O sentido de retiros individuais e ritos coletivos: reflexões a partir de um retiro de Solstício de Verão

Mais um retiro. Organizo minha vida de modo que eu possa fazer essas paradas periódicas. Ficar sozinha. Ficar offline. Momento em que o tempo é outro que o do cotidiano. Em que introspectar, descansar e me cuidar são as prioridades. Presente que me dou para decantar o que já passou, chegar a entendimentos e até mesmo novos olhares sobre o vivido. E escolher as novas sementes e o que seguir cultivando. Cuidar do jardim interno. Arrancar o que se quer arrancar, podar o que se quer podar, adubar o que se quer adubar e plantar as mudinhas do que se quer ter por perto. Cuidar das minhas dores, nutrir os sonhos e amores. Cuidar do corpo, de todos os meus corpos. Fortalecer a mente, a carne, a alma, o espírito.

Tenho já alguma prática em retiros. A verdade é que sempre gostei de ficar sozinha em casa. Em meio aos movimentos da vida e das relações, preciso de tempo e espaço – e silêncio. No decorrer da minha caminhada, me deparei com retiros coletivos, estruturados, ancestrais – e agradeço muito por eles. Caminhadas sagradas e permanências na casa de reza de linhagem Guarani, em jejum e silêncio por cinco dias. Participei por três vezes do Vipassana, retiro coletivo de 10 dias de meditação em silêncio. Dancei uma Dança da Lua no México, e lá também fiquei no apoio de uma Busca de Visão conduzida pela saudosa abuela Margarita. Fiz muitos e muitos auto retiros por Abya Yala, Latinoamérica. Meu método consistia em achar um lugar tranquilo em que pudesse estar em paz, se possível um tanto longe da civilização em meio a matas, águas e montanhas, com minhas medicinas. Às vezes de maneira mais planejada, às vezes menos, só deixando fluir. Mas de qualquer maneira a magia se faz. E justamente escolhi morar e construir minha casa num local de práticas espirituais que me permitisse seguir fazendo esses retiros. Em casa.

Nesse Território Junana onde cohabito, entre outras atividades e em meio à gestão coletiva na mata, realizamos o Rezo do Bem Viver, cerimônia de medicinas em torno de solstícios e equinócios. Antes de ter construído minha morada e ainda vivendo aqui de improviso, comecei ficando em solitude e jejum esporadicamente por um dia – até que resolvi encarar os 21 dias de isolamento e sem alimentos do processo conhecido como “viver de luz”, com ajuda do amigo Rossa. Depois disso, os auto retiros se tornaram cada vez mais comuns, principalmente perto dos solstícios e equinócios. Considero que o período dos equinócios é mais propício para fazer retiros mais longos, pelo fato de a temperatura estar mais amena, os dias e as noites mais equilibrados. E justo perto de um equinócio fiz um retiro que começou com limpezas da ayurveda, se estendendo por 8 dias, guiada por meu amigo francês viajante Fabien. Se minhas andarilhanças diminuíram, agora os seres andarilhos vêm até mim.

Dessa vez, a pausa está se dando entre natal e ano novo. Quatro dias. Escrevo no terceiro dia, porque sei que depois a escrita será outra, se é que será, então optei por escrever sobre retiro em retiro. Talvez também porque seja verão e lua cheia e eu esteja para menstruar, daí a inspiração e a vontade de expressar. Mas difundir, só depois de o retiro acabar. E se confirma mais uma vez a importância que isso tem pra mim, pra minha vida. Pra minha sanidade. Tanto que sinto de compartilhar. Também para criar uma ponte de entendimento com as pessoas que me olham com cara de incompreensão quando digo que estarei incomunicável e em solidão por alguns dias. Que? Como? Por que?, leio em alguns olhares. Se falar em jejum então…. Lembro de, ao final do Vipassana, mestre Goenka sugerir que, ao invés de férias a passeio a cada ano, pessoas adeptas aproveitassem seus dias livres para meditar. Nesse momento da vida a rigidez do Vipassana não faz tanto sentido pra mim, mas o turismo de consumo de modo geral, menos ainda. Então faço meus próprios retiros. É uma escolha pessoal que faz parte do cultivo de um outro modo de vida que não o da produção, do consumo – e do turismo – desenfreados. E que as viagens possam se dar de outros modos, e com outros sentidos.

Mas, apesar de adorar os auto retiros, entendo que não substituem os ritos de passagem estruturados, coletivos, que várias tradições, povos e culturas fazem há tanto tempo à sua maneira. É outra dimensão, outra profundidade, outro poder. E já vou me preparando com alegria para permanecer no apoio da primeira Busca de Visão que vai ser realizada em breve no Pé do Arco Íris, comunidade querida e irmã aqui dos vales de Maquiné. Mas a recíproca é verdadeira: considero que os ritos coletivos não substituem os retiros individuais, um tanto mais informais e corriqueiros. Livres. Possivelmente mais aconchegantes. Pra mim foi bem inspirador ler “Seu sangue é ouro – resgatando o poder da menstruação” e a indicação de que pode ser muito bom descansar, estar só, canalizar o poder criativo em solitude, nos dias em torno do período menstrual. E cada quem sabe qual é o melhor momento pra si, se consegue se desvencilhar por dias, ou apenas por horas, mas a questão é ter essa possibilidade em mente como uma possibilidade real e até mesmo desejável. Intencional. A autora do livro sugere que se coma comidas simples, como sopa, e se cozinhe antes de começar o retiro. Existe a possibilidade de comer simples, de comer pouco, de não comer, de ingerir apenas líquidos e cremes. A experiência vai ensinando, e cada retiro pode ser de um jeito. Mas a ideia é que o foco não seja comida – nem cozinhar. Retirar-se das funções cotidianas, eis a proposta. Esvaziar. E olhar para outras questões, de outras maneiras. Inclusive algumas que a gente insiste em fugir ou ignorar.

Assim que existe todo um planejamento para fazer esses retiros (retirar para conectar – por mais paradoxal que possa parecer), considerando vários fatores. Para mim a equação leva em conta: que seja logo antes e nos primeiros dias da menstruação, preferencialmente; perto de solstícios e equinócios, para vivenciar conscientemente essas passagens do ciclo da Terra em relação ao Sol; as fases da lua; minhas agendas pessoais e coletivas. Se puder ser em período de chuva, também é bom. Usar a Mandala Lunar tem contribuído para que eu consiga me organizar para equilibrar esses fatores (e acompanhar metereologia e previsão do tempo também). Considerar os ciclos, o clima e o tempo tanto dentro quanto fora. E estabelecer relações entre eles.

Não quero convencer ninguém a fazer retiros, mas compartilhar essa experiência e contribuir para que possa ser considerado algo importante, legítimo e, à sua maneira, produtivo. Considero muito mais produtivo vislumbrar os sentidos, traçar direções, planejamentos e avaliações de vida, do que sair fazendo à torto e à direito. Nessas o planeta está sendo consumido pelo “excesso de produtividade humana”. Tem a ver com patriarcado também. Colonialismo. Melhor fazer como vovó ensinou e pisar devagarinho… Como tantos povos ensinam… Cachimbar… Meditar…. Ritualizar… Descansar… Conectar. Quanto mais a gente conecta com o que está dentro, mais a gente conecta com o que está ao redor – e percebe que essa dicotomia nem existe. É uma mentira que a gente insiste em sustentar. Acredito que os retiros contribuem para que possamos melhor nos relacionar com o cosmos, com os ciclos e com a vida como um todo. Que contribuem para o bem viver coletivo na Terra. E agradeço a cada vez por poder e escolher me retirar.

 

 

Antes do Solstício de Inverno de 2023, também fiz um retiro, e achei esse poema em meio aos meus escritos de então:

 

É preciso voltar

para o mar.

É preciso

mergulhar.

 

Atrás da cachoeira

é o meu lugar.

 

Ela me chama,

a avó da avó da avó,

a avó do mundo.

Lá debaixo,

ela me chama.

 

Ela me chama

no meu sonho

no ciclo do meu ventre

na minha intuição

no que nutre a minha alma

no que me faz dizer

sim.

 

Ela me chama

no que sinto que me falta

na cicatriz exposta

na dor nas costas

no que me faz dizer

não.

 

Eu escuto o seu chamado.

E mergulho.

 

Fujo de todas as demandas

obrigações

interações

distrações.

“Já volto”.

 

Olho para onde a linha do horizonte

encontra a Grande Água.

“Já estou indo”.

 

Olho pro fundo de meu mar.

 

Sem celular

sem precisar fazer faxina

ou almoçar.

 

Me vejo refletida na água.

E mergulho em mim.

 

E descanso.

E choro.

E dou risada.

E me entendo.

Me desentendo.

Me acolho.

Nutro essa ursa que habito.

Que me habita.

Ursa marinha.

 

O melhor que tenho a fazer

é cuidar de mim.

Cuidar do meu corpo.

Me conectar com meu eu todo.

Me permitir viver um ritmo de vida

mais tranquilo,

em consonância com a dança cósmica

do universo.

 

E mergulhando dentro

eu encontro o Todo.

 

Agradeço, vó do mundo.

Agradeço todas as guias e guardiões.

Agradeço por existir

nessa louca aventura terrestre

de transformação.

 

Eu sou

uma mulher

livre e

selvagem.

 

E eu me amo

pra dedéu.

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