Junho de 2013 revisitado: disputa de enquadramentos entre noticiários, redes e ruas

A série “Junho de 2013 revisitado” é uma adaptação  de textos a partir de “A máscara e a multidão: enquadramento dos Anonymous em junho de 2013 no Brasil”, dissertação de Michele Torinelli (UFPR, 2015), disponível na íntegra aqui. As imagens também compõem a pesquisa.

Leia também: Junho de 2013 revisitado: Curitiba

 

Manifestante mascarado se coloca entre câmera e repórter durante ato de 17 de junho de 2013 em Curitiba.

O mote das manifestações de junho de 2013 foi a pauta do transporte. Seu estopim, que fez com que a revolta explodisse para além da questão da tarifa e tomasse proporção e abrangência multitudinária, foi a violência policial. Com a adesão de grande parcela da população, surgiram conflitos em torno do uso da violência por parte dos manifestantes, a participação ou não de partidos políticos e da multiplicidade e legitimidade das pautas.

Um fator que se destacou nesse processo é a cobertura em rede, propiciada por protagonistas ou testemunhas de eventos que postam seus conteúdos na internet e os compartilham nas redes sociais digitais. A comunicação com potencial de amplo alcance é estendida a vários públicos com as mídias digitais, que se somam aos suportes e linguagens que as antecedem: por meio de mesclas e remixes, outros discursos e formatos se contrapõem à hegemonia dos veículos de comunicação de massa. Entretanto, apesar das possibilidades que se apresentam, o concreto oligopólio da radiodifusão e da mídia impressa no Brasil implica num gargalo à diversidade de discursos que compõem a realidade e revela um entrelaçamento entre elites midiáticas, políticas e econômicas.

É necessário reconhecer as limitações do potencial emancipador da comunicação em redes digitais, distanciando-nos de um discurso utópico acerca da internet, mas entender que, mesmo assim, ela é apropriada por atores contestatórios como uma brecha pela qual é possível disseminar, criar, subverter, remixar e inclusive, muitas vezes inadvertidamente,  reproduzir discursos. Como indica Martín-Barbero (2003, p. 271), existem brechas na situação e situações nas brechas – que, nesse caso, evidenciam-se no fato de a comunicação massiva também estar presente na comunicação em redes digitais e continuar tendo um alcance incomparável, principalmente por meio da televisão.

Segundo pesquisa realizada em 2014 pela Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República, 65% dos brasileiros assistem televisão diariamente por mais de três horas. A TV aberta chega a 91% dos lares brasileiros; a TV paga, a 31%. O uso da internet, apesar de ter crescido exponencialmente, sendo que começou a se popularizar na década de 1990, ainda está bastante abaixo do referente à TV: 53% dos brasileiros nunca acessaram ou não têm o hábito de acessar a internet. E há uma nítida divisão geracional nesse acesso: 77% dos entrevistados com menos de 25 anos acessam a internet; já entre aqueles com mais de 65 anos, somente 3% a utilizam. O estudo conclui que “o hábito de acessar a internet é mais comum entre a população mais jovem, nos maiores centros urbanos e nos estratos de maior renda e escolaridade”, elementos que caracterizam também grande parte dos manifestantes de junho de 2013.

Outro fator a ser considerado é a influência da comunicação de massa nas interações nas redes digitais. Indivíduos e agentes coletivos compartilham material da imprensa e produtos culturais massivos na internet, muitas vezes em concordância com a versão do material, mas outras justamente para criticar sua abordagem – o que revela um movimento de vai e vem entre discurso dominante e dominado, cooptação e resistência, numa dinâmica que envolve hibridizações e complexas disputas e construções de sentido. De qualquer maneira, muito do que é veiculado nas redes sociais digitais tem origem na mídia de massa – mas, por outro lado, as redes digitais também passaram a pautá-la.

Manifestantes registram as falas e imagens de ativistas na praça Rui Barbosa com seus celulares, enquanto os ônibus permanecem parados.

Sendo assim, a possibilidade de veiculação de múltiplos discursos na internet, em diversos formatos, é entendido como uma brecha: seria um erro desprezar a relevância da
comunicação em redes digitais nesse processo – assim como seria reducionista entendê-la
como causa . As redes digitais são um importante aspecto desse momento político – pois,
como já destacamos, para além de ser um ambiente, estão entramadas na dinâmica organizativa e na linguagem das manifestações – na estrutura de mobilização e nos repertórios –, assim como em suas disputas de enquadramento.

A adesão de tantas pessoas em torno das manifestações de junho deu-se devido a uma combinação entre oportunidade política e enquadramentos da mídia de massa e dos ativistas nas redes sociais digitais, o que permitiu mobilizar multidões para irem às ruas. Em junho de 2013, atores engajados conseguiram amplificar seu enquadramento – que, por consequência, sofreu vários outros reenquadramentos, inclusive por parte da imprensa, os quais também foram novamente reenquadrados nas ruas e nas redes digitais.

A relação dos protestos com as redes digitais pode ser percebida a partir do conceito de estrutura do mobilização (TARROW, 2009), que diz respeito tanto à divulgação quanto à organização das manifestações. Alguns elementos observados durante a pesquisa ilustram o uso ativista de tecnologias digitais para esses fins: apesar da repressão ao ato em São Paulo ter repercutido na mídia de massa, eu soube da manifestação de 14 de junho em Curitiba por meio de um evento no Facebook. Esse ato do dia 14, por sua vez, já contou com divulgação posterior nos jornais e emissoras de TV locais, o que, junto à repercussão dos vários protestos disseminados pelo país, contribuiu para gerar uma grande adesão aos próximos atos na cidade. Ao mesmo tempo, um novo evento lançado no Facebook pela Frente de Luta pelo Transporte contava com milhares de confirmações de participação para o dia 17. Os organizadores dos atos de junho de 2013 em Curitiba, além de realizarem reuniões presenciais, se comunicavam via internet e celular para tomar e encaminhar decisões.

As coberturas ativistas feitas ao vivo nos protestos e a reverberação da indignação nas redes sociais digitais foram fundamentais para pautar a mídia de massa e para que uma grande quantidade de pessoas saíssem às ruas para se manifestar. Desde o começo de junho, acompanhei a violenta repressão aos protestos em São Paulo e no Rio de Janeiro por meio de contatos em redes sociais digitais. No dia 13, assisti à cobertura da manifestação na capital paulista ao vivo pelo programa de TV Brasil Urgente (transmitido na TV aberta e também online), ao mesmo tempo em que comentava o conteúdo televisivo e relatos que chegavam digitalmente em vários formatos – texto, imagem e audiovisual – por meio da minha rede de contatos no Twitter e no Facebook, selecionando informações relevantes para replicar.

A divulgação e a troca nas redes digitais acerca dos protestos foi intensa durante o mês de junho. Para além de indivíduos, coletivos midiativistas que já cobriam manifestações  passaram a cobri-las sistematicamente, propiciando uma visão desde dentro, que se contrapõe ao aparente distanciamento que caracteriza a linguagem jornalística. Frente à instantaneidade das redes digitais e à proporção que os protestos tomaram, a imprensa passou a cobrir as manifestações ao vivo – e, algumas vezes, a usar trechos da cobertura colaborativa da multidão em suas matérias editadas, como nos casos em que o Jornal Nacional, o noticiário televisivo com maior audiência no país, usou registros “amadores”, produzidos a partir de celulares por coletivos ativistas ou indivíduos que se somaram à multidão, que já haviam se disseminado nas redes sociais digitais.

A mídia de massa teve que se adaptar à velocidade e à multiplicidade de discursos das redes digitais – e assim como os enquadramentos da mídia de massa permearam as ruas, os enquadramentos da multidão hackearam a mídia de massa (mais um vez, brechas na situação e situações nas brechas). De acordo com Lima e Loose (2014, p. 43), a radicalidade do que denominam “mídias alternativas colaborativas”, que se destacaram nas redes digitais em junho de 2013, “colocaram a imprensa brasileira em xeque, promovendo surpresa, indecisão, alterações de rota na cobertura, produção de discursos sobre legitimidade e representatividade do jornalismo profissional, além de pautar, por sua cobertura de rua, plugada nas redes sociais em tempo real, o velho jornalismo impresso e televisionado”.

Por outro lado, evidencia-se que, mesmo contando com o potencial da comunicação em redes digitais, os ativistas não podem simplesmente desprezar a mídia de massa: dela depende sua visibilidade e, consequentemente, seu poder de enfrentamento ao poder público e/ou à iniciativa privada. Assim como a mídia de massa sofre interferências da dinâmica das redes digitais, coletivos e indivíduos politicamente engajados costumam levar em conta a cobertura da “grande mídia” , tentando mobilizá-la a seu favor – mesmo quando se tem uma postura crítica frente a ela. O aparente paradoxo revela-se no desenrolar dos fatos de junho de 2013: o auge dos protestos coaduna com o período em que a mídia de massa passou a mobilizá-los.

De fato, a mesma mídia de massa que levou milhares de pessoas às ruas foi hostilizada nas manifestações de junho, sendo a denúncia de manipulação midiática uma das pautas mais frequentes dos protestos.

 

Evidentemente, a hegemonia discursiva dos meios de comunicação de massa não surge do nada. Eles se somaram aos diversos sujeitos e instituições protagonistas da mediação entre indivíduos e sociedade – tais como a escola, a igreja, a comunidade, o Estado, os movimentos sociais etc. Da mesma maneira, as linguagens audiovisual, fotográfica e digital vieram na sequência de formatos anteriores, como a linguagem verbal, corporal, escrita e imagética: as “novas” coexistem com as “antigas”, que passam a se interconstituir – a pintura muda com o surgimento da fotografia, a linguagem oral e escrita com a digital e assim por diante.

Os meios de comunicação de massa passaram a ter papel destacado nas mediações sociais, principalmente a partir do século XX, em especial no que tange ao agendamento da opinião pública, à consolidação de hábitos e valores e à mediação da representação política, devido ao seu largo alcance: um único discurso pode ser transmitido a toda uma nação pela TV – ou até a (quase) todo o planeta, como é o caso da Copa do Mundo. Os grandes veículos de comunicação de massa hegemonizam a interlocução entre representantes e representados, entre mercado e consumidores – e, de uma forma geral, entre os diversos grupos e indivíduos que compõem a sociedade.

As autoridades políticas, que já possuem uma antiga tradição na mediação social –destacando-se historicamente na disputa pela atribuição de significados aos fatos e processos sociais –, assim como tiveram que se adaptar ao cenário dos meios de comunicação de massa no século XX, são pressionadas atualmente pela dinâmica do digital e das redes. A então presidenta Dilma Rousseff, após os protestos de junho de 2013 terem tomado dimensão nacional e multitudinária, se viu pressionada a manifestar-se sobre o tema, e afirmou em pronunciamento em cadeia nacional nos meios massivos que os protestos pacíficos eram legítimos, assim como anunciou medidas em resposta à revolta popular; o então ex-presidente Lula declarou em sua página no Facebook que os protestos não são caso de polícia, mas de negociação. Contudo, a repressão às manifestações, que contou com um robusto aparato militar durante a Copa do Mundo – para evitar que junho de 2013 se repetisse em junho de 2014 –, teve participação da esfera federal – inclusive do Exército e de setores de inteligência que passaram a perseguir suspeitos nas redes sociais digitais. Dezenas de manifestantes foram presos preventivamente. Percebemos aqui a estratégia de autoridades políticas de, simultaneamente, reprimir e dialogar com os ativistas, selecionando os grupos com os quais faz uma ou outra coisa: no caso, os pacíficos e institucionalizados merecem diálogo; já aos vândalos cabe a repressão violenta.

Verifica-se que a comunicação em redes digitais apresenta novidades quanto às  possibilidades de mediação – de acordo com Silveira (2010, p. 37), “o software tornou-se o intermediário indispensável e cada vez mais presente em boa parte das principais atividades humanas”. Contudo, seria ingenuidade descartar o imenso poder que os meios de comunicação de massa consolidados no século passado e as autoridades políticas continuam tendo no agendamento social (poder de determinar o que é relevante ou não, o que merece ou não ser publicizado – e como, ou seja, sob qual enquadramento), na constituição do imaginário social e na interlocução política – utilizando-se, inclusive, das redes digitais para isso –, assim como é ingenuidade, ou fatalismo, não levar em conta as formas de resistência frente a eles, e até por meio deles, mesmo antes da popularização das tecnologias digitais.

 

Afinal, a rede Globo foi levada a cobrir as Diretas Já nos idos de 1984, bem antes da popularização da internet, a partir do momento em que milhares de pessoas tomaram as ruas do país e outras emissoras cobriram as manifestações em prol da redemocratização. São vários os elementos que interpermeiam a disputa discursiva em sociedade – e o caso
específico das manifestações de junho é um exemplo contemporâneo dessa problemática.

 

A “virada da mídia”

A “grande mídia” brasileira passou a mobilizar as manifestações de junho a partir do
momento em que ignorar os discursos que a permeavam contrariava seu ethos – baseado em critérios de noticiabilidade (também denominados valores-notícia), tais como objetividade, imparcialidade e alcance, que, junto a outros fatores, determinam o que é e o que não é notícia. A partir do momento em que um assunto se torna popular, ele é notícia – e a internet facilita que outros atores, por meio de mobilizações virais, possam ter influência nesse processo de agendamento da opinião pública. Mas além de difundir ou não determinada situação, importa como a “grande mídia” o faz – qual o seu enquadramento. A denominada “virada da mídia” – que se deu a partir do dia 13 de junho, quando profissionais de grandes veículos de comunicação foram diretamente atingidos pela violência policial e as manifestações já haviam ganhado ampla repercussão nas redes digitais – implicou numa intensificação da disputa de enquadramentos que atribuíam diferentes significados à revolta popular.

A edição do dia 13 de junho do programa Brasil Urgente é um exemplo concreto de como a mídia disputou o enquadramento acerca dos protestos nesse período. “Rezava o script que manifestação só é legítima quando não atrapalha, do contrário é violência”, indica a socióloga Silvia Viana (2013, p. 53). O programa televisivo, conhecido por abordar assuntos policialescos de forma sensacionalista, transmitia ao vivo o protesto contra o aumento da tarifa. O apresentador José Luiz Datena afirmava que a população estava revoltada contra manifestações violentas e apresentou uma enquete. A pergunta era: “você é a favor desse tipo de protesto?”. Mas, como problematiza Viana:

Alguma coisa saiu do lugar quando os números apareceram de cabeça para baixo: “Até agora… a maioria… eu não sei se os caras entenderam bem… mas a maioria tá achando que esse protesto de quebrar tudo é legal…”. O riso irônico que então despontava foi prontamente recolhido: “Quer dizer… a opinião do povo prevalece, eu não quero aqui… eu dou a minha opinião, eu não sou a favor de quebra-quebra, protesto, porque eu acho que é vandalismo, acho que é vandalismo”. Seguiu-se a necessidade de retomar o que fora perdido mediante a autoridade de quem porta o microfone: “Esse tipo de protesto com baderna, eu sou contra, eu votaria no não, eu votaria no não!”. Contudo, “a voz do povo é a voz de Deus”, e esse seguia a sua recusa. Contra o sobrenatural, cabia ainda um último recurso: a correção científica. Para que hipótese e resultado permanecessem o mesmo, a pesquisa carecia de precisão conceitual: “Será que nós formulamos mal a pergunta? ‘Você é a favor de protesto com baderna?’ Eu acho que essa seria a pergunta. […] Faça a pergunta do jeito que eu pedi, por favor […] porque aí fica claro, que senão o cara não entende”. E então, o povão ou, mais precisamente, aquela audiência específica, habituada a temer fantasmas de Vândalos e Bandidos, se mostrou teimosa na resposta que, a essa altura, só poderia ser lida como uma reação irracional: “Já deu pra sentir: o povo tá tão pê da vida […] que apoia qualquer tipo de protesto […]. Fiz duas pesquisas, achei até que uma palavra poderia simplesmente não estar sendo entendida. […] As pessoas estão apoiando o protesto porque não querem o aumento de passagem. Então pode tirar daqui”. Com um gesto de mão, Datena empurrou para o lado o quadro virtual que exibia o resultado da enquete.

O apresentador insistiu na tentativa de impor seu enquadramento frente a audiência: a pergunta foi formulada duas vezes – mas a aprovação da audiência aos protestos com baderna se revelou em ambas. Outra palavra estigmatizada durante o período foi vandalismo. Um vídeo postado no YouTube, que circulou nas redes sociais digitais, ironizava o recorrente – e até insistente – uso da palavra na imprensa televisiva. Cartazes nas ruas e no meio digital replicavam: “vândalo é o Estado”, em referência à violência policial. Um novo canto passou a ecoar nas manifestações Brasil afora: “Que coincidência! Não tem polícia, não tem violência!”. Ou seja, os manifestantes frequentemente reenquadraram
o discurso que os acusava, subvertendo-o.

Logo na sequência da enquete realizada por Datena, pode-se acompanhar ao vivo, pelo mesmo programa, que a Tropa de Choque aguardava a manifestação na rua da Consolação. Ali, as forças repressivas promoveram um espetáculo de violência contra manifestantes que não ofereciam resistência, transmitido ao vivo em rede nacional. Esse foi o episódio decisivo que comoveu o país e transformou o que inicialmente eram protestos restritos à pauta do transporte em uma mobilização nacional multitudinária.

Fotógrafos na manifestação do dia 17

De acordo com Lima e Loose (2014), o foco da mídia de massa na cobertura dos protestos recaiu predominantemente sobre depredação e violência até o dia 13; a partir de então, com a comoção nacional a partir da violência policial em São Paulo, que chegou a atingir diretamente profissionais da imprensa, a cobertura foi balanceada com declarações favoráveis aos protestos, que continuaram condenando o vandalismo, mas atribuindo-o a uma minoria não representativa da totalidade dos manifestantes. Os mascarados seriam o principal alvo dessa condenação: o termo black bloc passou a ser destacado em jornais, revistas e noticiários televisivos.

A partir do momento em que as manifestações ganharam legitimidade frente à “opinião pública”, a mídia de massa passou a mobilizá-la – contudo, frequentemente segundo outras pautas. São dois os exemplos nítidos da “virada midiática”: a mudança do discurso nos comentários de Arnaldo Jabor 37 no Jornal Nacional entre os dias 13 e 17 de junho e do editorial da Folha de São Paulo 38 , jornal mais vendido no país, de 13 para 14 de junho. Tanto o editorial, o espaço da “opinião do jornal”, quanto o comentarista, o único a desempenhar essa função deliberadamente opinativa no noticiário de maior influência no país, deslegitimavam as manifestações e pediam firmeza do poder público no dia 13. Após a comoção nacional em favor delas, seus discursos mudaram radicalmente. Venício Lima (2013, p. 92) explica essa “virada”:

A primeira reação foi de condenação pura e simples. As manifestações deveriam ser reprimidas com rigor ainda maior. À medida, no entanto, que o fenômeno se alastrou, a velha mídia alterou radicalmente sua avaliação inicial. Passou então a cobrir em tempo real os acontecimentos, como se fosse apenas uma observadora imparcial, que nada tivesse a ver com os fatos que desencadearam todo o processo. O que começou com veemente condenação transformou-se, da noite para o dia, não só em tentativa de cooptação, mas também de instigar e pautar as manifestações, introduzindo bandeiras aparentemente alheias à motivação original dos manifestantes.

Subverteu-se a pauta inicial das manifestações, dando origem a uma disputa simbólica entre enquadramentos na “grande mídia”, nas redes sociais digitais e nas ruas. Tal disputa discursiva coloca em xeque o significado das manifestações em si e, portanto, seu desenrolar, pois, segundo Zizek (2013, p. 103), “a luta pela interpretação dos protestos não é apenas ‘epistemológica’”, mas “também uma luta ‘ontológica’, que diz respeito à  coisa em si, que ocorre no centro dos próprios protestos. Há uma batalha acontecendo dentro dos protestos sobre o que eles próprios representam”.

Assim como as manifestações passaram a pautar a “grande mídia”, esta passou a disputar o sentido dos protestos. Apesar de ter sido forçada a realinhar seu enquadramento inicial, devido à amplitude e intensidade da mobilização popular nas redes e nas ruas, por outro lado seu enquadramento foi, em muitos casos, reproduzido – mas, em outros, subvertido e reenquadrado – por milhares de brasileiros que foram às ruas em junho. Afinal, “a voz das ruas não é uníssona. Trata-se de um concerto dissonante, múltiplo, com elementos progressistas e de liberdade, mas também de conservadorismo e brutalidade, aliás presentes na própria sociedade brasileira” (ROLNIK, 2013, p. 12).

Ao mesmo tempo em que uma parcela de manifestantes propagaram nas ruas o discurso conservador presente na mídia de massa, o discurso ativista também passou a permear noticiários e jornais – e a comunicação nas redes sociais digitais foi fundamental nesse processo. A dinâmica das manifestações engloba enfrentamentos e amálgamas, afastamentos e aproximações, em que a contestação da ordem vigente envolve a reprodução de alguns de seus enquadramentos, que por sua vez capturam a revolta em prol da manutenção do status quo – sendo, contudo, forçado a assimilá-la.

 

 

 

A série “Junho de 2013 revisitado” é uma adaptação  de textos a partir de “A máscara e a multidão: enquadramento dos Anonymous em junho de 2013 no Brasil”, dissertação de Michele Torinelli (UFPR, 2015), disponível na íntegra aqui. As imagens também compõem a pesquisa.

Leia também: Junho de 2013 revisitado: Curitiba

 

Referências por ordem de citação:

MARTIN-BARBERO, J.. Dos meios às mediações: comunicação, cultura e hegemonia. Rio
de Janeiro: 2a ed., Editora UFRJ, 2003.

BRASIL. Presidência da República. Secretaria de Comunicação Social. Pesquisa brasileira
de mídia 2014: hábitos de consumo de mídia pela população brasileira. Brasília: Secom,
2014.

TARROW, S.. O poder em movimento: movimentos sociais e confronto político. Petrópolis:
Vozes, 2009.

LIMA, M. D. V., LOOSE E. B.. Metamorfoses no jornalismo: aspectos da cobertura dos
protestos de rua de junho de 2013. In: Conexão – Comunicação e Cultura, UCS, Caxias do
Sul, v. 13, n. 25, p. 35-53, jan/jun, 2014.

SILVEIRA, S. A.. Ciberativismo, cultura hacker e o individualismo colaborativo. In: Revista
USP, São Paulo, n. 86, p. 28-39, junho/agosto 2010.

VIANA, S.. Será que formulamos mal a pergunta? In: [MARICATO, E., et al]. In: Cidades
rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil. São Paulo: Boitempo Editorial, Carta Maior, 1a ed., p. 53-8, 2013.

LIMA, V. A.. Mídia, rebeldia urbana e crise de representação. In: [MARICATO, E., et al].
Cidades rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil. São Paulo:
Boitempo Editorial, Carta Maior, 1a ed., p. 89-94, 2013.

ROLNIK, R.. As vozes das ruas: as revoltas de junho e suas interpretações. In: [MARICATO,
E., et al]. Cidades rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil.
São Paulo: Boitempo Editorial, Carta Maior, 1a ed., p. 7-12, 2013.

ZIZEK, S.. A caminho de uma ruptura global. Outras Palavras, 30 jun. 2013. Disponível em:
<http://outraspalavras.net/posts/zizek-a-caminho-de-uma-ruptura-global/>.

 

 

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