Por Michele Torinelli

Três livros que comprei e um livreto que ganhei no Encontro de Escritores e Editoras de Traslasierra. Difícil foi escolher – e difícil mesmo vai ser carregar na mochila.
Na região de Traslasierra, mais precisamente em Los Hornillos, fica La Ronca, um espaço coletivo onde funciona uma padaria, uma rádio e uma editora independente. A proposta começou há dez anos a partir da ocupação de um terreno abandonado, assim como tantas iniciativas pelo país que surgiram após 2001, quando em meio a uma crise política e financeira multidões tomaram as ruas da Argentina.
Em dez dias cinco presidentes se seguiram no poder, chegou-se a declarar estado de sítio e dezenas de manifestantes foram assassinados. Sob o lema “que se vayan todos”, referindo-se aos políticos, as mobilizações populares tacaram fogo no Congresso (literalmente) e propiciaram a criação de diversas experiências de autogestão, que vão desde fábricas ocupadas a espaços culturais, cooperativas e iniciativas de moradia popular.
Algumas pessoas que já atuavam em La Gomera, ocupação no bairro de Barracas na capital federal que conta com padaria, editora de livros e atividades políticas e culturais, vieram para o interior de Córdoba e se somaram a pessoas da região. A ideia inicial em La Ronca era que os envolvidos vivessem na área – que já contava com uma casa, utilizada como sede coletiva enquanto se construíam as novas moradas com técnicas naturais.

La Ronca desde atrás.
Mas se trabalhar em coletivo e experimentar formas horizontais de produção e de difusão das lutas sociais ja é desafiador, descobriu-se que fazer tudo isso e viver junto é ainda mais complicado. Assim que a proposta inicial de moradia foi descartada e colocou-se força nas outras frentes: padaria coletiva, editora Tierra del Sur (que conta com tres sedes, em Buenos Aires, Los Hornillos e no sul de Córdoba) e radio El Grito 95.5 FM, disponível também online.
Autogestão e independência no meio literário
A editora Tierra del Sur faz parte de um movimento maior que, além de outras editoras e escritores independentes, envolve a FLIA – Feira do Livro Independente e Autogestionária, e desemboca em iniciativas como o I Encontro de Escritores e Editoras de Traslasierra, que ocorreu nesse feriado em Nono.
O encontro contou com feira de livros, rodas de conversa e oficinas – como a de “Corpo Poético, onde a dança atravessa o movimento”. Em roda, com os pés no chão, as pessoas foram convidadas a sentir seu corpo, o encontro com o(as) outro(as), com a respiração e com a poesia que circula pelo ar. “Hacerse de aire para vivir en los otros, para que nos respiren” – foi o poema da escritora da região Rocío Pavetti que deu o tom da atividade.
Já na oficina de zine cada um produziu seu livretinho e, no final, escolheu intuitivamente uma frase que constava nele. E eis que surgiu o seguinte poema catártico coletivo:
Tan solo árboles somos.
Alce Negro, jefe Sioux.
La naturaleza de todos los mundos.
¿Que pasa?
Mas allá de lo difícil o doloroso que resulte.
Anclada al núcleo cristalino.
Un segundo.
Soy inextinguible y Pacha amor.
Siete colores vibraron diferentes.
Em conversa sobre editoras independentes, os participantes contaram suas experiências, sua perspectiva de trabalho horizontal, colaborativo e em rede, e do viés político que perpassa as feiras, editoras e publicações – o que implica diretamente no conteúdo das obras. Outro tema importante é a acessibilidade, sendo que as editoras independentes vendem os livros muito mais barato que as comerciais, e chegam em lugares que elas não chegam.
“Além de publicar nossas próprias obras, publicamos coisas que nos interessam, que não estão disponiveis em outros lugares e, principalmente, conteúdos que tenham a ver com as necessidades reais das pessoas da região¨, explicou Teresa Oliva, da editora La Cleta. Sob o viés de trabalho em rede, as editoras compartilham seus arquivos, seu conhecimento acerca do processo de produção e sua agenda, o que favorece o fortalecimento das iniciativas, a multiplicação do conhecimento e, principalmente, encontros entre as pessoas.
Mais do que vender, a proposta é difundir conteúdos relevantes e outras possibilidades de formas de trabalho, calcadas no cooperativismo e na horizontalidade.
As editoras da região podem ser encontradas na feira de Villa de Las Rosas, que acontece todos os sábados – apesar dos entraves que as autoridades têm colocado a partir de um conceito estreito do que é ou não artesanal – e pelo circuito independente de feiras e encontros que atravessa o país.
Aproveito para agradecer o acolhimento de La Ronca, que me recebeu nesses dias, e de tantas pessoas bonitas que conheci pelo caminho – especialmente ao Sebástian Bruzzese, que me acolheu e me introduziu nessa movida. Sigo meus passos mais inspirada, com a certeza de que outros mundos com os quais sonhamos já existem.
Um pouco mais de La Ronca (clique na imagem para ampliar)
- Casa que se construiu inicialmente para moradia. A idea é transformá-la num estúdio musical.
- Comunicação popular comunitária.
- No caminho pra padaria.
- Padaria desde afuera.
- Trabalho na padoca em pleno ~sábado santo~.