Trechos de “A serpente cósmica: o DNA e a origem do saber”, de Jeremy Narby. Rio de Janeiro, editora Dantes, 2018.
Capítulo 1 – A televisão da floresta
Vi-me cercado por algo que achei serem duas jiboias gigantescas, medindo uns setenta centímetros de espessura e doze a quinze metros de comprimento. Fiquei apavorado. “Essas cobras enormes estão aqui, estou de olhos fechados, vejo um mundo espetacular de luzes brilhantes e, de repente, no meio de pensamentos confusos, elas começam a falar comigo sem palavras, explicando que não passo de um ser humano. Sinto meu espírito quebrar e, na rachadura, me dou conta da arrogância ilimitada dos meus pressupostos. Realmente é verdade que sou apenas um ser humano, que o tempo todo acha tudo compreender, enquanto, ali, me vejo numa realidade mais poderosa, que de forma alguma compreendo e da qual, na minha arrogância, sequer suspeitava a existência. Tenho vontade de chorar, diante da imensidão dessas revelações, mas percebo que inclusive essa autocomiseração faz parte da arrogância. Fico tão envergonhado que nem consigo mais ter vergonha. Mas preciso vomitar de novo.”
Levantei-me totalmente desnorteado e, pedindo sinceras desculpas às cobras fluorescentes, passei por cima delas como um equilibrista bêbado e fui até uma árvore ao lado da casa, junto da cozinha, num plano mais baixo.
Agora relato essa experiência com palavras, num papel, mas, naquele momento, a própria linguagem parecia insuficiente. Eu tentava dar um nome ao que via, mas, na maior parte do tempo, as palavras não combinavam com as imagens. Era uma situação muito perturbadora, como se tivesse sido cortado o meu último elo com a “realidade”. Esta última, aliás, parecia agora uma lembrança longínqua e unidimensional. Mesmo assim, eu conseguia compreender mentalmente meus sentimentos, do tipo: “mísero ser humano que perdeu sua linguagem e tem pena de si mesmo”.
Nunca me senti tão profundamente humilde como ali. Apoiado na árvore, vomitei de novo. Em ashaninka, ayahuasca se diz kamarampi, do verbo kamarank, vomitar. Fechei os olhos e só conseguia ver vermelho. Vi o interior do meu corpo, todo vermelho. “Não estou vomitando um líquido e sim a cor, um vermelho elétrico, como sangue. Minha garganta dói. Abro os olhos e sinto presenças a meus lados. Uma presença escura à minha esquerda, e uma clara à minha direita, também a um metro. Como estou ligeiramente virado para a esquerda, a presença escura não me incomoda, pois tenho consciência dela. Mas me assusto ao tomar consciência da presença clara e me viro para vê-la. Na verdade, não consigo vê-la com os olhos, pois sinto-me tão mal e controlando tão pouco a razão que nem tenho a menor vontade. Conservo lucidez suficiente para saber que não estou vomitando sangue. Passado um momento, me pergunto quanto ao que fazer. Meu descontrole é tamanho que me entrego a instruções que parecem vir de fora (da presença escura?): é hora de parar de vomitar, é hora de cuspir, de assoar o nariz, de lavar a boca, mas sem engolir a água. Estou com sede, mas meu corpo diz que eu não beba água.
A certa altura, lavando o rosto, levantei a cabeça e vi uma mulher ashaninka, com o tradicional vestido branco de algodão (cushma), a mais ou menos sete metros de mim, parecendo estar em levitação, acima do chão. Vi na escuridão que clareara. A iluminação lembrava a de cenas em “noite americana”, isto é, filmadas de dia, com filtro escuro, para dar impressão noturna. Olhando para a mulher, que me observava calada, naquela noite subitamente clara, senti-me de novo profundamente surpreso com a familaridade de toda aquela gente com uma realidade que abalava meus axiomas e que eu ignorava completamente. (p. 14 – 16)
Capítulo 2 – Antropólogos e xamãs
O principal enigma com que me deparei no decorrer da minha pesquisa sobre a ecologia dos ashaninka foi: essas pessoas extremamente práticas, vivendo quase autônomas na floresta amazônica e respondendo, em geral, com franqueza às minhas perguntas, dizem que o seu formidável saber botânico vem de alucinações induzidas por certas plantas. Como é possível?
E a questão se tornava ainda mais intrigante, uma vez que os conhecimentos dos povos indígenas da Amazônia cada vez mais espantavam os etnobotânicos – como bem ilustra o exemplo da composição química do ayahuasca. Esse preparado alucinógeno, provavelmente conhecido há milênios, é uma combinação de duas plantas. A primeira contém um hormônio secretado naturalmente pelo cérebro humano, a dimetiltriptamina (DMT), inativo por via oral, pois é inibido por uma enzima do aparelho digestivo, a monoamina oxidase. A segunda planta do preparado contém, justamente, diversas substâncias que protegem o hormônio do ataque dessa enzima, o que levou Richard Evans Schultes, o etnobotânico mais famoso do século XX, a dizer: “Perguntamo-nos como povos de sociedades primitivas, sem conhecimentos de química e de fisiologia, conseguiram encontrar uma solução para a ativação de um alcaloide, através de um inibidor da monoamina oxidase. Por pura experimentação? Talvez não. Os exemplos são muitos e poderiam ser ainda mais numerosos com novas pesquisas”.
Temos então indivíduos que, sem microscópios eletrônicos nem formação em bioquímica, escolhem folhas de um arbusto – entre as cerca de oitenta mil espécies amazônicas de plantas superiores –, contendo um determinado hormônio cerebral, e as combinam com uma substância que bloqueia a ação de determinada enzima do aparelho digestivo, encontrada num cipó, com a finalidade de modificar deliberadamente o seu estado de consciência.
É como se conhecessem as propriedades moleculares das plantas e a arte de combiná-las.
E quando perguntamos como sabem essas coisas, respondem que tal conhecimento vem diretamente das plantas alucinógenas. (p. 18 – 19)
O termo “xamanismo” foi inventado pelos antropólogos para classificar as práticas menos compreensíveis dos “primitivos”.
A palavra “xamã” é de origem siberiana. Tem uma etimologia duvidosa. Em língua tungúsica, um saman é alguém que toca um tambor, entra em transe e cura pessoas. Os primeiros observadores russos que relataram as suas atividades os descreveram unanimemente como doentes mentais.
A partir do início do século XX, os antropólogos progressivamente ampliaram o uso desse termo siberiano e encontraram xamãs na Indonésia, em Uganda, no Polo Norte e na Amazônia. Uns tocavam tambores, outros bebiam decocções de plantas e cantavam. Uns pretendiam curar, outros lançavam feitiços. Foram sempre considerados neuróticos, epiléticos, psicóticos, histéricos ou esquizofrênicos. […]
Por volta da metade do século XX, no entanto, os antropólogos começaram a não só perceber que os “primitivos” não existem como tal mas também que os xamãs são menos loucos que se pensava. A mudança foi brusca. Em 1949, num ensaio que foi um divisor de águas, Lévi-Strauss afirmou que o xamã, longe de ser um louco, é uma espécie de psicoterapeuta – com a diferença que “o psicanalista escuta, enquanto o xamã fala”. Para Lévi-Strauss, o xamã é sobretudo um criador de ordem, que cura as pessoas transformando as suas dores “incoerentes e arbitrárias” numa “forma ordenada e inteligível”.
Essa visão do xamã/ordenador tornou-se o credo de uma nova geração de antropólogos. De 1960 a 1980, as autoridades mais reconhecidas da disciplina definiram o xamã sobretudo como um criador de ordem, alguém que domina o caos ou evita a desordem.
É claro, as coisas não se passaram de forma tão simples. Até o final dos anos 1960, alguns sobreviventes da antiga escola continuaram a considerar o xamanismo uma doença mental. A partir dos anos 1970, surgiu um novo discurso, apresentando o xamã não só como um criador de ordem mas também como um especialista em toda espécie de ofício: ao mesmo tempo “médico, farmacêutico, psicoterapeuta, sociólogo, filósofo, advogado, astrólogo e padre”. Durante os anos 1980, por fim, alguns iconoclastas afirmaram que os xamãs são, antes de tudo, criadores de desordem!
Quem são, então, os xamãs? Esquizofrênicos ou criadores de ordem? Homens aptos a todas as funções ou criadores de desordem?
A resposta, me parece, está no espelho. Explico-me: quando a antropologia era uma jovem ciência nascente, ainda pouco à vontade consigo mesma, inconsciente da natureza esquizofrênica da sua metodologia, o xamã foi visto, sobretudo, como doente mental. Mais tarde, quando a antropologia (“estrutural”) pensou chegar ao status de ciência e os antropólogos tratavam de encontrar ordem dentro da ordem, o xamã se tornou criador de ordem. A partir do momento em que a disciplina passou a viver uma crise de identidade (“pós-estruturalista”), sem saber mais se é uma ciência ou uma forma de interpretação, o xamã “começou a desempenhar” todo tipo de ofício. Mais recentemente, certos antropólogos começaram, enfim, a questionar a busca obsessiva de ordem por parte da disciplina e identificaram xamãs cujo poder reside precisamente em “falsear a busca de ordem”.
Tudo indica, então, que a realidade escondida por trás do conceito de “xamanismo” sistematicamente remete o olhar do antropólogo a si mesmo, seja qual for o ângulo da abordagem. (p. 22 – 24)
Capítulo 3 – A mãe da mãe do tabaco é uma cobra
Os habitantes de Quirishari tinham perfeitamente dado a entender que eu não deveria colecionar amostras de plantas. Podia, entretanto, estudar à vontade o modo como utilizavam a floresta e experimentar a sua medicina vegetal.
Assim sendo, sempre que tinha algum problema de saúde e as pessoas diziam conhecer um remédio, eu experimentava. Os resultados não só ultrapassaram minhas expectativas como também a minha compreensão da realidade. Por exemplo, eu sofria de dor nas costas desde os 17 anos (exagerei em jogar tênis na adolescência…). Havia consultado médicos europeus que nada me propuseram, além de injeções de cortisona e tratamentos térmicos. Continuava a ter dores. Em Quirishari havia alguém chamado Abelardo Shingari, conhecido por sua “medicina do corpo”. Ele se propôs a curar a minha dor nas costas com uma infusão de sananga, na lua nova, avisando apenas que eu sentiria frio e que, por dois dias, meu corpo pareceria feito de borracha. Além disso, eu veria algumas imagens.
Mantive-me cético, achando que se realmente fosse possível curar uma dor crônica nas costas, bebendo meia xícara de chá vegetal, certamente a medicina ocidental saberia. Por outro lado, pensei que valia a pena experimentar, pois o método não seria menos eficaz que as injeções de cortisona e eu estaria enriquecendo minhas investigações antropológicas.
Certa manhã, bem cedo, no dia seguinte à lua nova, bebi a infusão de sananga. Vinte minutos depois, fui tomado por uma onda de frio. Fiquei gelado até os ossos. Comecei a transpirar grandes gotas de suor frio, a tal ponto que tive que torcer minha camiseta várias vezes. Após seis horas bem desagradáveis, a sensação de frio passou, mas eu tinha perdido toda a coordenação motora. Não conseguia andar sem cair. Por cinco minutos, vi uma enorme carreira de luzes multicoloridas no céu – minhas únicas alucinações. A falta de coordenação durou 48 horas. Na manhã do terceiro dia, minha dor nas costas desapareceu e, até hoje, nunca mais voltou.
Pessoalmente, não daria crédito a esse tipo de coisa se não tivesse vivido. Não procuro, então, contando isso, convencer quem quer que seja da eficácia da sananga. Por outro lado, no que me toca, apenas posso dizer que Abelardo praticou comigo uma magia que mais parecia bioquímica do que “psicossomática”. (p. 34 – 35)
Uma atitude comum para as pessoas de Quirishari era ensinar pelo exemplo, e não pela explicação. Os pais, então, chamavam os filhos a acompanhá-los no que faziam. Desconhecia-se a nossa frase habitual “deixa o papai em paz que ele está trabalhando”. Não eram bem vistas as explicações abstratas. Quando uma ideia parecia realmente ruim, liquidava-se o assunto dizendo: “Es pura teoría”. As duas palavras-chave que serviam para tudo em nossas conversas eram practica e tactica – provavelmente por serem essenciais para a vida na floresta tropical. […]
Após cerca de um ano em Quirishari, eu tinha consciência de que o senso prático dos meus anfitriões era bem mais confiável, naquele ambiente, que a minha compreensão academicamente informada, da realidade. O saber empírico dos ashaninka era incontestável. Em contrapartida, as explicações que davam sobre a origem desse saber eram, invariavelmente, extravagantes e, para mim, inacreditáveis. Por exemplo, em duas ocasiões Carlos e Aberlado me mostraram uma planta que curava a picada, potencialmente mortal, da cobra jergón. Observei com atenção a planta, achando que a informação poderia vir a ser útil. Para que eu não esquecesse, os dois indicaram as manchas brancas que se viam no caule e pareciam presas de cobra. Mais tarde perguntei a Carlos como as virtudes da planta contra a jergón tinham sido descobertas e ele disse ser “graças a essas presas, que são o sinal que a natureza deu”.
De novo, achei que se fosse verdade a ciência ocidental saberia. Além disso, não podia acreditar que houvesse uma correspondência entre um réptil e um arbusto, como se por trás dessas duas espécies se escondesse uma inteligência comum, comunicando-se por meio de símbolos visuais. A meu ver, meus amigos “animistas” apenas interpretavam, com incontestável requinte, coincidências de ordem natural. (p. 36-37)
Um dia, na casa de Carlos, presenciei uma cena no limite do surreal. Um homem, chamado Sabino, apareceu com um bebê doente nos braços e dois cigarros de marca peruana numa mão, pedindo que Carlos curasse a criança. Este último acendeu um dos cigarros e, com grandes inalações e exalações, se pôs a soprar fumo em cima do bebê. Depois de chupar um ponto preciso na barriga da criança, ele cuspiu e disse ser aquilo o mal. Repetiu a operação algumas vezes e, mais ou menos três minutos depois, declarou resolvido o problema. Sabino saiu, depois de muito agradecer. Carlos, colocando o segundo cigarro atrás da orelha, disse: “Volte sempre”.
Naquele momento, pensei comigo mesmo que, no final das contas, minha credulidade tinha limites e ninguém me faria acreditar que cigarros industriais pudessem realmente curar uma criança doente. Pelo contrário, o fumo soprado em cima dela só podia agravar o seu estado.
Alguns dias depois, numa das nossas conversas gravadas, voltei à questão:
– Quando se faz uma cura, como aquela de outro dia, para o Sabino, como o tabaco age? Sendo você quem fuma, como ele pode curar a pessoa que não fuma?
– Como sempre digo, o tabaco tem a propriedade de mostrar a realidade das coisas. Eu consigo vê-las como são. E ele expulsa todas as dores.
– Entendo, mas como se descobriu essa propriedade? O tabaco dá espontaneamente na floresta?
– Há um lugar, Napiari, com grandes quantidades de tabaco.
– Onde fica?
– No Perene. Soubemos do seu poder pelo ayahuasca, esse outro vegetal, porque é a sua mãe.
– Quem é a mãe de quem? O tabaco ou o ayahuasca?
– O ayahuasca.
– O tabaco é seu filho?
– É seu filho.
– Porque o tabaco é menos forte? É por isso?
– Menos forte.
– Você disse que tanto o tabaco quanto o ayahuasca contêm Deus?
– Disse.
– E disse que as almas gostam de tabaco. Por quê?
– Porque o tabaco tem o seu método, a sua força. Ele atrai os maninkari. É o melhor contato que há para a vida de um ser humano.
– E essas almas, como são?
– Eu sei que toda alma, viva ou morta, é como as ondas de rádio que voam pelos ares.
– Onde?
– Nos ares. Isso quer dizer que você não vê as almas, mas elas estão por aqui, como as ondas de rádio. Quando você liga o rádio, consegue captá-las. O mesmo se passa com as almas: com o ayahuasca e o tabaco, conseguimos vê-las e ouvi-las.
– E quando o ayahuasquero canta, como é possível que se ouça uma música como nunca se ouviu, de tão bonita?
– Bom, isso atrai os espíritos e, como eu sempre disse, se pensarmos bem… (longo silêncio). É como um gravador: você coloca ali, liga e ele começa a emitir som: hum, hum, hum, hum, hum. E você começa a cantar, acompanhando. Quando canta, já está no processo de compreensão, pode seguir a sua música, porque ouviu a sua voz. É como acontecem as coisas e é possível ver. Como da outra vez, quando Ruperto cantava. (p. 37-38)
– Tabaquero e ayahuasquero são a mesma coisa.
– A mesma coisa.
– Bom, gostaria também de saber por que vemos cobras ao beber ayahuasca.
– Porque a mãe do ayahuasca é uma cobra. Como vê, têm a mesma forma.
– Mas achei que o ayahuasca fosse a mãe do tabaco…
– E é.
– Nesse caso, quem é o verdadeiro dono dessas plantas?
– O verdadeiro dono dessas plantas é como Deus, são os maninkari. São eles que nos ajudam. Têm uma existência que não conhece fim nem doença. Por essa razão é que dizem ao ayahuasquero que enfia a cabeça no quarto escuro: “Se você quer que eu o ajude, faz as coisas bem feitas; eu lhe dou poder não para proveito pessoal, mas para o bem de todos”. Então, é claramente onde reside a força. Acreditando nas plantas, você terá mais vida. É o caminho. É por isso que se diz existir um caminho muito estreito, pelo qual ninguém pode passar, nem com um facão. Não é um caminho reto, mas é um caminho. Creio nessas palavras, assim como naquelas que dizem que a verdade não está à venda, que a sabedoria pode ser sua, mas é feita para ser compartilhada. Ou seja, é errado fazer comércio dela para ganhar dinheiro. (p. 41-42)
Capítulo 4 – Enigma no Rio
Durante esse período, aprendi a dar palestras públicas para explicar por que é ecologicamente útil deixar a floresta tropical aos cuidados dos seus habitantes ancestrais. Nessas apresentações, mostrava a racionalidade da utilização que faziam desse frágil meio ambiente, insistindo, por exemplo, no papel-chave que a policultura e o desmatamento de pequenas superfícies têm nas técnicas agrícolas indígenas. Mas quanto mais falava, mais tinha consciência de estar omitindo boa parte do que pensava.
O que eu não dizia é que os índios em questão pretendem que o saber empírico deles, atestado pela ciência, vem de alucinações induzidas por certas plantas. Eu mesmo, supervisionado por eles, havia experimentado esses vegetais alucinógenos e o encontro com as cobras fluorescentes tinha alterado profundamente a minha forma de considerar a realidade. Alucinando, eu havia aprendido coisas importantes para mim – a começar pelo fato de que sou apenas um ser humano, intimamente ligado às outras formas de vida, e que a verdadeira realidade é mais complexa do que os nossos olhos nos fazem habitualmente ver e crer. E estava convencido disso. (p. 46-46)
Ao voltar do Rio, tinha certeza de que escreveria este livro. Minha intenção inicial era a de simplesmente levantar o enigma. Esperava estabelecer uma espécie de cartografia exploratória desse impasse epistemológico: servimo-nos do saber dos povos indígenas, mas, quando se trata da origem desse saber, damos meia-volta.
Na verdade, ao tomar ayahuasca em Quirishari eu já havia passado pelas placas de sinalização que diziam “está ultrapassando os limites da ciência” e chegado a um território irracional, subjetivo, assustador e fascinante. Sabia, então, ser um falso impasse, com uma saída que o olhar racional não percebia e dando para um mundo de espantosa força.
Apesar disso, nem por um segundo imaginei encontrar solução para o enigma, convencido de se tratar de um fenômeno paradoxal por natureza, fadado ao não esclarecimento. (p. 50)
Capítulo 5 – Estereogramas
[…] a escrita é uma maneira de prolongar o pensamento […] (p. 51)
Para mim ficara claro que, em suas visões, os ayahuasqueros têm acesso a uma informação empiricamente verificável sobre as propriedades das plantas. Pensei, então, que o enigma do saber alucinatório podia se resumir a uma única questão: tal informação provém do interior do cérebro humano, como exige o ponto de vista científico, ou do mundo exterior, das plantas, como afirmam os xamãs? (p. 58)
De fato, há DNA no interior do cérebro humano, assim como no mundo exterior das plantas, uma vez que a molécula da vida, contendo a informação genética, é a mesma para todas as espécies. O DNA pode mesmo ser considerado fonte de informação tanto externa quanto interna […]. (p. 62)
Capítulo 6 – Correspondências
Mais ou menos por toda Amazônia ocidental, o ayahuasca é consumido à noite, geralmente em completa escuridão, por pessoas em jejum, devendo ter evitado alimentos gordurosos, salgados doces ou picantes, assim como bebidas alcoolicas e relações sexuais. A sessão alucinatória é normalmente conduzida por uma pessoa experiente, que dirige as visões com cantos.*
Em muitas regiões, os ayahuasqueros aprendizes isolam-se por vários meses na floresta, ingerindo grandes quantidades de alucinógenos e alimentando-se sobretudo com banana e peixe. São alimentos particularmente ricos em serotonina e o consumo a longo prazo do alucinógeno diminui precisamente os níveis desse neurotransmissor no cérebro. (p. 67)
* A maioria dos autores diz que o ayahuasca é tomado numa completa escuridão, o que garante certa tranquilidade e acentua as visões […]. Segundo Gebhart-Sayer (1986), os xamãs shipibo-conibo esperam que todos os fogos e lâmpadas dos vizinhos sejam apagados para beberem o ayahuasca “pois a luz danifica os olhos durante as visões” (p. 193). Mas Reichel-Dolmatoff (1972, p. 100) assinala que os tukano bebem o ayahuasca à luz de uma tocha vermelha. Luna (1986, p. 145) relata que um dos seus entrevistados participara ocasionalmente de sessões noturnas à luz do luar e Whitten (1976, p. 155) descreve uma sessão ao redor de uma “fogueira em fraca combustão”.
Ao percorrer os escritos de autoridades em mitologia, descobri com surpresa que o tema dos seres duplos de origem celeste e criadores de vida está muito espalhado pela América do Sul e até mesmo pelo resto do mundo. A história que os ashaninka contam sobre Avíveri e sua irmã, que criam a vida através da transformação, não passava de uma das centenas de variantes sobre o tema dos “gêmeos divinos” – exatamente como a célebre serpente emplumada dos astecas, Quetzalcoatl, símbolo da “energia vital sagrada”, e o seu irmão gêmeo Tezcatlipoca, ambos filhos da serpente cósmica Coatlicue.
[…] passagem do livro de Lévi-Strauss: “(…) em asteca, a palavra coatl tem o duplo sentido de ‘serpente’ e ‘gêmeo’. O nome Quetzalcoatl pode então ser ao mesmo tempo interpretado com ‘Serpente emplumada’ ou ‘Gêmeo magnífico’”. Uma serpente dupla, de origem cósmica, símbolo da energia vital sagrada?! Entre os astecas?! (p. 69)
Chegando em casa, achei que precisava caminhar na floresta para organizar as ideias. Comecei o passeio recapitulando a história desde o início e procurava manter um olho voltado para o DNA e outro para o xamanismo, querendo realçar os pontos de convergência… Passei em revista os diferentes pontos comuns até então detectados e depois caminhei em silêncio. Estava sentindo um bloqueio. Pensando nesse bloqueio mental, lembrei-me dessa frase de Carlos Pérez Shuma: “olhe para a FORMA”.
Pela manhã, na biblioteca, eu havia consultado várias enciclopédias sobre DNA e, de passagem, notado que, na maioria das vezes, a dupla hélice era descrita como uma escada, ou uma escada de corda entrelaçada, ou uma escada em espiral. Imediatamente em seguida, perguntando-me se havia escadas do lado do xamanismo, outro estalo: “AS ESCADAS! As escadas dos xamãs, ‘símbolos da profissão’ (segundo Métraux), presentes nos temas xamanísticos do mundo inteiro (segundo Eliade)!
Voltei correndo para o escritório e, mergulhando no livro de Mircea Eliade, O xamanismo e as técnicas arcaicas do êxtase, descobri existirem “inúmeros exemplos” de escadas xamânicas, nos cinco continentes, ora “escadas rotativas”, ora “escadarias”, ora “cordas entrelaçadas”. Na Austrália, no Tibete, no Nepal, no antigo Egito, nas Américas do Sul e do Norte “o simbolismo da corda, assim como o da escada, implica necessariamente a comunicação entre o céu e a terra. Através de uma corda ou de uma escada (como também de um cipó, uma ponte, uma cadeia de flechas etc), os deuses descem à terra e os homens ascendem ao céu”. Eliade inclusive cita o Antigo Testamento, na passagem em que Jacó sonha com uma escada cujo topo atinge o céu e pela qual “os anjos do Senhor sobem e descem”. Segundo Eliade, a escada xamânica é a forma primeira da noção de eixo do mundo, ligando os diferentes níveis do cosmo, e que descobrimos em muitos mitos da criação sob a forma de uma árvore.
Até então, eu tratava a obra de Eliade com certa desconfiança, mas de repente vi-a sob uma nova luz. Comecei a percorrer ao acaso seus outros escritos que tinha comigo e descobri neles serpentes cósmicas! Agora entre os aborígenes australianos, que consideravam a criação da vida como obra de um “personagem cósmico relacionado à fecundidade universal, a Cobra do Arco Íris”, com poderes simbolizados por cristais de quartzo. Ora, os desana da Amazônia colombiana muitas vezes representavam a anaconda cósmica, o criador da vida na terra, acompanhada de um cristal de quartzo.
Como era possível que aborígenes australianos, separados do resto da humanidade há quarenta mil anos, e bebedores de ayahuasca amazônicos contassem a mesma história?! (p. 69-71)
“(…) Em toda parte onde a natureza é venerada como animada em si própria, ou seja, inerentemente divina, a serpente é reverenciada como seu símbolo”. (p. 72)
Campbell distingue dois importantes pontos de ruptura na trajetória mitológica da serpente cósmica. Por um lado, “no contexto do patriarcado dos hebreus da Idade de Ferro do primeiro milênio a.C., a mitologia adotada das civilizações precedentes, do neolítico e da Idade do Bronze (…) é virada do avesso, tornando o seu argumento o contrário exato do original”. Desse modo, no jardim do Éden temos elementos comuns a diversas narrativas da criação: a serpente, a árvore e os seres duplos. Porém, pela primeira vez, a serpente, “antes venerada como divindade no Levante, desde pelo menos sete mil anos antes da composição do Livro do Gênese”, assume papel de vilão. Javé, que a substitui no papel do criador, acaba por submeter, um pouco mais tarde, “essa serpente do mar cósmico, o Leviatã”.
Para Campbell, a segunda reviravolta ocorre na mitologia grega, com Zeus assegurando o reino dos deuses patriarcais do Olimpo, submetendo a enorme serpente Tífon, filha de Gaia e encarnação das forças da natureza. (p. 72-73)
A cultura ocidental rompeu com a serpente/princípio vital, isto é, com o DNA, desde que adotou um ponto de vista exclusivamente racional. Os outros povos que praticam o que chamamos de ‘xamanismo’ se comunicam com o DNA. Paradoxalmente, foi a parte da humanidade que se separou da serpente que conseguiu, três mil anos mais tarde, descobrir a existência material do DNA, em laboratório.
Parece existirem técnicas diferentes, em lugares diferentes, para aceder ao conhecimento do princípio vital. Em seus transes, os xamãs conseguem, de certo modo, reduzir sua consciência ao nível molecular. É precisamente o que descreve Reichel-Dolmatoff, comentando suas visões diretamente no gravador, depois de ter tomado ayahuasca (‘Pareciam […] microfotografias de plantas, preparações microscópicas coloridas; como, às vezes, num livro de patologia’).
É como eles aprendem a combinar os hormônios cerebrais com os inibidores da monoamina oxidase ou descobrem quarenta fontes diferentes de paralisantes musculares, ao passo que a ciência tem sido capaz apenas de imitar as suas moléculas. É no sentido literal que eles dizem ter recebido dos seres criadores da vida a receita do curare. Devem ser tomadas ao pé da letra as suas palavras, quando dizem que o seu saber tem origem em seres que veem nas alucinações.
Segundo xamãs do mundo inteiro, a comunicação com os espíritos se estabelece pela música. Para os ayahuasqueros, é praticamente inconcebível entrar no mundo dos espíritos e permanecer em silêncio. Angelika Gebhart-Sayer fala em ‘música visual’ projetada pelos espíritos aos olhos do xamã – espécie de imagens tridimensionais que se transformam em som e que o xamã só tem que imitar, emitindo melodias correspondentes. Seria preciso verificar se o DNA emite som… (p. 74-75)
Foi nessa altura que me lembrei de Michael Harner. Ele não tinha mencionado se tratar de uma informação reservada aos mortos e moribundos? Um medo irracional me invadiu e senti a urgência de compartilhar essas ideias com alguém mais. Telefonei a um velho amigo, também escritor, e, um tanto descontroladamente, fiz um resumo das correspondências que havia encontrado naquele dia: os gêmeos, as serpentes cósmicas, as escadas de Eliade, as duplas hélices de Campbell e as de Amaringo. Conclui dizendo: “Há uma última correlação, um pouco menos clara que as outras. Os espíritos vistos nas alucinações são imagens tridimensionais e sonoras e se expressam numa linguagem de imagens tridimensionais e sonoras. Ou seja, são constituídos por sua próprias linguagem, como o DNA”.
Longo silêncio do outro lado da linha e, em seguida, meu amigo disse:
– Entendo, e assim como o DNA, eles se duplicam para comunicar a informação.
– Espere um pouco – respondi –, vou tomar nota disso que acaba de dizer.
– Justamente, em vez de falar comigo, você devia escrever isso – ele devolveu.
Segui o conselho e, escrevendo sobre a relação entre os espíritos alucinatórios feitos de linguagem e o DNA, me lembrei do primeiro versículo do evangelho de são João: “No início, havia o logos” – a palavra, o verbo, a linguagem.
Naquela noite, foi difícil pegar no sono. (p. 77-78)
Francis Crick, ganhador de um prêmio Nobel pela codescoberta do DNA, sugeria que a molécula da vida era de origem extraterrestre – exatamente como os povos “animistas”, ao afirmarem que o princípio vital é uma serpente cósmica!
Eu nunca tinha ouvido falar da hipótese de Crick, chamada “panspergia dirigida”, mas sabia ter acabado de encontrar uma nova correspondência, bastante séria, entre a ciência e o complexo formado pelo xamanismo e a mitologia. […]
Pela teoria científica habitual sobre a origem da vida, pequenas moléculas chamadas aminoácidos teriam se associado aleatoriamente, numa espécie de “sopa primordial”, formando os primeiros microorganismos. É uma teoria enraizada em teses evolucionistas elaboradas na metade do século XIX, segundo as quais o conjunto das espécies evoluiu no tempo, partindo dos organismos unicelulares mais simples e culminando, no final de um processo muito longo de seleção natural, nos organismos “superiores” mais complexos. Se, partindo das bactérias, com o devido tempo pôde-se chegar ao ser humano, era razoável acreditar que moléculas desorganizadas também pudessem levar, no decorrer de suas inúmeras colisões cegas, a uma simples célula.
Crick, no entanto, considerava que essa teoria do acaso criador tinha um sério defeito: tinha sido elaborada antes da ciência ter compreendido, a partir da década de 1950 e graças aos progressos da biologia molecular, que os mecanismos básicos da vida não são apenas idênticos para todas as espécies, como são também extremamente complexos, e, quando se tenta calcular, mesmo de forma grosseira, a probabilidade da emergência fortuita de tal complexidade, obtêm-se números inconcebivelmente pequenos, para não dizer nulos.
Assim sendo, a molécula do DNA, no entanto exímia em armazenar e duplicar informação, é incapaz de se constituir sozinha. São as proteínas que fazem esse trabalho, mas elas são incapazes de se reproduzir sem a informação contida no DNA. A vida, então, é uma incontornável síntese desses dois sistemas moleculares. Ultrapassando a famosa questão do ovo e da galinha, Crick calculou a probabilidade de uma única proteína (capaz de participar da construção da primeira molécula de DNA) ter emergido ao acaso. Ora, em todas as espécies vivas as proteínas são exatamente constituídas pelos mesmos vinte aminoácidos, que são pequenas moléculas. A proteína média é uma cadeia longa, feita de aproximadamente duzentos aminoácidos, escolhidos entre esses vinte e alinhados numa devida ordem. Pelas leis combinatórias, existe uma probabilidade em vinte, multiplicado duzentas vezes por si mesmo, para uma proteína específica emergir por acaso. Esse número, que se escreve 20²ºº e equivale aproximadamente a 10 elevado a 260, é incomensuravelmente superior ao número de átomos no universo observável (que é de 10 elevado a 80)! (p. 80-81)
Ao tirar os olhos do livro de Crick, vi que já estava escuro lá fora. Sentia uma estranha mistura de espanto e agitação. Como um detetive míope que segue a pista debruçado em cima da sua lupa, eu tinha caído num buraco sem fundo. Há meses fazia um esforço enorme para desvendar o enigma do saber alucinatório dos povos indígenas da Amazônia ocidental, procurando com obstinação a passagem oculta no aparente beco sem saída. Apenas duas semanas antes vislumbrara pela primeira vez a pista do DNA, no livro de Harner. Desde então, havia desenvolvido a hipótese sobretudo de maneira intuitiva. Meu objetivo certamente não era elaborar qualquer nova teoria sobre a origem da vida. E, no entanto, esse pobre antropólogo que mal sabe nadar, flutuava num oceano cósmico cheio de serpentes microscópicas e bilíngues. (p. 82)
Capítulo 7 – Mitos e Moléculas
Eu já não precisava mais dessas precisões genéticas para ter certeza de que os povos praticantes de xamanismo afirmavam a unidade oculta da natureza, confirmada pela biologia molecular, por terem acesso, usando uma via indireta, precisamente à realidade da biologia molecular. (p. 86)
Às vezes, a serpente alada toma a forma de um dragão, o animal mítico e duplo por excelência, que vive na água e cospe fogo. Segundo o Dicionário dos símbolos, o dragão representa “a união de dois princípios opostos. Sua natureza andrógina é mais claramente simbolizada como Ouroboros, a serpente-dragão que “encarna a união sexual permanentemente autofecundadora, como a sua cauda enfiada na boca indica” (p. 89).
Nota da p. 91 (nota 92): […] Eliade (1949) escreve: “Existem inúmeras lendas e mitos representando Serpentes ou Dragões que controlam as nuvens, vivem em charcos e abastecem o mundo de água” (p. 154-5). Segundo Mundkur (1983): “Entre os aborígenes da Austrália, a crença mítica mais disseminada cita uma gigantesca Serpente do Arco-íris, uma criatura primordial associada quase sempre aos poderes befazejos da fertilidade e da água. Ela (às vezes ele) é a fonte dos cristais mágicos de quartzo, chamados kimba, dos quais o homem-medicina retira o seu poder” (p. 58). Segundo Chevalier e Gheerbrant (1982): os infernos e os oceanos, a água primeva e a terra profunda formam uma só matéria-prima, uma substância primordial, que é a da serpente. Espírito da água primeva, ela é o espírito de todas as águas, as subterrâneas, as que correm à superfície da terra, ou as celestes” (p. 869). Davis (1986) escreve sobre Damballah, a Grande Serpente do mito haitiano: “Ela gerou a criação na Terra, serpenteando pelas encostas de lava derretida para esculpir os rios, que, como veias, se tornaram os canais por onde fluiu a essência de toda a vida. Forjou metais no calor abrasador e, erguendo-se novamente ao céu, lançou raios sobre a terra que geraram as pedras sagradas. Então estendeu-se ao longo do caminho palmilhado pelo Sol e partilhou a sua natureza. No interior da sua pele em camadas, a serpente reteve a fonte da vida eterna e a partir do zênite largou-a nas águas que encheram os rios que nutririam as pessoas. Quando a água atingiu a terra, surgiu o Arco-íris e a serpente tomou-o como esposo. O amor os entrelaçou numa hélice cósmica que abarcava os céus” (p. 177). Davis (1996) discute as noções cosmológicas dos índios kogi, tal como foram relatadas por Dolmatoff: “No começo, havia apenas escuridão e água. Não existia Terra nem Sol nem Lua nem nada que fosse vivo. A água era a Grande Mãe. Era o espírito no interior da natureza, a fonte de todas as possibilidades. Era vida em formação, vazio, pensamento puro. A água assumiu muitas formas. Como mulher, sentou-se numa pedra negra no fundo do mar. Como serpente, circundava o mundo. Era filha do Senhor do Trovão, a Mulher-Aranha cuja teia abraçava os céus. Como Mãe do Gelo, vivia numa lagoa escura no alto da Sierra. Como Mãe do Fogo, habitava em todos os lares. Na primeira madrugada, a Grande Mãe começou a pensar. Sob a forma de serpente, colocou um ovo no vazio e esse ovo se tornou o universo” (p. 43) – ver também Reichel-Dolmatoff (1987). A propósito do simbolismo da serpente, Bayard (1987) escreve: “Na relação com as profundezas da água primeva e com a vida, as serpentes se entrelaçam e estabelecem o nó da vida, o mesmo que encontramos na via osiriana da concepção druida do Nwyre (…)” (p. 74).
Uma linha de DNA é muito menor que a luz visível aos seres humanos. Mesmo driblando os limites do olho nu com o mais poderoso dos microscópios óticos, não se pode distingui-la: o DNA é cerca de 120 vezes mais fino que o menor comprimento de onda luminosa visível.
O núcleo de uma célula tem, aproximadamente, o tamanho de dois milionésimos de uma cabeça de alfinete. O DNA, com dois metros de comprimento, se compacta no interior desse volume minúsculo, enrolando-se infinitamente em torno de si mesmo, ou seja, conciliando comprimento extremo e pequenez infinitesimal, como as serpentes mitológicas.
Um ser humano médio é composto por cerca de cem bilhões de células. Isso significa que existem, aproximadamente, duzentos bilhões de quilômetros de DNA num corpo humano – o que corresponde a setenta viagens de ida e volta entre Saturno e o Sol. O leitor poderia viajar a vida inteira num Boeing 747, em velocidade máxima, e sequer cobriria um centésimo dessa distância. O nosso DNA pessoal pode circundar a Terra cinco milhões de vezes.
Todas as células do mundo – humanas, animais, vegetais ou bacterianas – contêm DNA. Além disso, todas estão cheias de água salgada, com um teor de sais minerais que se assemelha ao dos oceanos: choramos e transpiramos, basicamente, água do mar. O DNA, então, banha na água, que desempenha um papel crucial no estabelecimento da sua forma e, assim, da sua função. De fato, é o meio líquido que confere ao DNA a sua forma de escada em caracol, porque suas quatro bases (adenina, guanina, citosina e timina) são insolúveis na água e se viram para o interior da molécula, de modo a formar, associando-se aos pares, os degraus da escada. E, depois, enrolam-se numa pilha em espiral, de forma a evitar ao máximo o contato com o meio úmido que as cercam. A forma de escada em espiral do DNA é uma consequência direta do ambiente líquido da célula. O DNA está associado à água, assim como as serpentes míticas. (p. 93)
No interior do núcleo, o DNA se enrosca e se estende, se contorce e ondula. Frequentemente os cientistas comparam a forma e os movimentos dessa longa molécula com os de uma serpente. O biólogo molecular Christopher Wills, por exemplo, escreve: “As duas cadeias de DNA parecem duas cobras enroladas em si mesmas, numa espécie de ritual amoroso”.
Resumindo, o DNA é mestre em transformação na forma serpentina, vivendo na água e sendo, ao mesmo tempo, muito comprido e minúsculo, simples e duplo.
Exatamente como a serpente cósmica.
Eu sabia que muitos povos xamânicos utilizam imagens diferentes da “serpente cósmica” para explicar a criação da vida, mencionando, sobretudo, uma corda, liana, escada ou escadaria de origem celestial, ligando céu e terra.
Mircea Eliade mostrou que essas diferentes imagens formam um tema comum, que ele chamou axis mundi, eixo do mundo, encontrado nas tradições xamânicas de todo o planeta. Segundo Eliade, o axis mundi abre acesso ao além e ao saber xamânico, por existir uma passagem paradoxal, normalmente reservada aos mortos, mas que os xamãs conseguem atravessar mesmo vivos, passagem em geral guardada por uma serpente ou um dragão. Para Eliade, o xamanismo é o conjunto de técnicas que permitem abordar essa passagem, chegar ao eixo, adquirir o saber a ele associado e voltar – na maior parte das vezes com o objetivo de curar pessoas. (p. 97-98)
Notas da p. 99 (nota 102 e 103):
[102] […] “O motivo da corda do céu, que já tínhamos encontrado entre os campa e os machiguenga, e encontramos agora entre os piro, está muito difundida em tribos da floresta tropical. Sob uma ou outra forma, é assinalado pelos kaxinawa, marinawa, jívaro, canelo, quijo, yagua, huitoto, diversas tribos cuiana (korobohana, taulipang e warrau), bacairi, umotina, bororo, mosetene e tiatinagua; é também assinalado entre os lengua, mataco, toba e vilela da região do Chaco (…) o conceito de escada celestial é claramente equivalente ao de corda celeste e foi assinalado entre os conibo, tucuna e shipaya; a árvore celeste é também mencionada pelos sherente, cariri, chamaco, mataco, mocovi e toba – entendida, em todos os casos, como tendo, no passado, ligado o céu e a terra. A extensão desse motivo pode ainda mais se ampliar se nos dermos ao trabalho de reconhecer como equivalente a noção de uma cadeia de flechas indo até o céu, imagem que encontramos entre os conibo, shipibo, jívaro, waiwai, tupinambá, chiriguano, guarayú, cumana e mataco” (Weiss, p. 470). Mais adiante, Weiss observa: “(…) é particularmente interessante observar que os taulipang identificam a Corda Celeste com a mesma liana com uma forma peculiar em escada que meus informantes campa adotaram como sendo a sua inkíteca” (p. 505).
[103] Bayard (1987) escreve em seu livro O Simbolismo do caduceu: “Em primeiro lugar, devemos reter a associação de elementos que se encontram em todas as civilizações, da Índia ao Mediterrâneo, passando pelo Egito, Palestina e Mesopotâmia suméria: a pedra, a coluna, a árvore truncada e sagrada, com uma ou duas serpentes entrelaçadas. A varinha se associa ao culto a árvore ou da pedra sagrada, é a moradia da divindade, de onde irradia e transmite o seu poder àquele que por ela vem rezar (…) O culto da serpente esteve então ligado à arte de curar desde os tempos mais remotos. Mesmo na pré-história pode-se encontrar esse culto estelo-solar” (p. 161-3). A propósito do caduceu, Chevalier e Gheerbrandt (1982) escrevem: “A serpente tem um duplo aspecto simbólico, benéfico e maléfico, apresentado pelo caduceu, por assim dizer, como o antagonismo e o equilíbrio; esse equilíbrio e polaridade são sobretudo os das correntes cósmicas, retratadas mais geralmente pela dupla espiral”; no esoterismo budista, por exemplo, “a vara do caduceu corresponde ao eixo do mundo e as serpentes ao kundalini”, essa energia cósmica que se encontra no interior de cada ser (p. 153-5). […] Segundo Bayard (1987), as duas serpentes enroladas do caduceu, o ying/yang do T’ai Chi e a suástica ou cruz gamada dos hindus, simbolizam “uma força cósmica, com direções de rotação invertidas” (p. 134). Sobre a equivalência entre o caduceu e o ying/yang, ver também Guénon (1962, p. 153).
Métraux explica ainda que esses xamãs bebem “uma infusão preparada com um cipó cuja forma sugere uma escada”. É verdade, a liana do ayahuasca é muitas vezes descrita como uma escada ou mesmo uma dupla hélice (p. 101).
Os xamãs compreendem muito claramente o significado dessas metáforas, que eles chamam tsai yooshtoyhto, expressão que Townsley traduz como “linguagem-twisting-twisting”, em inglês.
A palavra twist tem a mesma raiz que two, dois, e twin, gêmeo. Assim, mais do que torcido, torcionado ou enrolado, twisted tecnicamente significa “duplo e enrolado em volta de si mesmo”. Aquilo que Townsley denomina twisted language corresponde então à linguagem dupla e entrelaçada.
Por que motivo os xamãs yaminawa se servem dessa maneira de expressão? Um deles diz: “Com os meus koshuiti eu quero ver; ao cantar, examino cuidadosamente as coisas; a linguagem dupla e entrelaçada me aproxima delas, mas não demais; com palavras normais, eu me choco contra, mas com palavras duplas e entrelaçadas eu rodo à sua volta e consigo vê-las claramente”.
Para Townsley, todas as relações xamânicas com os espíritos são “deliberadamente construídas de maneira elíptica e multi-referencial, para refletir a natureza refratária dos seres que são o seu objeto”. E ele conclui: “Os yoshi são seres verdadeiros que, ao mesmo tempo, ‘são e não são’ como as coisas que eles animam. Não têm uma natureza estável nem unitária e por isso, paradoxalmente, a linguagem dupla e entrelaçada que permite ‘vê-los à maneira deles’ é a única capaz de descrevê-los. A aproximação metafórica, nesse caso, não falseia as coisas, mas, pelo contrário, revela-se a única maneira de nomeá-las corretamente”. (p. 103)
Capítulo 8 – Os olhos da formiga
Numa bela tarde de primavera, sentado no jardim com meus filhos, com o sol brilhando e os passarinhos cantando nas árvores, pensei: eu que sou um puro produto da racionalidade do século XX, precisando de números e de moléculas para acreditar na realidade de uma coisa – e não de mitos –, via-me diante de números mitológicos relativos a uma molécula, dos quais não se podia duvidar. No interior do meu corpo mesmo, ali tomando sol, havia duzentos bilhões de quilômetros de DNA. Eu estava infinitamente conectado por cabos e até bem recentemente nem sabia disso! Esse número astronômico realmente significava apenas um “fato inútil, mas divertido”, como diriam alguns cientistas? Ou indicava que nosso DNA, pelo menos em suas dimensões, é cósmico?
Alguns biólogos descrevem o DNA como “uma forma antiga e superior de biotecnologia”, contendo, em igual volume, “até cem bilhões de vezes mais informação do que os nossos chips informáticos mais sofisticados”. Assim sendo, será possível, ainda, falar de “tecnologia”? Na verdade, sim, pois não há outra palavra para qualificar esse suporte informático capaz de se autoduplicar. A molécula de DNA, com uma dezena de átomos de espessura, constitui uma espécie de tecnologia última: é orgânica e tão miniaturizada que se aproxima dos próprios limites da existência material. (p. 108)
Minha experiência pessoal com as alucinações induzidas pelo ayahuasca era muito limitada, mas suficiente para sugerir uma pista. O ayahuasquero Ruperto Gomez, que me havia iniciado, comparava o preparado alucinógeno à “televisão da floresta”. E eu, de fato, vi, entre outras coisas, uma sequência de imagens alucinatórias desfilar numa velocidade inaudita, como se realmente se tratasse de uma transmissão vinda de fora do meu corpo, mas captada no interior da minha cabeça.
Eu não tinha conhecimento de qualquer mecanismo sobre o qual pudesse basear essa hipótese de trabalho, mas sei que o DNA é um “cristal aperiódico” que capta e transporta elétrons com eficiência e emite, em frequências ultrafacas e no limite do mensurável, fótons, isto é, ondas eletromagnéticas – e isso em maior escala que qualquer outra matéria viva. Eu dispunha, assim, de um responsável potencial pelas transmissões: a rede geral de vida baseada no DNA. (p. 114)
[…] a rede global da vida, à base de DNA, emite ondas de rádio ultrafracas, no limite do que é atualmente mensurável, que podemos, no entanto, perceber em estado desfocado, como nas alucinações ou sonhos. E como o cristal aperiódico do DNA se apresenta sob a forma de duas serpentes entrelaçadas, duas fitas, uma escada em espiral, uma corda ou cipó, vemos, em nossos transes, serpentes, escadas, cordas, cipós, árvores, espirais, cristais etc. E tendo em vista ser o DNA um mestre da transformação, podemos igualmente ver jaguares, jacarés, touros, ou qualquer outro ser vivo. Mas os apresentadores preferidos pela direção da televisão DNA são visivelmente as serpentes fluorescentes e gigantescas.
Isso me leva a crer que a serpente cósmica demonstra certa tendência narcisista – ou, pelo menos, parece obcecada pela própria reprodução, mesmo que apenas em imagem. (p. 120)
Capítulo 9 – Receptores e transmissores
O gosto dos maninkari pelo fumo sempre me parecera estranho. Até então eu percebia os “espíritos” como uma espécie de personagem imaginário que não podia realmente usufruir de substâncias materiais. Além disso, considerava o tabagismo um vício, sendo pouco provável que os espíritos (caso existissem) sofressem das mesmas toxicomanias que os seres humanos. Mas estava decidido a não deixar que dúvidas assim me impedissem. Pelo contrário, tomaria os xamãs ao pé da letra. E todos são categóricos: os espíritos têm um apetite quase insaciável por tabaco.
Comecei a explorar essa pista passando alguns dias na biblioteca. E inclusive telefonei várias vezes a um especialista em mecanismos neurológicos da nicotina, querendo aprofundar meus conhecimentos e assegurar-me de não estar criando conexões imaginárias – sendo a neurologia a última das minhas competências. Resumo o que vim a saber:
No cérebro humano, cada célula nervosa, ou neurônio, tem bilhões de receptores em sua superfície, que são proteínas especializadas no reconhecimento e captação de neurotransmissores específicos ou de substâncias semelhantes. Desse modo, a molécula de nicotina, que estruturalmente se assemelha ao neurotransmissor acetilcolina, encaixa-se bem no receptor previsto para ele em certos neurônios. Esse receptor, que atravessa a membrana da célula, é uma grande proteína que inclui não só uma “fechadura” (o ponto de acoplagem para as moléculas vindas do exterior) como também um canal que, em geral, está fechado. Quando uma chave é introduzida na fechadura – isto é, quando uma molécula de nicotina se acopla ao alto do receptor –, o portão do canal se abre, permitindo a entrada seletiva de um influxo de íons, ou átomos carregados eletricamente de cálcio e de sódio. Estes últimos disparam uma corrente ainda mal compreendida de reações elétricas no interior da célula, que culmina numa excitação do DNA, que, do núcleo do neurônio, ativa a transcrição de toda uma série de genes, sobretudo os que correspondem às proteínas constitutivas dos receptores nicotínicos.
Quanto mais nicotina dermos aos nossos neurônios, mais o DNA contido em seu interior ativa a construção de receptores para essa substância – dentro de certos limites, é claro. É como se explica, pensei, o apetite quase insaciável dos espíritos pelo tabaco: quanto mais recebem, mais querem! (p. 122-123)
O tabaco da Amazônia é cultivado sem fertilizantes químicos nem pesticidas e não contém nenhum dos ingredientes adicionados ao tabaco, tais como óxido de alumínio, nitrato de potássio, fosfatos de amônio, acetato de polvinilo e uma centena de outros, que chegam a dez por cento da matéria fumável. Durante a combustão, um cigarro libera cerca de quatro mil substâncias, a maioria tóxicas. Algumas inclusive radioativas, fazendo do cigarro a principal fonte de radiação na vida cotidiana do fumante médio. Com dois ou três maços por dia, ele absorve, segundo estimativas, o equivalente em radioatividade a cerca de duzentas e cinquenta radiografias pulmonares por ano. O fumo de cigarro está diretamente implicado em mais de vinte e cinco doenças graves, entre as quais 17 tipos de câncer. Na Amazônia, pelo contrário, o tabaco é considerado um remédio. Para “curandeiro” ou “xamã”, os ashaninka usam a palavra sheripiári. Tão velhos que sequer sabiam a idade que tinham, mas apesar das rugas traírem o passar dos anos, continuavam admiravelmente lúcidos e saudáveis. (p. 124)
Ao longo das minhas leituras, descobri, surpreso, que o comprimento de onda pelo qual o DNA emite esses fótons corresponde exatamente à banda estreita da luz visível (p. 129).
[…] segundo os pesquisadores que a mediram, apesar de sua intensidade corresponder “à de uma vela situada a uma dezena de quilômetros”, ela, ao mesmo tempo, exibe “um grau de coerência espantosamente elevado, comparável ao de um laser”. (p. 130)
Procurei então o meu amigo jornalista científico, que rapidamente me explicou: “Uma fonte de luz coerente como um laser dá uma sensação de cores vivas, de luminescência, assim como a impressão de profundidade holográfica”.
A explicação forneceu um elemento essencial: as descrições pormenorizadas de experiências alucinógenas com ayahuasca invariavelmente mencionam luzes vivas e coloridas. Da mesma maneira, segundo os autores sobre a dimetiltriptamina (p. 130).
Decidi então telefonar para o laboratório universitário de Fritz-Albert Popp, na Alemanha. Ele teve a gentileza de ceder algum tempo a um antropólogo desconhecido, fazendo pesquisa sobre o xamanismo alucinatório amazônico. Durante a conversa, que confirmou a maior parte das minhas impressões, perguntei se ele já havia considerado a possibilidade da existência de uma ligação entre a emissão de fótons pelo DNA e a consciência. E ele respondeu: “Já, a consciência pode ser constituída pelo campo eletromagnético formado pelo conjunto dessas emissões. Mas, como sabe, compreendemos ainda muito pouca coisa quanto às bases neurológicas da consciência”.
Ao consultar a literatura sobre biofótons, algo me deixou atônito: em quase todas as experiências realizadas para medir os biofótons, os pesquisadores utilizavam quartzo.
O quartzo é um cristal, ou seja, uma disposição extremamente regular de átomos que vibram a uma frequência muito estável. Tais particularidades fazem do quartzo um excelente receptor e emissor de ondas eletromagnéticas, razão pela qual ele é muito usado em rádios, relógios e na maioria das tecnologias eletrônicas. Os cristais de quartzo são também utilizados no xamanismo do mundo inteiro. Gerardo Reichel-Dolmatoff escreveu: “Os cristais de quartzo, ou cristais de rocha translúcida, têm desempenhado um papel fundamental nas crenças e nas práticas xamânicas em muitos momentos da história e em diversos pontos do mundo. […]”
Os xamãs da Amazônia, em particular, consideram que os espíritos podem se materializar, ficando invisíveis nos cristais de quartzo. Alguns sheripiari chegam inclusive a diariamente alimentar suas pedras com sumo de tabaco… (p. 132-133)
Apesar de tantas incertezas, gostaria de continuar a desenvolver a minha hipótese, propondo a seguinte ideia: e se o DNA, estimulado pela nicotina ou pela dimetiltriptamina, ativasse não só a sua emissão de fótons (que inundam a nossa consciência na forma de alucinações), mas também a sua capacidade de captar fótons da rede mundial formada pelo conjunto dos seres vivos à base de DNA? Isso significaria que a própria biosfera, que pode ser considerada “uma unidade mais ou menos plenamente interligada”, seria uma fonte de imagens. (p. 134)
Capítulo 10 – O ângulo cego da biologia
Minha hipótese sugere que o DNA descrito pelos cientistas corresponde às essências animadas, comuns a todas as formas de vida, às quais os xamãs se referem e com as quais se comunicam em transe. No entanto, a biologia moderna se fundamenta na ideia de que a natureza não tem inteligência nem objetivo, ou seja, não está animada por espírito algum nem pode se comunicar. (p. 136)
Os biológos pensaram, então, ter encontrado a verdade e não hesitaram em chamá-la “dogma”. Estranhamente, essa nova convicção quase não foi abalada pela descoberta, nos anos 1960, de um código genético que é o mesmo para todos os seres vivos e apresenta semelhanças gritantes com os sistemas humanos de codificação, ou línguas. Para transmitir informação, o código genético usa elementos (A, G, C e T) que individualmente não têm significado, mas que formam unidades de significação quando combinados, da mesma maneira que as letras formam palavras. O código genético contém “palavras” de 64 letras, todas com significado, incluindo dois sinais de pontuação. (p. 138)
Quando comecei a ler os textos recentes sobre DNA, escritos por biólogos moleculares, algumas descrições me deixaram boquiaberto. Eu estava em busca, é verdade, de coisas fora do comum, com tudo me levando a acreditar que o DNA e seu mecanismo são uma tecnologia sofisticadíssima de origem cósmica. Mas, ao devorar milhares de páginas de literatura biológica, foi um verdadeiro mundo de ficção científica que descobri, confirmando explicitamente minha ideia. Proteínas-enzimas são simplesmente descritas como “robôs miniaturizados” e as células como “fábricas”. Os ribossomos se apresentam como “computadores moleculares” e o próprio DNA como um “texto”, um “programa”, uma “língua” ou “dados”. Basta uma leitura literal de textos biológicos contemporâneos para chegar a conclusões demolidoras – e, mesmo assim, página a página constatei total ausência de espanto, por parte da maioria dos autores, para os quais a vida parecia continuar sendo um “fenômeno físico-químico normal”.
Um dos destalhes que mais me perturbavam era o comprimento astronômico do DNA contido no corpo humano: duzentos bilhões de quilômetros! Então pensava ser ele a corda celeste a que se referem os ashaninka: está dentro de nós e é bastante longa para ligar céu e terra. O que achavam os biólogos desse número cósmico? A maioria sequer o mencionava e os demais o registravam, em nota ou à margem de seus trabalhos, como “algo inútil mas divertido”. (p. 139)
Em biologia, essa questão parecia previamente respondida. O DNA é um “simples produto químico”, o ácido desoxirribonucleico, para ser mais exato. Pode-se descrevê-lo tanto como molécula quanto como linguagem (fazendo dele uma espécie de substância informacional da vida), mas não considerá-lo como sendo consciente, ou vivo, uma vez que os produtos químicos são por definição inertes.
Fiz-me a pergunta: como pode a biologia pressupor o DNA não consciente, sem nem mesmo compreender o funcionamento do cérebro humano, a sede da nossa consciência, também elaborada a partir de instruções contidas no DNA? Como pode a natureza não ser consciente, sendo nossa consciência fruto da natureza? (p. 141)
Capítulo 11 – “Por que levou tanto tempo?”
Os acordos da ECO 92, assinados pelos governos do mundo, receonhecem o valor dos conhecimentos dos povos indígenas em matéria de botânica e biodiversidade, além de afirmar a importância de remunerá-los “equitativamente”. Apesar disso, como creio ter mostrado nesse livro, o mundo ocidental não está pronto para se envolver num diálogo verdadeiro com esses povos, dado o bloqueio epistemológico que impede a ciência biológica de receber aquele saber.
A meu ver, tal incapacidade para o diálogo paradoxalmente constitui uma vantagem para os povos indígenas, dando-lhes algum tempo para que se preparem. De fato, se a hipótese aqui elaborada estiver correta (mesmo não coincidindo com os pressupostos atuais da biologia), isso significa que eles dispõem não só de preciosos conhecimentos sobre plantas e remédios específicos como também de uma verdadeira fonte insuspeitada de saber biomolecular, de valor financeiro inestimével, relevante principalmente para a ciência do futuro.
Quero voltar à Amazônia e conversar com representantes de organizações indígenas sobre as eventuais consequências da hipóteses apresentada neste livro. Entre outras coisas, direi que a ciência materialista está prestes a alcançar o saber xamânico mas que ela não tem freios, e sua sede de conhecimentos é guiada por fins comerciais que excluem as dimensões éticas e espirituais.
Cabe aos indígenas decidirem qual estratégia adotar. (p. 150)
De onde vem a vida? Talvez a resposta não possa ser conhecida para simples seres humanos. Era o que, há muito tempo, Chuang-Tzu dava a entender quando escreveu. “Há um começo. Há um começo que ainda não começou a ser. Há um começo que ainda não começou a ser um começo que ainda não começou a ser. Há o ser. Há o não ser. Há o não ser que ainda não começou a ser. Há o não ser que ainda não começou a ser um não ser que ainda não começou a ser. Subitamente, há o não ser. Acabo agora de dizer alguma coisa. Mas não sei se o que disse realmente disse alguma coisa ou não.”
No final, a sabedoria exige não só a investigação de inúmeras coisas, mas também a contemplação do mistério. (p. 165)