Trechos de ‘Sustentabilidade: o que é / o que não é’, de Leonardo Boff

O mito do progresso ilimitado

O mercado livre se transformou na realidade central, subtraindo-se ao controle do Estado e da sociedade, transformando tudo em mercadoria, desde as realidades sagradas e vitais como a água, os alimentos até as mais obscenas como o tráfego de pessoas, de drogas e de órgãos humanos. A política foi esvaziada ou subjugada aos interesses econômicos, e a ética foi enviada ao exílio. Bom é ganhar dinheiro e ficar rico e não ser honesto, justo e solidário. […]

A especulação e a fusão de grandes conglomerados multinacionais transferiram uma quantidade inimaginável de riqueza para poucos grupos e para poucas famílias. Os 20% mais ricos consomem  82,4% das riquezas da Terra, enquanto os 20% mais pobres têm que se contentar com 1,6% apenas. As três pessoas mais ricas do mundo possuem ativos superiores a toda riqueza de 48 países mais pobres ondem vivem 600 milhões de pessoas. 257 pessoas sozinhas acumulam mais riqueza que 2,8 bilhões de pessoas, o que equivale a 45% da humanidade. Atualmente 1% dos estado-unidenses ganha o correspondente à renda de 99% da população. São dados fornecidos por um dos intelectuais mais respeitados dos Estados Unidos, e duro crítico da política mundial, Noam Chomsky. (p. 18-9)

 

Não se trata de salvar nossa sociedade de bem-estar e de abundância, mas simplesmente de salvar nossa civilização e a vida humana junto com as demais formas de vida.

Para isso, importa colocarmos em primeiro lugar Gaia, a Mãe Terra, e somente em seguida os seres humanos. Se não garantirmos a sustentabilidade do planeta acima de tudo, todas as demais iniciativas serão vãs e não se sustentarão. (p. 29)

 

 

Crítica ao “desenvolvimento sustentável”

Quando falamos aqui de desenvolvimento não é qualquer um, mas o realmente existente, que é aquele industrialista/capitalista/consumista. Este é antropocêntrico, contraditório e equivocado. Explico-me.

É antropocêntrico, pois está centrado somente no ser humano, como se não existisse a comunidade de vida (flora, fauna e outros organismos vivos) também criada pela Mãe Terra e que igualmente precisa da biosfera e demanda igualmente sustentabilidade. Em grande parte, dependemos dos demais seres que devem também ser contemplados para que o desenvolvimento seja, realmente, sustentável. É o defeito de todas as definições dos organismos da ONU, o de serem exclusivamente antropocêntricas e pensaram o ser humano acima da natureza ou fora dela, como se não fosse parte dela.

É contraditório, pois desenvolvimento e sustentabilidade obedecem a lógicas diferentes e que se contrapõem. O desenvolvimento, como vimos, é linear, deve ser crescente, supondo a exploração da natureza, gerando profundas desigualdades  — riqueza de uma lado e pobreza do outro — e privilegia a acumulação individual. Portanto, é um termo que vem do campo da economia política industrialista/capitalista.

A categoria sustentabilidade, ao contrário, provém do âmbito da biologia e da ecologia, cuja lógica é circular e includente. Representa a tendência dos ecossistemas ao equilíbrio dinâmico, à cooperação e à coevolução, e responde pelas interdependências de todos com todos, garantindo a inclusão de cada um, até dos mais fracos.

Se esta compreensão for correta, então fica claro que sustentabilidade e desenvolvimento configuram uma contradição nos próprios termos. Eles têm lógicas que se autonegam: uma privilegia o indivíduo, a outra o coletivo; uma enfatiza a competição, a outra a cooperação; uma a evolução do mais apto, a outra a coevolução de todos juntos e inter-relacionados.

É equivocado, porque alega como causa aquilo que é efeito. Alega que a pobreza é a principal causa da degradação ecológica. Portanto, seríamos tentados a pensar: quanto menos pobreza, mais desenvolvimento sustentável e menos degradação, o que efetivamente não é assim.

Analisando, porém, criticamente, as causas reais da pobreza e da degradação da natureza, vê-se que resultam, não exclusivamente, mas principalmente, do tipo de desenvolvimento industrialista/capitalista praticado. Ele é que produz degradação, pois dilapida a natureza em seus recursos e explora a força de trabalho, pagando baixos salários e gerando assim pobreza e exclusão social.

É por esta razão que a utilização política da expressão desenvolvimento sustentável representa uma armadilha do sistema imperante: assume os termos da ecologia (sustentabilidade) para esvaziá-los e assume o ideal da economia (crescimento/desenvolvimento), mascarando, porém, a pobreza que ele mesmo produz. (p. 46-7)

 

A economia verde possui uma pré-história sinistra. Aquelas indústrias que durante a Segunda Guerra Mundial produziam produtos químicos para matar pessoas, acabada a guerra, para não perder seus negócios, redirecionaram os produtos químicos para a agricultura. Elas adaptaram as plantas para que se “viciassem” naqueles venenos e assim eliminassem pragas e produzissem mais. Efetivamente produziram mais, mas à custa do envenenamento dos solos, da contaminação dos níveis freáticos das águas e do empobrecimento da biodiversidade. (p. 53)

 

 

Sobre ecodesenvolvimento e Ignacy Sachs

É um economista que a partir de 1980 despertou para a questão ecológica e, possivelmente, o primeiro que reflete a partir do contexto criado pelo Antropoceno. Vale dizer, no contexto da pressão muito forte que as atividades humanas fazem sobre os ecossistemas e sobre o Planeta Terra, a ponto de levá-lo a perder seu equilíbrio sistêmico que se revela pelo aquecimento global. O Antropoceno inauguraria, então, uma nova era geológica que teria o ser humano como centro e fator de risco global, um perigoso meteoro rasante e avassalador. Sachs leva em conta esse dado novo no discurso ecológico-social.

Suas análises combinam economia, ecologia, democracia, justiça e inclusão social. Daí nasce um conceito de sustentabilidade possível, ainda dentro dos constrangimentos impostos pela predominância do modo de produção industrialista, consumista, individualista, predador e poluidor.

Sachs está convencido de que não se alcançará uma sustentabilidade aceitável se não houver uma sensível diminuição das desigualdades sociais, a incorporação da cidadania como participação popular no jogo democrático, respeito às diferenças culturais e a introdução de valores éticos de respeito a toda vida e um cuidado permanente do meio ambiente. Preenchidos estes quesitos, criar-se-iam as condições de um ecodesenvolvimento sustentável. (p. 58)

 

 

Sobre economia solidária

Esse modelo se concretiza mediante as cooperativas de produção e consumo, pelos fundos rotativos de crédito, pelas ecovilas, pelo banco de sementes creolas, pelas redes de lojas de comércio justo e solidário, pela criação de incubadoras de novas tecnologias em articulação com as universidades ou até pela recuperação de empresas falidas e gestionadas pelos próprios trabalhadores.

Esse modelo não é, nem de longe, hegemônico, mas ele carrega a semente do futuro. A sociedade mundial, na medida em que mais e mais sente os limites do planeta e percebe a impossibilidade de levar avante o atual projeto planetário de molde capitalista e até o risco da extinção da espécie, verá neste modelo holístico de economia solidária que integra o humano, o social, o ético, o espiritual e o ambiental, como uma saída salvadora para a história humana. (p. 61)

 

 

O bem-viver dos povos andinos: a sustentabilidade desejada (ver aqui)

 

 

Insustentabilidade da atual ordem ecológico-social

O balanço dos esforços por conferir sustentabilidade ao desenvolvimento não é promissor. Antes, ele nos obriga a pensar mais que em alternativas, ainda dentro do paradigma atual. Precisamos, urgentemente, de um outro “modo sustentável de viver”, na feliz expressão da Carta da Terra. Trata-se, sem mais nem menos, de chegar a um novo paradigma civilizatório que garanta a vitalidade da Terra e a perpetuidade da espécie humana. (p. 67)

 

 

Limitação do antropocentrismo 

O que agrava  o antropocentrismo é o fato de colocar o ser humano fora da natureza, como se ele não fosse parte dela e não dependesse dela. A natureza pode continuar sem o ser humano. Este não pode sequer pensar em sua sobrevivência sem a natureza. Além do mais, ele se colocou acima da natureza, numa posição de mando, quando, na verdade, ele é um elo da corrente da vida. Tanto ele quanto os demais seres são criaturas da Terra e juntos com os seres vivos nós formamos, como insiste a Carta da Terra, a comunidade de vida. (p. 67)

 

 

Desenvolvimento insustentável

Se todos tivessem a pegada ecológica de um norte-americano precisaríamos ter cerca de 3,5 planetas Terra iguais ao que temos ou então uma população de 1,6 bilhão de habitantes. Disso se depreende que o sonho de um desenvolvimento ilimitado não é universalizável nem é suportado pelo Planeta Terra. Em conclusão, importa reconhecer: temos que, coletivamente, elaborar outro jeito que atenda o anseio de desenvolvimento humano, não pela via da quantidade de bens, mas pela via da qualidade de vida, compartilhada por todos. (p. 71)

 

 

Visão compartimentada, mecanicista e patriarcal da realidade

A cosmovisão moderna (conjunto de crenças, utopias, ideais e visões do universo e do ser humano) perdeu a visão de totalidade em benefício das partes. Não se dá conta de que as partes são partes de um todo, vale dizer, que a árvore é parte da floresta. Atomizou a unidade concreta do real fazendo com que surgissem as muitas especialidades. Cada saber é saber de uma parcela do todo. Há os que estudam apenas as rochas; outros, os oceanos, e outros as florestas, o sol, as galáxias etc. Esquece-se que tudo forma um todo orgânico e sinfônico: o universo dos seres, todos inter-retro-relacionados. Eles não se regem por relações mecânicos de causa e efeito, mas por um conjunto complexo de fatores que se influenciam mutuamente , realimentam-se e coevoluem. Desta fragmentação do real nasceram as ciências específicas pelas quais se sabe cada vez mais sobre cada vez menos. (p. 71)

 

 

O individualismo e a dinâmica da competição

Uma das características da Modernidade é a exaltação exacerbada do individualismo que ganhou sua expressão lapidar na forma de um credo no majestoso Rockfeller Center em Nova York, no qual se pode ler o ato de fé de John D. Rockfeller Jr. “Eu creio no supremo valor do indivíduo e no seu direito à vida, à liberdade e à busca da felicidade”. No sistema capitalista o que conta é a propriedade privada e a apropriação individual dos benefícios do desenvolvimento. Por séculos foi triunfante. Somente a partir da grande recessão de 1929, e recentemente com a crise do sistema econômico-financeiro de 2008 a 2011, ele viu suas teses refutadas. Se não tivesse havido intervenção maciça do Estado, salvando bancos e empresas privadas, todo o sistema teria fragorosamente ruído.

Este individualismo se conjuga totalmente com o espírito de competição, motor fundamental da acumulação capitalista. Na competição os mais fortes levam vantagem e praticam um rigoroso darwinismo social: os mais fracos ou são apeados do mercado ou são absorvidos pelos mais fortes. O lobo sempre vence a ovelha, sem qualquer sentimento dos efeitos perversos que produz em termos de desigualdades sociais, injustiças clamorosas sobre as classes sociais e países inteiros.

O individualismo e a competição são hostis à lógica da natureza e da vida humana, pois ambas são fundadas sobre a cooperação e a interdependência entre todos. Hoje, face à crise social e ecológica global, impõe-se: ou deslocamos o eixo do “eu” para o “nós” ou então dificilmente evitaremos uma tragédia, não só individual, mas coletiva.

Não é sem razão o esforço para se elaborar uma Declaração Universal do Bem Comum da Terra e da Humanidade como uma espécie de Carta Magna que regerá as políticas globais de uma geossociedade cada vez mais numerosa. (p. 72-3)

 

 

Por um novo paradigma

Para um novo paradigma precisamos mais do que ciência. Necessitamos de imaginação, de paixão e de entusiasmo criativo. Devemos recolher todos os cacos do paradigma anterior, acolher toda a sabedoria da humanidade, valorizar todos os saberes benéficos para a vida e para a humanidade, deixar-se inspirar pelos sonhos generosos das tantas culturas, especialmente daquelas originárias que souberam guardar um sagrado respeito e uma respeitosa convivência com a Mãe Terra. Enfim, qualquer resto da construção anterior que se encaixe na nova construção deve ser aproveitado e colocado em seu devido lugar. […]

Por paradigma entendemos o conjunto articulado de visões da realidade, de valores, de tradições, de hábitos consagrados, de ideias , de sonhos, de modos de produção e de consumo, de saberes, de ciências, de expressões culturais e estéticas e de caminhos ético-espirituais. Este conjunto articulado criando uma visão sistêmica, relativamente coerente, é denominado também de cosmologia que significa uma visão geral do universo, da Terra, da vida e do ser humano que serve de orientação para as pessoas e para as sociedades e que atende a uma necessidade humana por um sentido globalizador de tudo. (p. 75-6)

O que caracteriza esta nova cosmologia é o reconhecimento do valor intrínseco de cada ser e não de sua mera utilização humana, o respeito por toda a vida, a dignidade da natureza e não sua exploração, o cuidado no lugar da dominação, a espiritualidade como um dado da realidade humana e não apenas expressão de uma religião. (p. 78)

Os seres vivos, gerados por Gaia, estão entrelaçados e interconectados de forma tão íntima, que constituem mais que o meio ambiente. Eles formam o ambiente inteiro ou a comunidade de vida, expressão consagrada pela Carta da Terra. Essa comunidade de vida não é uma metáfora, mas o resultado de uma verificação científica. Quando em 1953 Francis Crick e James Watson decodificaram o código genético, descobriram que todos os seres vivos, desde os mais simples como as bactérias até os mais complexos como as árvores, os animais e os seres humanos são compostos de 20 aminoácidos e quatro bases fosfatadas (adenina, citosina, guanina e timina). Somente a combinação diferente destes elementos dá origem à biodiversidade. Mas fundamentalmente somos todos irmãos e irmãs, portadores do mesmo código genético de base.

Este dado é de fundamental importância para a sustentabilidade: ela tem a ver com a cadeia da vida e não apenas com um ou outro organismo vivo em extinção que deve ser preservado. É a comunidade de vida, pelas interdependências que todos têm com todos, que garante a sustentabilidade dos biomas e do conjunto deles que é a Terra vida. (p. 88)

 

 

O ser humano como a porção consciente da Terra

O ser humano não pode ser considerado à parte, mas como um momento especialíssimo da complexidade das energias, das informações e da matéria da Mãe Terra. Atingindo certo nível de conexões a ponto de criarem uma espécie em uníssono de vibrações, a Terra faz irromper a consciência, e com ela a inteligência, a sensibilidade e o amor. O ser humano é aquela porção da Mãe Terra que, num momento avançado de sua evolução, começou a sentir, a pensar, a amar, a cuidar e a venerar. Nasceu, então, o ser mais complexo que conhecemos: o homo sapiens sapiens. Por isso, segundo o mito antigo do cuidado, de húmus (terra fecunda) se derivou homo/homem e de adamah, em hebraico (terra fértil), originou-se Adam – Adão (o filho e a filha da Terra).

Em outras palavras, nós não estamos fora nem acima da Terra. Somos parte dela, junto com os demais seres que ela também gerou. Não podemos viver sem a Terra, embora ela possa continuar sua trajetória sem nós.

Por causa da consciência e da inteligência, somos seres com uma característica especial: somos espirituais, éticos e responsáveis. A nós foi confiada a guarda e o cuidado da Casa Comum. Melhor ainda: a nós cabe alimentar veneração e respeito que devemos à nossa Mãe Comum. Nada devemos fazer que a ofenda e lhe negue a dignidade. Estas atitudes irão garantir diretamente a sustentabilidade da Mãe Terra. (p. 89)

 

 

A vulnerabilidade de toda sustentabilidade

[…] não estamos livres das catástrofes inerentes à própria geofísica da Terra, da deriva continental, dos movimentos das placas tectônicas que poderão provocar tsunamis e devastações arrasadoras. Por fim, como ocorreu há 65 milhões de anos, poderá cair sobre nós um incomensurável meteoro rasante, capaz de destruir toda a civilização e eliminar parte ou toda espécie humana. Com isso queremos dizer: nenhuma sustentabilidade nos poderá salvar de tais eventos. Ela é, por natureza, vulnerável e está submetida ao princípio cósmico do caos. Mas, no que estiver sob nossa responsabilidade, cabe construí-la, no tempo que nos toca viver, para que nos garanta a sobrevivência e a proteção de nossa Casa Comum, a Terra. (p. 94-5)

 

 

Sustentabilidade e universo

[…] somos aquele ser no qual o próprio universo se volta sobre si mesmo, vale dizer, torna-se consciente.

[…] Somos o órgão que o processo evolutivo gerou para que ela [a Terra] pudesse se ver, ouvir e dar-se conta de sua existência. O mesmo vale para o universo.

Os povos originários, como os andinos, quéxuas e aymaras, os mapuches da Patagônia, os maias e incas na América Central, os sioux e os iroqueses nos Estados Unidos, os samis do Ártico e outros se sentiam unidos ao universo como irmãos e irmãs das estrelas. Sentiam a todos os seres do céu como uma grande família. […]

São conhecidas as figuras dos xamãs, tão presentes no mundo antigo e que hoje estão voltando com renovado vigor. O xamã vive um estado de consciência singular que o faz entrar em contato íntimo com as energias cósmicas. Ele entende o chamado das montanhas, dos lagos, das florestas e as mensagens dos pássaros e dos animais. Sabe conduzir tais energias para fins curativos e para harmonização com o todo.

Em cada ser humano existe a dimensão xamânica, escondida dentro de sua realidade interior. Essa energia xamânica nos faz vibrar diante da beleza do mar, silenciar e encher de respeito e de veneração diante de uma noite estrelada, e estremecer diante da vida de uma criança que nasce. Precisamos liberar esta dimensão em nós para entrarmos em sintonia com tudo que nos cerca. (p. 112-3).

 

 

Poema de um líder Cherokee, Norman H. Russel

Assim como uma árvore não termina na ponta de suas raízes ou de sua copa

assim como um pássaro não termina em suas penas ou em seu voo

assim como a terra não termina na montanha mais alta

assim eu também não termino no meu braço, no meu pé ou na minha pele

mas ininterruptamente me estendo para fora, pelo espaço e pelo tempo

com minha voz e meu pensamento

pois minha alma é o universo

(p. 114)

 

 

Sustentabilidade e sociedade

Antes de garantir um desenvolvimento sustentável, precisamos assegurar uma sociedade sustentável que então encontrará para si aquele desenvolvimento que lhe seja realmente sustentável. (p. 125)

[…] Por fim, uma sociedade é sustentável se seus cidadãos forem socialmente participativos, cultivarem um cuidado consciente para com a conservação e regeneração da natureza e destarte puderem tornar concreta e continuamente perfectível a democracia socioecológica. Por estes critérios a maioria dos países do mundo está ainda longe de ser considerada uma sociedade sustentável.

Tal sociedade sustentável deve se colocar continuamente a questão: com seus cuidados socioecológicos, de que forma está garantindo a continuidade do planeta e da vida sobre ele? Com o capital natural e cultura de que dispõe, quanto de bem-estar pode oferecer ao maior número possível de pessoas e aos seres da comunidade de vida, especialmente aos mais vulneráveis e ameaçados de extinção?

Como todas as causas importantes, esta visão possui forte carga utópica. Mas como diria Boaventura de Souza Santos, um dos grandes analistas do processo de globalização a partir da perspectiva das massas marginalizadas: “a única utopia possível é a utopia ecológica e democrática, porque chegamos ao limite de um ecossistema finito e de uma acumulação capitalista infinita”. Temos que reinventar uma nova forma de viver benevolamente sobre a Terra. (p. 128-9)

 

 

Sustentabilidade e satisfação de necessidades fundamentais

Pouco importa o modo de produção que exista numa sociedade, há certo número de necessidades fundamentais que pertencem à condição humana e que devem ser satisfeitas. O desenvolvimento se mostra sustentável se conseguir atender tais necessidades para todas as pessoas (princípio da inclusão), o que exige um sentido de equidade e de sensibilidade humanitária para com as demandas de seus semelhantes. Comumente, indicam-se nove as necessidades básicas: a subsistência, a proteção, o afeto (amar e ser amado), o entendimento (aceitar os outros como são e ser também aceito), a criatividade, a participação, o lazer, a identidade pessoal e cultural e a liberdade.

Esta lista atende não apenas a carências que devem ser supridas, mas também aponta para capacidades que devem ser potenciadas para o necessário desabochar da vida humana. Todas elas são importantes e se implicam mutuamente. Obviamente, a satisfação destas necessidades não é implementada apenas por bens materiais, mas por valores e práticas sociais que se inscrevem no campo do capital humano, social e ético. (p. 139)

 

Uma educação ecocentrada

Não cabe abordar a educação em seus múltiplos aspectos, mas a ecoeducação não pode dispensar a missão de toda educação: em primeiro lugar, permitir aos educandos se apropriar de todos os conhecimentos e experiências acumulados pela humanidade, úteis para atender suas necessidades e desenvolver suas potencialidades; em segundo lugar, apropriar-se de critérios que lhe permitem fazer a crítica e a avaliação dos conhecimentos e experiências do passado, para ver seu caráter situado e histórico, relativizá-lo e preservar o que realmente conta e vale para a vida; em terceiro lugar, enriquecer este legado com seus próprios conhecimentos e experiências, o que exige criatividade e fantasia inventiva, de tal forma que esse acúmulo sirva para conhecer melhor a si mesmo, a realidade de vida dentro do processo socioecológico mais amplo; em quarto lugar, na linha do que sugeriu a Unesco: mediante a educação deve-se aprender a conhecer, aprende a fazer, aprender a ser, aprender a viver juntos e eu acrescentaria aprender a cuidar da Mãe Terra, de todas as formas de vida e de todos os seres.

A educação compreendida desta forma reforça o processo emancipatório humano. As pessoas passam de espectadoras passivas a sujeitos ativos da história. (p. 150)

A partir de agora a educação deve impreterivelmente incluir as quatro grandes tendências da ecologia: a ambiental, a social, a mental e a integral ou profunda (aquela que discute nosso lugar na natureza e nossa inserção na complexa teia das energias cósmicas). Mais e mais se impõem entre os educadores ambientais esta perspectiva: educar para o bem-viver, que é a arte de viver em harmonia com a natureza e propor-se repartir equitativamente com os demais seres humanos os recursos da cultura e do desenvolvimento sustentável. (p. 152, grifo meu)

Mesmo nos repetindo, recolhemos alguns pontos que apareceram ao longo de nossas análises e que constituem princípios norteadores de uma educação que se quer sustentável.

O primeiro é reconhecer que a Terra é Mãe (Magna Mater, a Pachamama), como foi reconhecido oficialmente pela ONU a 22 de abril de 2009, um superorganismo vivo, chamado Gaia, que se parece a uma nave espacial com recursos escassos.

O segundo é resgatar o princípio da re-ligação: todos os seres, especialmente os vivos, são interdependentes e expressão da vitalidade do Todo que é o Sistema Terra. Por isso todos temos um destino compartilhado e comum.

O terceiro é entender que a sustentabilidade global só será garantida mediante o respeito aos ciclos naturais, consumindo com racionalidade os recursos não renováveis e dar tempo à natureza para regenerar os renováveis e nunca perder de vista a solidariedade intra e intergeracional.

O quarto é valorizar e preservar a biodiversidade, pois é ela que garante a vida como um todo, pois propicia a cooperação de todos com todos em vista da sobrevivência comum.

O quinto é o valor das diferenças culturais, pois todas elas mostram a versatilidade da essência humana e nos enriquecem a todos, pois tudo no humano é complementar.

O sexto é exigir que a ciência se faça com consciência e seja submetida a critérios éticos para que suas conquistas beneficiem mais à vida e à humanidade que ao lucro e aos mercados.

O sétimo é superar o pensamento único da tecnociência, como se fosse o exclusivo acesso válido à realidade, mas valorizar os saberes cotidianos, populares, das culturas originárias e do mundo agrário porque ajudam na busca de soluções globais e reforçam a sustentabilidade geral.

O oitavo é valorizar as virtualidades contidas no pequeno e no que vem de baixo, pois nelas podem estar contidas soluções válidas para todos, com valor universal.

O nono é dar centralidade à equidade e ao bem comum, pois as conquistas humanas devem beneficiar a todos e não como atualmente, apenas a uma pequena porção da humanidade.

O décimo, quiçá a condição para todos os demais, é resgatar os direitos do coração, os afetos e a razão sensível e cordial que foram relegados pelo modelo racionalista da Modernidade. Aí se encontra o fundamento dos valores, dos sonhos, das utopias, do respeito, da colaboração, do amor e do entusiasmo, necessários para as transformações.

Concluindo: os filhos e filhas desta ecoeducação que colaborou na criação de um “modo sustentável de viver” (Carta da Terra) seguramente serão muito diferentes dos atuais. Sentir-se-ão profundamente unidos à Mãe Terra, irmanados com todos os seres vivos, nossos parentes, preocupados com o cuidado por tudo o que existe e vive e com uma consciência nova, a consciência planetária que nos faz perceber que vida, humanidade, Terra e universo formamos uma única, grande e complexa realidade.

Será uma travessia onerosa, um processo com idas e vindas até firmar-se como o caminho mais sensato que nos poderá salvar como espécie e preservar a integridade e vitalidade da Mãe Terra . […] Seremos seres de solidariedade, de cooperação e de compaixão: o triunfo de uma nova era na qual não pretendemos mais ser “o pequeno deus” na Terra, mas simplesmente humanos, que veem e tratam os outros semelhantes, os membros da comunidade de vida, as plantas, as aves, os animais, a Lua, o Sol e as estrelas singelamente como irmãos e irmãs. (p. 154-6)

 

 

Sustentabilidade e indivíduo

A rigor o indivíduo não existe. O que existe é a pessoa humana, nó de relações orientadas para todas as direções. Ninguém vive fora da rede de relações que sustenta o universo no qual cada um está imerso. Por isso o correto seria dizer o indivíduo relacional, mas manteremos a palavra indivíduo, em seu sentido mais filosófico que social, pela seguinte razão: existe uma dimensão na pessoa que é sua singularidade irredutível, que faz com ela seja única e irrepetível no universo e na história, no passado, no presente e no futuro. Igual a ela nunca houve, nem há nem haverá. Temos a ver com uma emergência singularíssima do próprio universo. (p. 157)

A presença comparece como uma realidade misteriosa, pois não representa um simples estar-aí, mas significa o ser em sua plena densidade. A presença é viva, fala e envia sinais. Cada indivíduo pessoal tem seu tipo de presença.

Essa presença, que não é totalmente controlável, pode irradiar tanto calma e benevolência quanto projetar desassossego e perplexidade. A presença irrompe da interioridade do indivíduo e por isso é de difícil compreensão racional. A presença se percebe e se intui. (p 158-9).

 

 

A sustentabilidade do homem-psiqué individual

Como há um exterior, há também um interior, o universo psíquico humano. A psiqué também tem seu lugar no processo da evolução quando a matéria foi se enovelando sobre si mesma até tornar-se consciente, elaborar o mundo das moções, paixões, afetos e sentimentos. Somos fundamentalmente seres de pathos (sentimentos e paixões), capazes de ser afetados pelo mundo circundante e simultaneamente de afetá-lo.

A psiqué vem habitada por uma energia vulcânica: a estrutura de desejo, cuja natureza é ilimitada ou pela libido chamada pelos orientais também de kundalini (a energia da serpente cósmica que penetra todos os seres e vitaliza nossa interioridade). Do desejo nascem os sonhos, as utopias e as ideias geradoras que conferem dinamismo à vida e constitui a fonte do princípio esperança de onde nascem os impulsos de transformação. O desejo demanda controle a partir de um projeto de vida consciente; caso contrário, pode dramatizar a vida humana e até levá-la à obsessão e à loucura.

Anjos e demônios habitam a psiqué, bem como dimensões de sombras e de luz que expressam as experiências bem-sucedidas ou fracassadas da história individual e do inconsciente coletivo que atua em sua profundidade. Desafio existencial consiste em integrar estas pulsões e encontrar um ponto de equilíbrio que confira brilho à vida e lhe traga serenidade e paz duradoura.

Há ainda na vida psíquica um impulso irrefreável à autorrealização, impulso que manifesta potencialidades e aptidões escondidas dentro de cada um e que tensionam para se revelar e fazer o seu caminho. Na linguagem do psicanalista C. G. Jung cada um é habitado por um arquétipo central (um impulso que emerge das profundidas do mundo psíquico) e que forceja para se historicizar na vida do indivíduo. Quanto mais fiel for às mensagens que vêm deste Eu profundo, mais oportunidades têm de plasmar seu destino de vida e elaborar um perfil singular de sua personalidade.

A sustentabilidade psíquica do indivíduo consiste naquele acordo que puder estabelecer com suas energias interiores, no sentido da integração das pulsões contraditórias, mas complementares, como é a dimensão de sombra com a de luz, ou o equilíbrio dinâmico entre as pulsões da autoafirmação e o chamado para a integração num todo maior, sabendo optar pela luz, consciente de que a sombra sempre o acompanha, e decidir-se pelo bem de todos a despeito da força da busca do bem individual. Essa integração só se conquista com muito trabalho, às vezes contra si mesmo, até lograr aquela justa medida que lhe permite ser interiormente livre e sentir-se realizado na existência junto com os outros.

O efeito desta sustentabilidade se irradia para além do indivíduo pessoal, pois alcança as relações interpessoais e sociais que se mostram mais suaves e produzem o efeito nos outros de sentir-se bem em sua companhia. A vida é marcada por menos ativismo estressante. Tudo vem feito com mais serenidade e paz, bases da discreta felicidade humana. (p. 161-2)

 

 

Anexo – Carta da Terra

Responsabilidade universal

Para realizar estas aspirações devemos decidir viver com um sentido de responsabilidade universal, identificando-nos com toda a comunidade terrestre, bem como com nossa comunidade local. Somos ao mesmo tempo cidadãos de nações diferentes e de um mundo no qual a dimensão local e global estão ligadas. Cada um comparte responsabilidade pelo presente e pelo futuro, pelo bem estar da família humana e de os grande mundo dos seres vivos. O espírito de solidariedade humana e de parentesco com toda a vida é fortalecido quando vivemos com reverência o mistério da existência, com gratidão pelo presente da vida e com humildade considerando o lugar que ocupa o ser humano na natureza. (p. 169)

 

 

Trechos de Sustentabilidade: o que é / o que não é, de Leonardo Boff [Petrópolis, RJ: Vozes, 2012].

 

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