Seres das estrelas ou demasiado humanos

Dos labirintos de doença, cura e tratamentos. Dos tateios rumo à autonomia física, emocional, mental e espiritual. Dos anseios por uma saúde, e uma vida, comunitária.

 

Pintura urbana representanto o trabalho de huesero em San Juan La Laguna, Guatemala

 

Sábado de carnaval, Amatlán de Quetzalcoatl, Tepoztlán, Morelos, México.

América Latina. Abya Yala. llha da Tartaruga.

Planeta Terra.

 

Hoje suei, batuquei, cantei, morri e renasci.

Não fui em nenhum bloco de carnaval.

Hoje foi dia de temazcal.

 

Dizem que essa medicina veio das estrelas, sabedoria cósmica, e por isso no centro-teto da tenda, entre os bambus ou madeiras entrelaçadas, forma-se uma estrela.

Me aproximei dos temazcais ainda no Brasil, as duas primeiras vezes guiada por mexicanos que levaram esses saberes e fazeres do Norte pro Sul.

Aqui no México, conheci uma famosa abuela que não gosta que chame de “medicina”. Nem que se fale em “cura”. Ela entende que assim ficamos presos nessa dualidade, acreditando na doença, e continuamos esquecidos de que somos seres das estrelas.

Nunca entendi muito o que ela queria dizer. Agora surge uma chispa.

Temazcal en San Mateo del Río Hondo, Oaxaca

 

Desde que cheguei no México, essa terra louca de vulcões, terremotos e cactos mágicos, meu corpo sentiu o choque. Pela primeira vez na minha vida, entrei num processo longo de doença.

Pode ser crônica, pode não ser, tenho minhas pistas a partir de um entendimento mais profundo acerca desse processo, em que me recuso a ver apenas a parte sem olhar pro todo.

Mas senti medo. Medo de estar sendo negligente, de não estar me cuidando direito, de estar batendo a cabeça contra a parede.

Medo. Culpa. Medo. Culpa.

Esses sentimentos que facilmente tomam conta quando ousamos não seguir a cartilha que a maioria segue, a qual intuímos e sabemos por experiência própria que não nos leva onde queremos chegar.

E, mais do que pensar onde vai levar, de qualquer maneira, não é o caminho que nos agrada, que nos faz sentido, que queremos caminhar.

 

Medo da morte. “La oscura pretensión de durar“.

 

Nesse labirinto, são muitos os becos sem saída – a toda poderosa medicina “convencional”, ou alopática, não tem o monopólio nesse quesito.

Entre buscar outros saberes e entendimentos e cair em esoterismos ilusórios é um pulo. João de Deus, Prem Baba, falsos gurus. Aproveitadores, abusadores – olha o patriarcado aí, gente! Sem falar nos milhares de terapeutas que fizeram de suas crenças profissão e querem convencer a todos delas.

Nem sempre é por mal, somos todos um pouco assim, queremos ajudar a partir da bagagem que temos. E todos, ou quase todos, temos que ter uma profissão. E passar segurança, como profissionais que somos, para nossos clientes. É a lógica comercial. Negócio é negócio.

E assim acabamos tratorando, e sendo tratorados.

 

Não importa o que você, que vive no seu corpo a sua vida inteira, tem a dizer sobre ele. Não importa que você tenha sentido tudo o que sentiu, pensado tudo o que pensou, feito tudo o que fez. Alguém vai olhar pra você por uma hora (ou pra algum exame seu por alguns minutos) e dizer exatamente o que você tem e o que você deve fazer pra se curar.

Meu modo de me desenredar desse discurso de autoridade tem sido me aproximar, e incorporar, cada vez mais a noção de autonomia na saúde.

Eu posso consultar pessoas experientes, a partir de distintas abordagens? Claro. Mas quem deve discernir se o que essas pessoas falam e fazem tem sentido ou não, ou qual parte do que elas falam e fazem tem sentido ou não, sou eu. A partir da minha bagagem, a partir da minha avaliação de cada experiência terapêutica – e das trocas com pessoas que confio, que estão passando por processos semelhantes, ou tendo reflexões parecidas.

 

Estive num chamán que recebe um espírito-deus egípcio numa cidadezinha do interior do México e faz cirurgias espirituais. Em teoria ele vê tudo e sabe tudo, assim que não tem muita discussão, apesar de que ele vai perguntando como você se sente e adaptando o tratamento. Não, não é um chamán pop star cheio de dinheiro, e não tem a aparência clássica do que se costuma esperar de um chamán. Ou pelo menos do que eu esperava: não era um senhorzinho velho de bengala e um ramo de ervas na outra mão, mas um jovem de aparência urbana e alargador na orelha.

Tudo muito simples, num quintal de uma casa simples, atendendo gente simples. Das pessoas de fora que começaram a chegar, ele cobra um preço acessível. Das pessoas locais, doação espontânea.

Fui porque fiz amizade com uma portuguesa que estava aprendendo com ele, e era testemunha das curas que ele mediava. Nesse momento de fragilidade, foi uma oportunidade de estar num lugar tranquilo, que pensei que era uma comunidade, onde faziam temazcal, e estariam começando uma parceria com esse chamán. Tudo se mostrou muito diferente do que eu imaginava, mas foi um lugar em que pude estar e me cuidar e fazer esse e outros tratamentos.

Entre eles o da bioenergética, que conheço há alguns anos e já comprovei a eficácia. O diagnóstico do que eu tenho, que foi confirmado por outras abordagens e que até agora é o que mais faz sentido, veio daí. À distância. Sim, isso mesmo. Dá pra fazer o diagnóstico à distância.

A explicação pra isso se chama radiestesia. Sabe aquelas histórias de pessoas que encontram fontes de água utilizando varetas? O poço do sítio em que eu morava foi encontrado assim. Das sabedorias populares usadas historicamente e que a ciência chama de superstição – essa ciência que mata um monte de gente com diagnósticos equivocados, procedimentos ultra invasivos, medicamentos intoxicantes e que são distribuídos e receitados de acordo com interesses políticos e econômicos. Essa ciência que abria o cérebro dos considerados loucos e cortava pedaços fora. Esses medicamentos que são feitos pelas mesmas mega empresas responsáveis por criar armas químicas. Essa ciência que, apesar de tudo isso, mantém o seu super discurso de autoridade, de verdade, o qual quem ousa questionar é tachado de louco supersticioso.

Como que eu vou tentar dialogar sobre bioenergética com alguém da medicina alopática? Ni modos. Sem chance.

Será? O mais louco é que encontrei uma clínica aqui no México, clínica mesmo, cheia de médicos, médicas, técnicxs e secretárias (essas, apenas mulheres), que trabalha com radiestesia – mas a partir de uma abordagem “científica” (coloco entre aspas porque poderíamos passar a vida inteira discutindo o que é ciência, mas sim, tô falando da ciência hegemônica, do que costumamos denominar ciência).

Diz que é um método russo, meu bem, que usam com os atletas olímpicos por lá, cheio dos equipamentos, com gente de jaleco branco me atendendo com toda aquela maneira de interagir e falar da medicina convencional. Mas fazendo o que me pareceu a mesma coisa da bioenergética. Tinha até um “pêndulo técnológico”! Claro, ali ele tem outro nome: biotensor.

Nessa mesma clínica aplicam o método do atlas, que é a primeira vértebra da coluna, essa que fica na nuca. E dizem que, se você “corrige” ela, você tem grande chance de endireitar os problemas de postura do corpo todo. A amiga que me indicou contou que seus filhos tinham as pernas tortas, usaram botinha ortopédica, mas com o passar dos anos estavam voltando a entortar. Ela ficou sabendo desse método, levou eles na clínica, e diz que resolveu. Achei que não custava tentar, já que sou bem torta. Aliás, custar custa né. Mas o tratamento consiste numa única sessão. E diz que os efeitos podem levar até dois anos em se consolidar.

É um método não invasivo, feito mecanicamente, por fora. Basicamente, o camarada usa um equipamento que parece uma furadeira com uma borrachinha na ponta pra apertar esse seu osso. Dói. Mas posso te garantir que dói bem menos que o huesero.

 

 

Altar: ao centro, Kaqak’axool; ao seu lado, a Virgem de Guadalupe

Ah, o huesero. Foi na Guatemala, num pueblito às margens do maravilhosamente surreal lago Atitlán, cercado de vulcões. San Juan La Laguna. Cheguei lá, fiquei na casa de um camarada por meio do Couchsurfing, ele me falou de um temazcal e eu, a louca do temazcal, fui. Era numa pousada ecológica interessante e linda, mas o temazcal em si foi uma decepção. Tava mais pra sauna. Nada de introspecção, nenhum ritual, gente falando qualquer coisa e até uma lâmpada dentro. O ó.

Lá dentro um cara comentou que tava com um problema no ligamento do joelho, que o temazcal ajudava, aí eu já falei do meu tornozelo e papeamos um pouco sobre as lástimas físicas. O detalhe é que eu estava sem minhas lentes e não tinha a mínima ideia com quem estava falando. Para não desmerecer completamente o temazcal, há de se reconhecer que oferecia pizza e atole (bebida grossa e quente feita normalmente de milho ou de arroz) na saída, e que o preço era uma pechincha. Na hora de comer reconheci ele de alguma maneira, e chamei ele pra sentar comigo e conversar um pouco. Era Gaspar, um rapaz artista e guia turístico local, que toca numa banda com seus irmãos e irmã os ritmos da sua cultura tz’utujil.

Perguntei pra ele se conhecia alguém que podia me ajudar. Gaspar falou de um amigo huesero, que tentou resolver o problema dele mas admitiu que não estava sob seu alcance, e que talvez pudesse me ajudar. Dependeria do meu caso. Se ofereceu para me levar lá nesse mesmo momento, alguns minutos caminhando dali. Fomos.

Chegamos no terreno com algumas casas dentro, chamamos, mandaram a gente entrar. A galera se comunicando em tz’utujil. A mulher que nos atendeu nos levou até uma sala, sentamos nuns banquinhos de plástico no canto. Pude observar o grande altar. No centro, Kaqak’axool, o dançarino vermelho. Com o machado na mão. Me lembrou São João Batista Xangô. Justo no pueblo de San Juan. Encruzas de Abya Yala.

Kaqak’axool é o guardião do pueblo, que fica entre a imponente montanha em que ele morava e um grande vulcão inativo, coberto de mata. Gaspar me contou que transformaram a montanha num ponto turístico, e que não gosta que chamem o pico mais alto de “nariz do índio” (porque a montanha parece um rosto de perfil deitado, e o pacote turístico mais vendido por ali é pra ver o sol nascer no tal do “nariz”). Acha uma falta de respeito.

Outro amigo, Pablo, também jovem artista tz’utujil, depois me contaria que dizem as vozes do povo que o Kaqak’axool de fato vivia ali, descia todos os dias até o lago ao meio dia. Perguntei o que ele fazia no lago, se ele era um personagem musical, porque justamente ouvi uma flautinha quando me banhava solita por esse horário e não consegui localizar de onde vinha o som. Sim, era um personagem musical, confirmou Pablo. Mistéeeerio.

A montanha de Kaqak’axool e o tal do “nariz”

Diz que ele era muito brincalhão, e teve um dia que a galera ficou de cara com as brincadeiras dele, perseguiu e linchou ele, e depois disso ele nunca mais apareceu. Pablo acha que isso tem a ver com o cristianismo, com a colonização, do próprio povo voltar as costas pra sua cultura, pra sua história. Interessante que o personagem tem aparência de “ladino”, ou seja, de branco, espanhol – como outras entidades locais, entre as quais se destaca Maximon, que originalmente era Rilaj Maam e foi associado a San Simon. Talvez essa tenha sido a única maneira de poderem seguir reverenciando e transmitindo suas crenças.

Bom, o negócio é que o camarada huesero era um rapaz jovem, que chegou conversando em tz’utujil com Gaspar, me perguntou o que eu tinha, pediu pra eu colocar meu tornozelo no colo dele e falou que ia doer. Girou pra um lado, girou pro outro, foi apertando, e bem onde eu me retorci de dor é que ele apertou mesmo, inclusive com uma pedrinha envolta num pano vermelho que tirou de sua bolsa.

Caramba. E como doeu. Dei até uma gritadinha, e olha que eu me faço de forte. Gaspar tinha me falado que ele não cobra um valor fixo, mas trabalha por doação, como fazem os que seguem a tradição antiga, os modos do povo dali. Falou que em outros tempos as pessoas davam o que tinham – milho ou demais alimentos da sua colheita. E que hoje em dia, como muita gente já não planta mais, se dá dinheiro. Eu disse no final que queria dar uma contribuição, ele disse que não precisava, que não trabalha para isso. Com toda a sinceridade e humildade do mundo.

Perguntei pra ele (que todo mundo chama de Bin, porque seu nome é Erwin) como que ele se meteu nesse caminho de sanación, de cura. Ele disse que foi num sonho. E que antes ele estava sempre doente, e depois que passou a ajudar as pessoas, não adoece mais. “Curando os outros eu curo a mim mesmo”, contou. Querido. Disse pra eu voltar, que o ideal eram três sessões. Cada vez doía menos. Sinto que realmente me ajudou.

Outra pintura urbana com o Kaqak’axool

Na segunda vez levei uma veladora, vermelha como o Kaqak’axool, essas velas de muitos dias. Observei que sempre havia velas acesas sob o altar. Ele ficou bem feliz, bem mais feliz que quando dei meus trocados. Na última vez reparei que tinha um saco bem grande de milho que alguém deixou.

Na volta do primeiro dia, comentei com Gaspar isso de a missão aparecer em sonho. “Sempre é assim”, disse ele. “E não adianta querer o que não é nosso”, complementou.

Isso de saber sonhar… Isso de se entregar à nossa missão nessa existência, deixando os caprichos do ego de lado. O que viemos fazer aqui? Qual o sentido dessa viagem?

Tive uma outra experiência com uma senhora que dizem que é bem sábia. Queria sua ajuda com essa artrite reumatóide que parece que é o que eu tenho, além de saber mais sobre meu nawal, meu “signo” maia. Ela estava doente, com febre, voltei em outra ocasião e ainda estava ruinzinha. Na véspera da minha partida consegui falar com ela, que já estava melhor. Expliquei minha situação, e ela queria cobrar um valor que não só me pareceu alto como não tinha. Falei a verdade pra ela, e o quanto poderia pagar. Ela disse que é o tempo dela, e que quando eu vou a um médico eu não peço desconto. Respondi que sentia muito, mas realmente não estava ao meu alcance. Mal sabe ela que não costumo ir em médicos, e que detesto a impossibilidade de diálogo frente à autoritária Medicina.

Por um lado eu entendo ela. E o lance da colonização, de os turistas, viajantes, brancos se aproveitarem dos saberes locais, não valorizarem. Mas, por outro lado, a verdade é que eu nem sei bem em que consistiria seu atendimento, e seria mais caro que qualquer coisa que eu paguei nessa viagem.

Viagem obrigatória, necessária para renovar o visto de seis meses que me dão como turista no México. Segunda vez que vou à Guatemala porque preciso, apesar de ser relativamente caro, apesar de não estar nas minhas melhores condições de saúde, apesar de estar sozinha.

Ela não tem obrigação de saber quem eu sou nem como eu viajo, mas confesso que me deixou com uma sensação estranha. E isso de querer cobrar pela cura que vem do espírito… De fazer disso profissão… Realmente acho complicado. Mas sim, é o tempo dela. E ela tem todo o direito de querer cobrar o que acredita que deve cobrar por isso. Mas pode acontecer de eu não poder ou não querer pagar. Bem diferente da prática do Bin…

 

Me lembrou outro causo. Fui com uma amiga num ritual do povo wixárika com hikuri (peyote). Ela fez amizade com um marakame (“chamán”) que recomendou que ela fosse nesse ritual; ele não estaria presente, mas a cerimônia seria guiada por outros amigos seus. Foi na periferia da cidade de Puebla, relativamente perto da Cidade do México. Apesar de o ambiente urbano não ser o meu preferido para esse tipo de vivência, fui.

O ritual foi bonito, e bem mais suave do que eu esperava. Não comemos o cacto puro, ele foi batido com água. Mas tomamos vários copos. Havia um marakame mais novo, ainda aprendiz, que foi o que mais falou durante a noite. A parte mais bonita foi quando ele contou a história da criação do mundo e da humanidade segundo sua tradição. Ele estava acompanhado de um casal de idosos que quase não falavam espanhol. Quando o senhor velhinho cantou em seu idioma, foi a coisa mais linda. Levou meu pensamento pra longe pra que o espírito pudesse ouvir.

Já de manhã, finalizada a cerimônia, o moço explicou que o senhorzinho tinha poderes de cura, e que ele poderia fazer um diagnóstico em quem sentisse vontade, com contribuição espontânea; já o tratamento teria valor correspondente à complicação do caso. Logo em seguida, uma mulher já andada no Caminho Vermelho deu seu depoimento de como a ajuda desse senhor foi milagrosa pra ela e valeu cada centavo.

Algumas pessoas foram fazer o diagnóstico com ele, na frente de todo mundo. Ele dava o preço, e fazia a cura ali mesmo. Eu fiquei sim desconfiada, achei um tanto quanto forçação de barra. E, pra rapidez com que o senhor fazia suas curas, os preços eram bastante salgados – mesmo nos casos mais simples, bem mais do que pagamos pelo ritual que durou a noite toda.

Eu tinha certeza que, com essa minha cara de gringa, meu diagnóstico sairia bem caro. Dito e feito. Acho que era 3 mil pesos que ele queria me cobrar – pra ter uma referência, eu normalmente paguei de aluguel de um quarto por mês, com cozinha e banheiro compartilhados, 1500 pesos. Achei absurdo, falei que tava bem acima das minhas possibilidades e que eu nem tinha esse valor. O rapaz, que intermediava a comunicação com o senhor, falou que então eu poderia ir juntando dinheiro pra uma próxima vez.

Sério mesmo que alguém que tem capacidade de curar por meio das forças do Espírito e da Natureza em alguns poucos minutos deixa de atender uma pessoa por não ter dinheiro?

 

Outra situação complicada foi em Guanajuato. Fui até lá porque um casal que conheci em Oaxaca super me recomendou uma terapeuta de lá. Disseram que ela misturava saberes da medicina convencional com terapias alternativas e que tinha sido muito certeira com eles. Marquei com bastante antecedência, cruzei boa parte do país, aproveitei que tinha uma amiga querida morando na cidade.

A terapeuta foi amistosa nas interações digitais, mas nos últimos momentos me pareceu um tanto quanto ríspida. Impressão que se confirmou ao conhecê-la. Ela me disse que já está aposentada como enfermeira, que só atende as pessoas porque tem esse dom muito grande de ouvir o corpo delas. Achei meio estranha essa necessidade de auto-afirmação.

Ela me disse para deitar e fez o diagnóstico, que consistiu em colocar imãs em determinadas partes do corpo, uma parte por vez, agarrar meu pés e fazer eles se chocarem. Eu conheço essa técnica, já tinham feito ela comigo aqui no México, mas sem os imãs. Se os pés se juntam tudo torto, é porque tem algum problema. Se se juntam direitinho, é porque tá tudo bem. A mesma lógica da bioenergética.

Ela foi fazendo o diagnóstico e dava tudo zicado. Pâncreas, coração, cérebro. Não sei como eu tô viva a partir do diagnóstico dela. Ela supôs que eu tinha pressão alta. Falei que já tive, mas que faz uns bons anos que não – e deixei alguns quilos pra trás e alguns hábitos que me fazem acreditar que não corro esse perigo no momento. Ela tirou a pressão,13 por 8, o que pra mim é bem normal. Pensou que eu tinha diabetes, e tinha uma maquininha que faz o exame na hora. Falei que nunca na vida tive glicose nem perto de estar alta. Fez o exame. Normal.

Ela ficou desconcertada e intrigada com o meu caso. Sugeriu que eu tomasse um soro, falou que era de indústria alemã (achou que essa informação me daria confiança, mal sabe ela da minha pequena batalha pessoal contra a indústria farmacêutica), que seria caro mas que iria me ajudar. Passei a questionar em torno disso, até que chegou um momento em que ela perguntou: “então por que você veio aqui?”. Respondi que amigos me indicaram, que eu queria sua opinião, mas que a melhor pessoa pra avaliar e decidir o que eu devo fazer em relação à minha saúde sou eu mesma.

Parece que ela deu uma balançada e propôs um “acordo”: que eu tomasse três suplementos alimentares. Aceitei, apesar de que um deles era óleo de salmão, e eu tendo a ser vegetariana. Esse foi outro ponto. Elas quis me convencer que o vegetarianismo é uma moda prejudicial à saúde, e pediu pra eu por favor não me tornar vegana. Segundo sua teoria, apenas pessoas cujas três gerações anteriores foram veganas teriam condições para tal. Fiquei pensando: certo, mas alguém teve que começar, né? Nem falei nada. Aquela boa estratégia de poupar energia que tenho aplicado cada vez mais. Perguntou qual era meu tipo de sangue, é B-. Disse que nesse caso de fato a tendência é não comer tanta carne, mas insistiu para eu não deixar a proteína animal de lado.

O tratamento bioenergético prescreve uma desintoxicação cuja base é uma dieta quase vegana (inclui mel), sem produtos industrializados, processados, frituras, açúcar e farinha refinada. Confesso que me sinto muito bem quando a faço, e como só nesse último ano fiz umas três desintoxicações de um mês cada, estou veganizando cada vez mais.

Ela também me disse que, se eu não seguisse as recomendações dela e depois tivesse alguma complicação, que eu por favor não voltasse ali.

A questão é que saí desse atendimento bem pior do que entrei, com aquela sensação de abuso de autoridade que me afastou da medicina convencional. E me fez pensar sobre muita coisa.

Alguns dias depois, fui buscar um exame de sangue que finalmente fiz, por desencargo de consciência. No caminho, torci meu pé, o tornozelo direito, mais especificamente. Já fazia quase 3 anos que eu não torcia, e tenho um problema histórico com ele, ligamento rompido e tudo. Dessa vez não desabei no chão como em outras vezes, mas pude ouvir o “clect”. Doeu. Inchou. E não, não foi fazendo uma super trilha, um esporte radical, mas simplesmente caminhando na rua.

Me abalou. Sempre me abala. De novo? Ainda? Uma sensação de fragilidade, de instabilidade. E viajando. Carregando mochila. Sozinha. O que poderia ser pior pra uma andarilha?

Fui acolhida por amigos que encontrei logo depois do ocorrido, me deram babosa e uma pedra de obsidiana pra esfregar e aliviar a dor (a primeira coisa que fiz foi pedir gelo pra uma senhora que vendia bebidas num isopor). Consegui me desvencilhar um pouco do meu drama, conversar e rir. Também fui acolhida pela minha anfitriã, e no dia seguinte eu tinha planejado partir para uma “Busca de Visão”. Fiquei na dúvida se deveria ir ou não. Decidi que sim.

E dá-lhe enfaixar o pé e encarar a viagem, a mochila nas costas (ainda bem que deixei várias coisas pelo caminho com amigas queridas e estava com bagagem relativamente leve) e mais um passo rumo ao desconhecido. Hay que seguir camino.

Uma coisa que me ajudou muito no processo de desinflamação, e que aprendi aqui no México, foi aquecer uma folha de babosa inteira – bem gordinha, de preferência – numa chapa ou frigideira. Depois abre ela, tira os espinhozinhos do lado, espera esfriar um pouco (até que seja possível colocar na pele), enrola algum pano para fixá-la no local desejado e deixa por algumas horas – recomenda-se dormir com ela, se possível. É uma belezura.

Investigando o significado de torcer o tornozelo, me apareceu que costuma acontecer quando alguém está se obrigando a fazer coisas que não quer fazer. De fato. Indo buscar um exame médico que ao final não me ajudou a elucidar nada, e eu já desconfiava que assim seria. Tendo que lidar com esse modo solitário, mercantilizado e atomizado de cuidar da saúde. Tendo que transitar pelas cidades, pela civilização, sobreviver nesse modo de vida tão sem sentido do homo modernus demens.

Esse processo de saúde tem me obrigado a assumir, mais e mais, meu estilo de vida. Fora da loucura civilizatória. Outro tempo, outro ritmo, que me possibilite me conhecer, cuidar de mim e refletir e documentar esse processo. Cultivar o auto conhecimento e as trocas entre aquelas que encaramos esse desafio da autonomia nos nossos processos físicos, espirituais, nas nossas vidas. Sim, em sua maioria mulheres. Parece que estão mais despertas e mais abertas a trocas.

Valorizamos a troca. Dedicamos tempo e atenção a nós mesmas e umas às outras.

 

Soube da Busca de Visão numa Dança da Lua. Ambas são ritos de passagem do Caminho Vermelho, que me parece uma releitura de várias tradições da América do Norte – ou do que hoje se denomina América, que dizem que alguns povos chamavam de Ilha da Tartaruga. Existe Caminho do Norte (ou Vermelho) no Brasil, existe temazcal no Brasil, existe Busca de Visão no Brasil (Dança da Lua por aí eu nunca ouvi falar). No Brasil e em vários outros países.

Foi muito engraçado uma vez que uma abuela chilena, que estava no Brasil e teve como mestre um equatoriano, me disse que o Caminho do Norte é coisa de principiante. “Mas você não segue o Caminho do Norte?”, perguntei. “Sim, mas que é coisa de principiante, é”, respondeu.

Eu fiz vários temazcais com várias pessoas que seguem esse caminho e tenho respeito. No Brasil nunca me fez muito sentido me aprofundar, mas aqui no México acabou rolando. Fiz a tal da Dança da Lua. Quatro noites dançando sob a lua cheia apenas entre mulheres, fazendo oferendas às quatro direções e aos quatro elementos (algo que está bem presente em várias tradições), dançando e cantando a noite toda praticamente em jejum. Dois temazcais por dia, um ao por do sol, antes de começar a dançar, e outro de manhã, ao sair.

É realmente uma experiência de superação, força de vontade, conexão e renovação incrível. Os homens podiam ficar no apoio, tocavam e cantavam enquanto dançávamos. Mas eu vejo algumas limitações também, que dizem respeito a egos e superficialidades. Percebo uma disputada escalada para ser reconhecido – esse negócio que todo mundo quer se pagar de chamán. E em que medida isso realmente implica (ou não) numa transformação no modo de vida e nos valores das pessoas, que se aplica no dia a dia e no sentido da existência mesma, é algo a se questionar. E ser chamán virou, também, profissão…

Pájaro carpinteiro, ou pica pau, que dormia no quarto que dividi com algumas mulheres na Busca de Visão, desfrutando do calorzinho do amanhecer sob a luz da lua cheia – o encontro da lua e do sol e o pájaro que canta

Na Dança da Lua, em Oaxaca, fiquei sabendo da Busca de Visão que aconteceria em Jalisco. Eu estava em Guanajuato, não muito longe, assim que geografias e calendários favoreceram. Fui achando que não encontraria nenhum conhecido, mas me deparei com amigues que estiveram na Dança da Lua.

Fiquei no apoio. Não fiz a Busca de Visão em si – que consiste em permanecer sozinha dentro de um perímetro de poucos metros embaixo de uma árvore por cinco dias em jejum. Um rito de passagem para ter clareza de visão e poder seguir uma jornada com sentido nesse planetinha.

Foi bem bonito. Fui acolhida com essa questão do tornozelo, não me arrependi nem um pouco de ter ido, pelo contrário. No apoio, levantávamos cedo e celebrávamos o nascer do sol. Também nos juntávamos no por do sol. Fazíamos temazcais todos os dias e tínhamos conversas com a abuela – sobre as quatro etapas da vida (e por isso pressupõe-se que se deve fazer Busca de Visão quatro vezes), uma roda com a chanupa, o cachimbo sagrado, e até mesmo uma conversa sobre sexualidade. A comida era bem gostosa e a proposta era que pensáramos nas pessoas que estávamos apoiando – que estavam lá, sozinhas, em jejum, cada uma debaixo de sua árvore -, enviando essa energia pra elas.

Outro trabalho que nos cabia era cuidar do fogo, que deveria estar aceso o tempo todo. Fazíamos rodízio para guardá-lo. E, durante esses dias, fiz 33 anos. Meu aniversário, meu ano novo, e o tal do inferno astral não havia sido fácil. Foi muito bom celebrar ali, dessa maneira, com esse propósito, com essas pessoas. Cantaram as mañanitas pra mim, que é como o “parabéns” mexicano, só que muito mais lindo. No fim da tarde, mas tá valendo.

Esse meio social do Caminho Vermelho costuma ser frequentado, e guiado, por pessoas de origem urbana e de classe média. Existem vários pontos de tensão nesse sentido, pode-se questionar a legitimidade, a comercialização, tudo isso. No aspecto financeiro, devo confessar que costuma ser bastante acessível. Já estive em cerimônias de temazcal com doação voluntária e valor sugerido. Na Dança da Lua, dividimos os gastos. O preço da Busca de Visão também não foi nada de outro mundo.

Agora essa questão da apropriação, de fato, é delicada. Tem a ver com a tal da superficialidade e da profissionalização, por um lado. E de transformar em produto, entretenimento e folclore o que são os modos de vida dos povos, que resistiram e resistem muito a essa lógica pra poderem estar aqui, contando e sendo sua história.

Por outro, tem a ver com tirarmos as camadas de civilização que nos cobrem – algumas? as que quisermos? as que nos desconectam? até que ponto é possível essa antropofagia identitária autoconsciente? – e nos permitirmos aprender com os povos indígenas, comunidades, povos em resistência, que cultivam bem viver.

Mas afinal, o que é indígena? Um termo genérico para definir uma diversidade de povos que não estão aglomerados debaixo do guarda-chuva uniformizante do Estado e que se relacionam com o seu meio a partir dos ciclos naturais, que se entendem como parte da vida, que não criaram uma separação entre seres humanos e natureza. Que se integram ao seu território.

 

Talvez faça mais sentido, nesse caso, falar em um devir indígena. E a pergunta de fundo que não quer calar é: será que essa classificação toda faz algum sentido? Afinal, o que é indígena? Um termo genérico para definir povos que não estão aglomerados debaixo do guarda-chuva uniformizante do Estado e que se relacionam com o seu meio a partir dos ciclos naturais.

Antes da criação de grandes impérios uniformizantes (como o romano) e dos Estados nacionais, e da disseminação do capitalismo sobre o globo terrestre (não foi sempre assim, abiguinhes), todos (ou quase todos?) eram “indígenas”, “aborígenes”, “autóctones”, “nativos”, “originários”.

Barbarizémonos, pues. Isso não nos tornará indígenas, mas talvez nos permita ser aliados – e, por que não, aprendizes – dos povos indígenas, e nos faça deixar deixar de ser opressores…

A boliviana Silvia Rivera Cusicanqui fala dessa universalidade indígena, mas aborda o conflito entre essas matrizes e as relações com a colonização a partir do termo ch’ixi, que seria uma espécie de mestiçagem conflitiva, não homogeneizante. As diferentes culturas, oprimidas e opressoras, se influenciam e se transformam – mas não se anulam. As diferenças e a diversidade seguem. E a resistência também.

E falando em conflitos, convenhamos que é bem complicado se pagar de indígena, chamán, o que quer que seja, e ignorar a luta dos povos indígenas por seus territórios, o histórico genocídio que segue mais atual do que nunca, a expropriação de seus meios de sobrevivência, de sua cultura. Da vida na terra. É a história dos “nossos” Estados. É a nossa enrustida realidade. É a base do “progresso” e do “desenvolvimento”. E no meio new age, falar de política e luta não cai muito bem. Fala-se tanto em encarar as sombras, mas se recusam a encarar as sombras coletivas históricas, que reverberam em cada um. Olhar essa ferida, ancestral e comum, imensa e atual, dói. E quem está disposto a sair da sua zona de [des]conforto individualista pra lutar pelo bem comum? Pela vida na Terra? Pra transformar radicalmente seu modo de viver?

 

Culturas indígenas (ou como quer que se chamem) não são algo do passado, estão presentes, vivas, existem e resistem. Mas seguem sendo invisibilizadas e tratoradas pelo processo neocolonizador, que se reproduz em cada um de nós.

Há muito trabalho de descolonização por fazer. Dentro e fora.

Cabe também não idealizar os chamados povos indígenas, entender que há uma imensa diversidade e inúmeras especificidades. E conflitos.

 

Também tem a questão do usufruto de poder por mestres e abuelas. Esse lance de que pessoas que são consideradas sábias são bajuladas e frequentemente acabam exercendo poder de maneira agressiva, de modo a “desqualificar” seus neófitos e usar de um certo autoritarismo. Apesar de perceber que isso costuma acontecer na relação mestre-discípulo em várias culturas, não me parece algo a se perpetuar. A tal da reflexão política, acerca de relações de poder, que tanto falta no meio espiritual… Isso sem tocar no tema do patriarcado. Aí o bicho come. Quantas mulheres são submetidas, assediadas e abusadas nessas relações? (Essa tese aborda, entre outras coisas, essa relação entre patriarcado e xamanismo na baixa Amazônia peruana.)

Não à toa, sentimentos que tive frente a esses abusos de poder, mesmo com mulheres (afinal, o patriarcado não é monopólio dos homens), me lembraram um pouco o aspecto negativo da minha relação com o meu pai. Pai. Poder. Patriarcado. E dizem que torcer o pé direito tem a ver com infância e com o pai. Assim que tive que reviver alguns temas que já considerava superados – e que muitas vezes são a raiz das tretas que insistimos em reproduzir inconscientemente.

É preciso lançar luz sobre essas sombras que nos deixam no modo automático, reproduzindo padrões de ação e reação que nos levam ao sofrimento. Isso ensina o Vipassana.

 

Há algum tempo que eu planejava fazer meu segundo curso de 10 dias de meditação Vipassana. Fiz o primeiro em junho de 2016, depois servi em um curso de 10 dias na Argentina, passei uns 8 dias em período de serviço quando cheguei no México, mas ainda não tinha conseguido sentar de novo.

Cheguei a convencer duas amigas que conheci em Chiapas que nunca tinham feito o curso e nos inscrevemos. Seria nosso silencioso reencontro. Não rolou. Foi bem quando eu senti que o que eu tinha não era apenas uma inflamação na bexiga, como haviam diagnosticado, e que deveria colocar toda minha atenção nisso. E me doía justo na lombar. Me sentia constantemente exausta, e pensei que talvez não fosse o momento de passar mais de 10 horas por dia meditando dentro de uma rotina super regrada. Cancelei a inscrição.

Mas, passado esse momento crítico, pensei que o curso poderia inclusive me ajudar. Afinal, o básico da técnica é aprender a observar as sensações e não se apegar tanto a elas – sejam de dor ou de prazer. Vivenciar sem aversão nem apego, deixar passar. Fluir.

Cheguei três dias antes do curso para servir. Que alívio é sair da Cidade do México e chegar nesse lindo lugar perto do Valle de Bravo, em meio ao bosque. E a convivência coletiva e meditativa que tanto faz bem. Pude me adaptar ao lugar, ir retomando a prática meditativa, me acomodar no meu quartinho que seria meu refúgio nos próximos intensos dias.

O curso começou dia 23 de janeiro. Se não me engano no dia 21 houve um eclipse total da lua. Coloquei o despertador para as 23h, pulei da cama e saí. Pude ver a mágica da vida acontecer. O quartinho que escolhi é o último, bem em meio ao bosque. Estava sozinha no dormitório, as outras mulheres estavam no quarto de servidoras, a algumas centenas de metros.

A lua cheia era um farol, o céu bem aberto nesse período seco. As árvores faziam até sombra. No ritmo de monastério, às 23h eu já tava dormindo. Quando acordei, pude perceber imediatamente que estava bem mais escuro, só pela luz da janela. Saí e vi a lua cor de sangue. Lembrei de um conhecido que, na volta de sua primeira experiência com o Vipassana, escreveu um texto comparando o aprendizado do curso com o eclipse parcial da lua que teve a sorte de ver por acaso, sem nem saber que ocorreria.

É como se apagássemos essa luz forte do nosso ego, que classifica tudo e conta histórias sem parar na nossa cabeça, para deixar espaço para que toda a vida que há na escuridão do universo possa, silenciosamente, se manifestar. Dentro e fora de nós.

Eclipse total.

Achei a segunda experiência de Vipassana bem mais tranquila fisicamente e emocionalmente. Sem tantas dores musculares, sem tantos choros. Mas também mais profunda. Um espelho. E nem sempre é tão agradável olhar-se no espelho. Perceber o egoísmo, a mesquinhez. As pequenas preocupações do ego. Poder ver isso sem se desesperar – sem aversão – talvez seja o pulo do gato.

E pude desfrutar muito. A verdade é que é muito gostoso ficar dez dias em silêncio e cuidando de si, num lugar super tranquilo e cuidadosamente preparado para isso, com pessoas trabalhando para que tudo ocorra da forma que deve ser. Offline. Sem celular. Vendo as otras mulheres transformadas em deusas, cada uma em seu silencioso e solitário processo, ao redor. Agradeço imensamente. E já me inscrevi para um próximo curso em São Paulo, centro que não conheço, que dizem que é bem lindo, bioconstruído.

Gostei muito desse centro no estado do México, e o alojamento em que fiquei também é bioconstruído. Paredes de terra.

Dhamma Makaranda, centro de meditação Vipassana no estado do México: geada ao amanhecer

Mas também tenho meus questionamentos em torno do Vipassana – apesar de funcionar a base de doações e trabalho voluntário. E sim, têm a ver com questões políticas. Com a naturalização das estruturas sociais. Isso que nem me adentrei muito nas políticas internas. E confesso que tenho certo receio. Justamente porque se não há espaço para falar de política é porque ela se reproduz de forma naturalizada.

Veremos. Por outro lado, já entendi que raros serão os lugares que contemplem todos os meus interesses simultaneamente. Se é que existem. Questões políticas, ambientais, espirituais, econômicas, culturais. Saúde integral, organização coletiva, autonomia, agroecologia, cosmovisão, construção de redes de contra-hegemonia, memória comum. Quais iniciativas abarcam todas essas perspectivas? Tenho feito da minha vida uma busca nesse sentido, mas já me conformei de que algumas iniciativas são mais fortes em alguns aspectos, outras em outros. E que o ideal não existe – ou não seria ideal.

Vou aprendendo a respeitar os saberes, os fazeres, a contribuir, a desaprender (salve, seu Manoel de Barros, que desensinou que “desaprender 8 horas por dia ensina os princípios”). Mas também a ter senso crítico. De cabeça e de coração. Confiar em mim mesma, antes de tudo. Não me deixar iludir. Mesmo pra desconfiar de mim, o que é necessário para desconstruir certos padrões de comportamento que vão nos levando à deriva nessa vida, é preciso confiar em mim. Em quem realmente sou por trás das mentiras que me contaram e que contei pra mim mesma, por trás das ilusões.

 

Nessa longa andarilhança entre espiritualidade, saúde, comunidade, autonomia, e porque não, vida boa, uma iniciativa fez vibrar meu coração, reunindo várias dessas ânsias, vários desses sonhos e vontades.

Yoloxóchitl é uma inspiradora experiência de saúde comunitária que tem como foco a autonomia, de mulheres para mulheres . A palavra náhuatl significa “flor do coração”, e de fato é uma flor tradicionalmente utilizada para curar as feridas do coração, do espírito. As emoções. Que estão conectadas com o corpo. É a magnólia.

Como elas mesmas contam: “Yoloxóchitl, conocida como Flor del Corazón, también magnolia, es usada para curar las afecciones del corazón, esas de los pulsos, los soplos, las arterias – y todas las afecciones cardícas – y las de las lágrimas, las tristezas, las decepciones, las iras. El corazón pues, todo.”

Elas são aderentes da 6a Declaração da Selva Lacandona, ou seja, se inspiram e apoiam o movimento zapatista. O espaço abriga debates em torno da saúde, da autonomia das mulheres; oficinas de dança, de fotografia, de autodefesa; consultas de ginecologia, psicologia, medicina tradicional mexicana, acupuntura; grupo de estudo de ecologia feminina; largo etc.

“Así pensamos que tiene que ser un Espacio de Salud Comunitaria: donde el construirnos una vida sana y alegre necesita de muy diversas medicinas, de las plantas y las agujas, de los masajes y las microdosis, pero también de la lucha y de espacios colectivos para la risa, para la esperanza, para el llanto y la creación”, explicam. E, como é de se esperar de um espaço comunitário, uma das preocupações é que seja financeiramente acessível.

A iniciativa está ancorada na Casa de Ondas, um espaço autogestionário que abriga, entre outras coisas, uma padaria comunitária, no bairro de Santa María La Ribera, na Cidade do México. E, mais do que uma experiência isolada, Yoloxóchitl é um lindo impulso para que criemos as iniciativas que necessitamos da maneira que queremos nos nossos mundos, nos nossos lugares, com as pessoas que estão à nossa volta. Entre nós.

 

Hoje, sábado de carnaval, foi dia de temazcal.

E o sol se pôs alaranjado, pintou tudo de um vermelho intenso, da cor do sangue, meu, dos ancestrais, dos animais, de todos nós.

Alaranjado da cor do fogo, da cor das pedras incandescentes, abuelas, quando entram no temazcal.

Um dos lindos pores do sol durante a Busca de Visão, em Jalisco

 

 

Uma breve retrospectiva dos textos acerca dessa minha troca de pele – espiritualidade, autonomia e saúde – acá em México :

1. Mal aire

2. Cambio de piel

3. Cura

4. A minha pele ficou pra trás

 

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