, vinda de Rossano com a tobata, de Sofi e Alan e ainda de Bruna e Everton, que viriam dar uma mão. E num momento em que a trilha não estivesse mais um lodaçal, que parassem os dilúvios pra que a gente pudesse carregar madeiras morro acima.

Muitas emoções na relação com a serraria e quase que a madeira não chega – e chegou muito verde. Pesada. Desafio na tobata. Muita força, muito trabalho. Mas também muita alegria, muita parceria, muita irmandade. Muitos rangos maravilhosos, muita juçara, muito avaxi, o milho Guarani de nossa roça coletiva. Abundância. Teve até Festa do Avaxi no meio e ritual mágico pra encerrar. Hay que celebrar cada etapa, cuidar do corpo, da mente, das emoções, do espírito. Por todas nossas relações.

Sofi, Rossa, eu e a tobatinha, foto do Alan

As madeiras para a estrutura e para o telhado já estão lá em cima. Também foram tiradas mais pedras e nivelado o chão do puxadinho de trás de casa, que vai ser a área de serviço e  vai ter piso de concreto, com o material que sobrou das sapatas. Rolou preparar, fazer a caixaria, colocar brita e a malha de ferro, agora só falta virar e colocar o concreto. Ficou para depois, depois de um merecido intervalo para descanso e para cuidar de outros aspectos da vida. Em breve montaremos a estrutura da casa e, ojalá na mesma sequência, o telhado.

Vai ser um telhado “vivo-morto”, a mesma base do telhado verde, mas a camada que vai em cima, ao invés de terra, é serra pilheira que vamos tirar da mata em volta (aquela camada de folhas que fica “apodrecendo” no chão da mata, que forma uma capa nutritiva de proteção e que a mata repõe rapidamente). Um teto muito mais leve, mais fácil de fazer e que também cumpre a função térmica e permite ter plantinhas rústicas em cima (já tô de olho nas muitas bromélias que pululam nos arredores).

A proposta da obra é combinar uma relativa rapidez (por isso a escolha da madeira) com utilização de elementos locais (como no caso do teto e da parede de barro). Uma das 4 paredes da casa vai ser de barro, pau a pique (ou pallet a pique), pensando que no futuro será puxado dela um quarto todo de barro. Enfim, garantir primeiro um local mínimo de aconchego (faz anos que moro no roots e tô precisando) pra depois poder ir me fortalecendo, interagindo com o local, me apropriando das técnicas pra poder realizar processos mais lentos com entrega e prazer.

O saneamento será “ecológico” (circulo de bananeiras pras águas da cozinha, pia e chuveiro + banheiro seco, maneira de compostar nossos resíduos corporais transformando em adubo), a água vem das fontes límpidas da montanha, já contamos com energia elétrica, só precisa levar até o local da casinha em si, e há vontade de no futuro encontrar boas maneiras de sustentabilidade energética.

E assim vamos fazendo a mediação entre sonho e realidade, entre as condições atuais e ideais. Segue a obra da vida.

Equipe tobata, Alan na selfie, faltou Bruna e Everton – sem esquecer de todo apoio de Jean e o mbaraeté de Ananda e Tatu e tantes outres que passaram por aqui, carregaram uma tábua, viraram uma pedra, capinaram, contribuíram no feitio dos alimentos e nas buenas vibras. Salve!

]]>
http://vidaboa.redelivre.org.br/2021/02/17/diario-de-obra-2/feed/ 0
Diário de obra 1 http://vidaboa.redelivre.org.br/2021/01/28/diario-de-obra-1/ http://vidaboa.redelivre.org.br/2021/01/28/diario-de-obra-1/#respond Thu, 28 Jan 2021 17:55:47 +0000 http://vidaboa.redelivre.org.br/?p=3289 Aquele meu velho sonho de construir uma casinha no mato está começando a se tornar real…

Já fizemos o projeto, a fundação, agora chegou a vez da estrutura de madeira – etapa que começaria em dois dias, não fosse a chuva que resolveu chegar para ficar.

Um intervalo que me leva a refletir sobre esse processo, rememorar e documentar.

Essa é a segunda vez que planejo construir minha casa. A primeira foi numa experiência de criação de coletividade em Morretes (PR). O meu desejo não era e não é apenas construir uma casa no mato, isoladamente, como uma solução individual pra vida. Necessito e quero ter o meu espaço (e ojalá em breve terei), mas dentro de uma vida que faz sentido, comum, em coletivo, em busca da harmonia de relações com todas as formas de vida.

Precisei ir até os reconditos áridos do México pra ter clareza que o meu lugar é mesmo a Mata Atlântica, bioma em que nasci (já tinha tido esse vislumbre na Chapada dos Veadeiros, lugar mágico e encantador, mas em que não me vi criando raiz). E precisei ter essa experiência em Morretes muito focada nas questões materiais (plantar, construir) pra perceber que coletividade é muito mais que isso, e que a questão crucial gira em torno das relações – com as pessoas, mas não só. Com toda a comunidade viva.

Assim que me conectei profundamente com o Bem Viver. Não basta aprender a plantar e construir: é necessário despatriarcalizar, descolonizar, olhar para relações, trabalhar as comunicações, os afetos, os laços de rede, o espírito, a cultura, a vida em comum em toda sua diversidade. O sentido, uma trama de muitos sentires e sentidos, dessa existência.

Depois de muito caminhar (mais de 3 anos!) conhecendo experiências de Bem Viver, vim parar em Maquiné, e aí todos os meus interesses convergiram: agroecologia, coletividade, permacultura, modo de viver Guarani, espiritualidade, arte, cultura, luta, alegria, redes e … Bem Viver.

Após um primeiro contato no Encontro Regional de Grupos de Agroecologia (Erga Sul) aqui em Maquiné (RS) em maio de 2019, vim me aproximando pouco a pouco do Território Junana, co-ancorador do Erga. O Encontro foi realizado na Tekó Jeapó, escola autônoma Mbya Guarani construída num processo colaborativo em rede.

Passei um mês. Depois voltei, passei outro mês. Deitei minhas sementinhas sagradas de awaxy eté, o milho ancestral Guarani que carregava na minha andança toda, nesse território. Me propus a avaliar nesse ciclo, até a colheita, se esse seria o local para eu ficar. E calhou que sim. E aí fui caminhando o território, observando, conhecendo, adentrando os matos, para ir reconhecendo onde seria o local de levantar uma morada. Depois de um ano de minha chegada aqui é que cheguei a essa definição.

Escolher onde morar é se deixar ser escolhidx pelo território, por todos os seres que aqui habitam. Se abrir pra ouvir. Acompanhar o ciclo da lua, do sol, das estações nesse pedacinho de chão. Fui abrindo o mato (uma capoeira não muito antiga) e comecei a cultivar algumas plantinhas. “Coincidentemente” havia plantado o milho, awaxy eté, não  muito longe dali. Comecei a preparar canteiros, tirar pedras, plantar tabaco e pimenta – e mais milho.

Até que, definido o lugar, comecei a fazer uns rabiscos de como seria essa morada. E decidi contar com o apoio da Yapó, coletivx de arquitetes (e engenheiro) amigues que têm em comum esse caminhar cotidiano de vida boa, o envolvimento com a luta e a cultura dos povos, especialmente Guarani, e a noção de que a vida em coletividade faz muito mais sentido.

E assim, a partir do que aprendi desse (e nesse) território, observando o ciclo do sol, os ventos, as quatro direções, e ouvindo as minhas vontades e necessidades, ouvindo o Espírito, cheguei ao rascunho que a galera da Yapó transformou nesse lindo projeto.

 

 

 

 

]]>
http://vidaboa.redelivre.org.br/2021/01/28/diario-de-obra-1/feed/ 0