O bem viver dos povos andinos: a sustentabilidade desejada

Trecho de Sustentabilidade: o que é / o que não é, de Leonardo Boff [Petrópolis, RJ: Vozes, 2012. p. 61-65].

Arte do Iconoclasistas. Inspiração.

Arte do Iconoclasistas. inspiração.

 

Curiosamente, nos vem dos povos originários uma proposta que poderá ser inspiradora de uma civilização focada no equilíbrio e na centralidade da vida. Os povos andinos que vão desde a Patagônia até ao norte da América do Sul e do Caribe, os filhos e filhas de Abya Ayala (nome que se dava à América Latina que significava “terra boa e fértil”), são originários não tanto num sentido temporal (povos antigos), mas no sentido filosófico, quer dizer, aqueles que vão às origens primeiras da organização social da vida em comunhão com o universo e com a natureza.

O ideal que propõem é o bem-viver (sumak kawsay ou suma qamaña). O “bem-viver” não é o nosso “viver melhor” ou “qualidade de vida” que, para se realizar, muitos têm que viver pior e ter uma má qualidade de vida. O bem-viver andino visa uma ética da suficiência para toda a comunidade e não apenas para o indivíduo. Pressupõe uma visão holística e integradora do ser humano inserido na grande comunidade terrenal que inclui, além do ser humano, o ar, água, os solos, as montanhas, as árvores e os animais, o Sol, a Lua e as estrelas; é buscar um caminho de equilíbrio e estar em profunda comunhão com a Pacha (a energia universal), que se concentra na Pachamama (Terra), com as energias do universo e com Deus.

A preocupação central não é acumular. De mais a mais, a Mãe Terra nos fornece tudo que precisamos. Nosso trabalho supre o que ela não pode dar ou a ajudamos a produzir o suficiente e decente para todos, também para os animais e as plantas. Bem-viver é estar em permanente harmonia com o Todo, harmonia entre marido e mulher, entre todos na comunidade, celebrando os ritos sagrados que continuamente renovam a conexão cósmica e com Deus. Por isso, no bem-viver há uma clara dimensão espiritual com os valores que a acompanham como o sentimento de pertença a um Todo e compaixão para com os que sofrem e solidariedade entre todos.

O bem-viver nos convida a não consumir mais do que o ecossistema pode suportar, a evitar a produção de resíduos que não podemos absorver com segurança e nos incita a reutilizar e reciclar tudo o que tivermos usado. Será um consumo reciclável e frugal. Então não haverá escassez.

A sabedoria aymara resume nestes valores o sentido do bem-viver (MAMMANI, F. H.. Vivir bien/Buen vivir, 2010, p. 446-8): saber comer (alimentos sãos); saber beber (dando sempre um pouco à Pachamama); saber dançar (entrar numa relação cósmico-telúrica); saber dormir (com a cabeça ao norte e os pés ao sul); saber trabalhar (não como peso, mas como uma autorrealização); saber meditar (guardar tempos de silêncio para a instrospecção); saber pensar (mais com o coração do que com a cabeça); saber amar e ser amado (manter a reciprocidade); saber escutar (não só com o ouvido, mas com o corpo todo, pois todos os seres enviam mensagens); saber falar bem (falar para construir, por isso atingindo o coração do interlocutor); saber sonhar (tudo começa com o sonho criando um projeto de vida); saber caminhar (nunca caminhamos sós; mas com o vento, o Sol e acompanhados pelos nossos ancestrais); saber dar e receber (a vida surge da interação de muitas forças, por isso dar e receber devem ser recíprocos, agradecer e bendizer).

Este conceito é tão central que entrou nas constituições da Bolívia e do Equador. Na constituição deste último país, que entrou em vigor em 2008, no capítulo VII que trata “dos direitos da natureza” se diz belamente no artigo 71: “A natureza ou a Pachamama, onde se reproduz e realiza a vida, tem direito a que se respeite integralmente sua existência, a manutenção e regeneração de seus ciclos vitais, estruturas, funções e processos evolutivos. Toda pessoa, comunidade, povo ou nacionalidade poderá exigir da autoridade pública o cumprimento dos direitos da natureza […]. O Estado incentivará as pessoas físicas ou jurídicas e as coletividades para que protejam a natureza e promoverá o respeito a todos os elementos que formam o ecossistema” (veja DE MARZO, B.. Buen vivir: para una democracia de la Tierra, 2010, p. 59).

Aqui encontramos em miniatura e de forma antecipada aquilo que provavelmente será o futuro da humanidade […]. A crise generalizada que ameaça nossa vida e a habitabilidade da Terra nos levará necessariamente na direção desta visão e na vivência destes valores. Nossa proposta quer prolongar estas intuições na base da nova cosmologia e do novo paradigma de civilização. […]

Em conclusão podemos dizer: pouco importa a concepção que tivermos de sustentabilidade, a ideia motora é esta: não é correto, não é justo nem ético que, ao buscarmos os meios para a nossa subsistência, dilapidemos a natureza, destruamos biomas, envenenemos os solos, contaminemos as águas, poluamos os ares e destruamos o sutil equilíbrio do Sistema Terra e do Sistema Vida. Não é tolerável eticamente que sociedades particulares vivam à custa de outras sociedades ou de outras regiões, nem que a sociedade humana atual viva subtraindo das futuras gerações os meios necessários para poderem viver decentemente.

É imperioso superar igualmente todo antropocentrismo. Não se trata egoisticamente de garantir a vida humana, descurando a corrente e a comunidade de vida, da qual nós somos um elo e uma parte, a parte consciente, responsável, ética e espiritual. A sustentabilidade deve atender o inteiro Sistema Terra, o Sistema Vida e o Sistema Vida Humana. Sem esta ampla perspectiva o discurso da sustentabilidade permanecerá apenas discurso, quando a realidade nos urge à efetivação rápida e eficiente da sustentabilidade, a preço de perdermos nosso lugar neste pequeno e belo planeta, a única Casa Comum que temos para morar.

 

 

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