A República “Comunista” Cristã dos Guaranis

LUGON, Clovis. A república “comunista” cristã dos guaranis: 1610-1768. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976, 2a ed.

 

Escrita pelo jesuíta suiço Clóvis Lugon e lançada na França em 1949, a obra é uma apologia às missões jesuítico-Guarani. Curioso que o autor, entusiasta da experiência cristã entre o povo Guarani, realizou sua pesquisa sem nunca ter pisado no continente americano – o que só viria a fazer em 1979, aos 72 anos de idade, realizando seu sonho de conhecer as ruínas jesuíticas e o povo sobre o qual dissertou. (Essas informações foram retiradas desse texto, que faz uma sucinta e elogiosa análise da obra). Suas fontes são, predominantemente, pesquisadores europeus. Segundo Lugon, a experiência que denomina “república ‘comunista’ cristã” durou de 1610 a 1768.

A minha avaliação de sua obra é um pouco mais severa e ácida: um livro de 350 páginas que cita Stalin na introdução e fala de uma sociologia cristã na conclusão. Foi pesado de ler. Algumas bufadas de indignação enquanto virava as páginas – não só pelos relatos dos absurdos a que os indígenas foram submetidos, mas pela própria abordagem paternalista e evolucionista do autor, em sintonia com a mentalidade dos jesuítas que instalaram suas missões na região que hoje abrange Brasil, Paraguay, Uruguay e Argentina, em torno dos rios Uruguay e Paraná.

Lugon defende que os jesuítas trouxeram a “verdade” cristã, tornando os “selvagens” mais “evoluídos e civilizados”. O que eu posso concluir, a partir da própria obra, é que os Guarani que aderiram às missões provavelmente o fizeram por optar pelo que consideraram um mal menor – antes serem catequizados e governados por moralistas pacíficos do que escravizados ou assassinados pelos bandeirantes.

Mas não, não foi só isso. O cristianismo de fato se difundiu por aqui. Uma perspectiva cultural revela a complexidade da catequização indígena – e da vida como um todo. As tramas culturais é que dão sentido aos processos de colonização, resistência e sedução.

No viés político, os jesuítas tinham interlocução com o Império e conseguiram, sob a condição de pagarem impostos, autonomia local (isso até serem considerados inimigos). O governo geral das missões era exercido pelos jesuítas – contudo, localmente, havia gestão relativamente comunitária, a partir dos moldes já dados.

Houve um período de instalação inicial, depois ataques dos bandeirantes e enfrentamentos – o que os forçou a uma grande migração, que foi seguida de mais um período de “paz”, que por sua vez durou até os jesuítas serem expulsos pela Coroa espanhola e as missões arruinadas. Muitos indígenas resistiram frente à ofensiva imperial nas chamadas Guerras Guaraníticas.

De qualquer maneira, o livro faz um apanhado histórico desse período de 158 anos, trazendo informações relevantes à partir de um ponto de vista nitidamente jesuítico.

Alguns (vários) trechos do livro:

 

 

“A República Guarani era, sem dúvida, comunista demais para os cristãos burgueses e cristã demais para os comunistas da época burguesa.

Por isso a votarem ao esquecimento, tentando ocultar a sua realidade.

Desde que se queira revelá-la, retirando-a do esquecimento sem procurar encobrir sua dupla luz, ela nos aparece na História como a mais fervorosa das sociedades cristãs e a mais original das sociedades comunistas realizadas até à criação da União Soviética.” (p. 5)

 

O início das missões

“Ainda em meados do século XIX, Martin de Moussy observava que, ‘na província brasileira de São Paulo, no Paraguai e na província de Corrientes, o povo, e as mulheres, sobretudo, não falavam senão o guarani, muito misturado, sem dúvida, com palavras espanholas e portuguesas, mas que não é menos que a língua geral que se fala desde a Guiana aos Andes e nas vizinhanças do Prata’.” (p. 25)

 

“Durante alguns meses, os padres Ortega e Filds percorreram sozinhos as montanhas, florestas e povoados da província de Guaíra. Quando voltaram a Assunção, anunciaram ao seu Superior que tinham visto duzentos mil guaranis ainda livres e ‘que pareciam muito apropriados ao reino de Deus’.*

Outros pequenos grupos de missionários puseram-se em campo nos anos seguintes. Os relatos coevos descrevem-nos com um breviário entalado sob o braço esquerdo, uma grande cruz na mão direita e sem outra provisão senão a sua confiança em Deus. Alguns foram assassinados. O padre italiano Lizardi foi encontrado sobre um rochedo, traspassado de flechas, com seu breviário aberto junto dele no Ofício dos Mortos.” (p. 28)

* Charlevoix, tomo I, p. 186.

 

“A influência apaziguadora exercida pelos missionários sobre os índios das vizinhanças era altamente apreciada.

A missão do Paraguai parecia, assim, estar destinada a desenvolver-se normalmente segundo o modelo das missões do Peru, de pleno acordo com o mundo colonial.

Entretanto, um novo Superior menos conciliatório surgiu em 1593 na pessoa do Padre Romero.

O Padre Romero ousou, por exemplo, renunciar a um terreno que tinham presenteado ao seu predecessor, simplesmente porque esse terreno não poderia ser valorizado senão pelo trabalho dos índios submetidos. A seus olhos, não convinha autorizar, pelo exemplo dos padres, a forma de servidão denominada ‘serviço pessoal’.

Em 1604, no decorrer de uma prédica, outro Superior, o Padre Lorençana, ameaçou com a cólera de Deus todos os habitantes de Assunção que não libertassem os índios capturados numa recente razia manifestamente desprovida de qualquer pretexto. O tesoureiro da catedral impôs silêncio ao jesuíta, fê-lo descer do púlpito e sair da igreja.

Enfim, verificando que era decididamente muito difícil pregar um Deus de bondade aos infelizes reduzidos pelos ‘cristãos’ à mais dura escravidão, os padres exigiram formalmente certas medidas mitigadoras para continuarem a ocupar-se dos índios sob o ‘regime forçado’, isto é, escravizados.

O resultado desses vários atos de independência foi os jesuítas verem-se cortados de víveres e esmolas. Sua igreja ficou deserta. Os índios não tinham mais autorização de se aproximarem dela.

O mesmo aconteceu em Santiago do Paraguai, onde as coisas foram tão longe que os jesuítas acharam aconselhável o propósito de abandonar a cidade. O padre Torrez, apresentando-se às portas de Córdoba, viu-se nas mãos com uma carta remetida pelo prefeito da cidade, que lhe interditava a entrada aí ‘com receio de que perturbasse a tranquilidade reinante’.*

O Geral da Companhia, o Padre Aquaviva, extraiu as conclusões que se impunham. Os jesuítas estavam instalados há mais de trinta anos no Brasil. Trabalhavam pacificamente no Peru. Para impedir que as dificuldades do Paraguai repercutissem desfavoravelmente naquelas importantes províncias, o Paraguai foi convertido, em 1607, em província separada, com um pequeno grupo de oito padres. Sete anos depois, a nova província já contava com 113 padres.

O Padre Diego Torrez, primeiro provincial do Paraguai, formado por longos anos de trabalho no meio dos índios do Peru, recebeu ordem de renunciar inteiramente às missões ambulantes, a fim de estabelecer missões estáveis em locais determinados e afastados das aglomerações coloniais.

As missões volantes, junto dos nômades, apesar de brilhantes êxitos alcançados, nunca tinham logrado a constituição de comunidades cristãs sólidas e duráveis. Era preciso, por conseguinte, fixar os índios em redor de uma igreja.

Importava também isolar os novos convertidos, mantê-los separados dos coloniais corrompidos.

Pelo isolamento, pretendia-se proteger, com a moralidade, a liberdade das tribos ainda não submetidas. Era essa a finalidade essencial do novo sistema, a condição de toda a verdadeira evangelização. A escravatura e a liberdade dos filhos de Deus não se conciliavam na cabeça dos guaranis. ‘Os índios amam a lei de Deus, mas não gostam dos espanhóis’, escrevia um missionário.” (p. 29-30)

* Charlevoix, tomo I, p. 224.

 

“Os padres Cataldino e Maceta, enviados a Assunção pelo Padre Torrez, só aceitaram sua missão ‘depois de o bispo e o governador lhes conferirem amplos poderes para reunirem todos os cristãos em povoados, para os governarem sem qualquer dependência das cidades e fortalezas vizinhas dos lugares onde se estabelecessem, para construírem igrejas em todas as localidades e para se oporem, em nome do rei, a quem quisesse sujeitar os novos cristãos ao serviço pessoal dos espanhóis, sob qualquer que fosse o pretexto’.*

Saindo de Assunção a 8 de dezembro de 1609, os dois padres viajaram em condições árduas por Vila Rica até Ciudad Real, a Antiga, onde só chegaram a 2 de fevereiro de 1610, esgotados e doentes. Assim que começaram a poder arrastar-se, tiveram de ‘confessar toda a cidade’. Após o que se dispuseram a partir de novo, para se estabelecerem finalmente entre os guaranis. Propagou-se logo o boato de que os índios que eles convertessem seriam subtraídos ao engajamento, por privilégio do rei. Os sentimentos de estima e de confiança desapareceram subitamente. O Padre Maceta esforçou-se por fazer com que a população escutasse a voz da razão: ‘Não pretendemos – disse ele – opormo-nos ao lucro que vós possais fazer com os índios por vias legítimas, mas ficai sabendo que a intenção do rei jamais foi que os considerásseis como escravos e que a lei de Deus vo-lo proíbe. Quanto aos que estamos encarregados de conquistar para Jesus Cristo, e sobre os quais não tendes direito algum, pois que jamais foram submetidos pela força das armas, vamos trabalhar para deles fazermos homens e, em seguida, cristãos. Depois, trataremos de os convencer, tendo em vista seus próprios interesses, a submeterem-se de sua plena vontade ao rei, nosso soberano. Não cremos que seja permitido atentar contra a sua liberdade, à qual eles tem um direito natural que nada autoriza a por em dúvida.’

Quando o cacique guarani se apresentou para conduzir os missionários, foi, no entanto, posto a ferros e atirado para uma masmorra. Ante a ameaça dos padres de apresentarem queixa diretamente ao rei, soltaram-no.

A viagem recomeçou e terminou em barca, pelo Paranapané, no ponto onde se opera a confluência do Pirapé. Nos primeiros dias de julho de 1610, N. S. Loreto foi fundada nessas paragens, à margem do rio Piraga e ao norte do Iguaçu, no Brasil atual.” (p. 32-3)

* Charlevoix, Histoire du Paraguay, tomo I, p. 226.

 

“Em Conquista Espiritual, obra impressa em Madri, em 1639, Montoya relatou as dificuldades e embaraços que teve de superar, antes de conhecer o êxito.

Do ponto de vista religioso, eis o estado em que ele encontrou as quatro primeiras reduções do Guaíra: ‘Elas não estavam ainda muito povoada de cristãos, porque os padres tinham observado que a maioria dos prosélitos só era atraída para aí pela esperança de não ser mais inquietada pelos espanhóis e pelos portugueses do Brasil, e de ficar em melhor situação para se defenderem de seus antigos inimigos.’*” (p. 35-6)

* Charlevoix, tomo I, p. 284.

 

“O bispo de Buenos Aires delegara seus poderes para a região do Uruguai ao Padre Rodriguez, companheiro do Padre Gonzalez. O governador de Buenos Aires, que fracassara em suas tentativas para subir o Uruguai até às suas nascentes, encorajava também os missionários e oferecera-lhes até tudo que fosse necessário para a ornamentação das igrejas de Concepción e de S. Nicolau. Um abastado português fizera donativos consideráveis para se concluírem os belos edifícios públicos começados igualmente em Concepción e S. Nicolau.

O Padre Gonzalez aceitara essas ofertas com candura. Pouco se surpreendera quando oficiais espanhóis se apresentaram, enviados pelo governador, para dirigir as reduções como corregedores.

Os caciques e seus índios, que tinham guardado promessas do padre, não o entenderam assim. Organizaram uma campanha de resistência passiva e de deserções com tal eficácia que os corregedores foram retirados.” (p. 41)

 

“A junção estava praticamente realizada entre as reduções do Guaíra e de Tape, de uma parte, e as do Paraná, de Entre-Rios e do Uruguai, de outra parte. […]

Nas quatro regiões, as mesmas diretrizes tinham sido aplicadas uniformemente. A economia, as instituições políticas e sociais, a vida religiosa, tinham sido dirigidas de modo a formar um todo homogêneo. […] Por volta de 1630, adquirira, no essencial, a sua forma definitiva.” (p. 43)

 

Resistência aos mamelucos 

“Uma ordenação real de 16 de setembro de 1639 decreta a confiscação de bens e a pena de morte contra aqueles que, no Brasil, submetam ou conservem em escravidão os índios das reduções. O efeito foi exatamente nulo.

No caso dos paulistas, a perversão monstruosa de uma época aparece-nos em plena claridade. Os mamelucos praticavam de maneira cínica o sistema de que todo o mundo vivia na América e, mais ou menos, na própria Europa. Os mamelucos eram, verdadeiramente, os tipos representativos do sistema colonial, um pouco semelhantes aos armamentistas e outros tubarões da alta finança e dos trustes no sistema capitalista. Os pequenos cúmplices e comparsas, todos os pequenos aproveitadores preferem manter-se inconscientes da solidariedade que os liga aos exploradores e suas malfeitorias, tal como, no tempo da escravatura dos índios, preferia-se ignorar os métodos de aquisição empregados pelos mamelucos.” (p. 53)

 

“Há já muitos anos que os chefes guaranis vinham repetindo aos padres que, enquanto eles não pudessem bater-se com armas iguais, as precauções mais custosas não os protegeriam senão por um breve tempo. De surpresa ou sem surpresa, as reduções acabariam por desaparecer.

Os padres estavam disso mais convencidos do que os guaranis. Tinham tentado numerosas vezes levar o governador a compreender o serviço que as reduções teriam podido prestar à Espanha, constituindo uma sólida barreira para proteger as províncias do Paraguai e do Rio da Prata contra os portugueses e os índios das fronteiras do Brasil. Sempre em vão. Os governadores, ainda os que manifestavam melhores disposições, diz Charlevoix, julgavam a coisa ‘muito delicada’.

O Padre Montoya foi a Madri em 1639. Obteve, saltando por cima das autoridades coloniais e para estupefação geral, autorização para armar um contingente guarani. O rei fora tranquilizado pela promessa de que as armas não estariam, regra geral, nas mãos dos índios, mas em arsenais. O Padre Montoya comprometeu-se a não solicitar subsídio algum para a compra de armas.

No mesmo ano, os mamelucos sofreram uma primeira derrota em Caaçapaguaçu.*

Em 1640, a autorização de utilizar armas de fogo foi estendida a todos os índios das reduções.**” (p. 60-1)

* Del Techo, Livro XIII.

** Pastells, tomo II, nota 638.

 

“A República dos Chiquitos, fundada mais tarde, na direção do norte, teve de sofrer também as incursões dos mamelucos, que foram definitivamente batidos pelos chiquitos só em 1694. A República dos Chiquitos desenvolveu-se então muito rapidamente, segundo o modelo da República Guarani.

Desde 1618, os mamelucos tinham aniquilado, no mínimo, trinta reduções, ou seja, catorze reduções do Guaíra, uma dúzia na região de Tape, três ou quatro no Itatin, e duas nas margens do Uruguai.

O número de pessoas massacradas ou escravizadas no decurso desses vinte anos não pode ser avaliado. O Edito Real consagrado ao assunto declara que toda a região foi subjugada a ferro e sangue.” ( p. 63)

 

“O Padre Fernandes calculava que os mamelucos de São Paulo e outros portugueses escravistas tinham morto ou subjugado, em 130 anos, dois milhões de índios num raio de mil léguas, ou seja, no conjunto do Brasil, bacias do Paraná e o Uruguai.

O erudito Muratori escreve também que ‘no espaço de cento e trinta anos, eles fizeram escravos mais de dois milhões de índios, dos quais cinquenta mil tinham abraçado a religião cristã. De tantos homens que eles arrebataram, dificilmente um em cada cem lhes terá sido de qualquer utilidade. A maior parte pereceu de miséria antes de chegar a São Paulo. Os que até aí foram conduzidos sãos e salvos, cedo pereceram pelo mau ar que se respira nas minas e pelo trabalho excessivo das plantações de açúcar. Viu-se um registro autêntico, pelo qual se provava que de trezentos mil índios, tomados e transportados pelos mamelucos em cinco anos, restavam apenas vinte mil.” (p. 64)

 

Dados geopolíticos

“A República Guarani, apenas trinta anos após a sua fundação, tinha, por isso, ficado reduzida à metade.

Mas, ao menos vivia. Retomou seu magnífico impulso. Em 1642, ‘as reduções estavam mais florescentes que nunca’, no dizer de Charlevoix. ‘Desfrutavam de uma tranquilidade que não temia mais ser perturbada pelos mamelucos. […]'” (p. 65)

 

“A República Guarani ia do 32º ao 24º, cobria um comprimento de 650 quilômetros de sul a norte e cerca de 600 quilômetros de este a oeste.” (p. 70)

 

“Quanto à população geral das reduções,  segundo os dados relativamente modestos de religiosos como os padres Sepp, Labbe e Florentin de Bourges, pode atingir cerca de 300.000 habitantes. É provável que a cifra de 300.000 fosse largamente ultrapassada nos períodos de prosperidade, visto que o Padre Procurador, Juan Pastor, já anunciava 200.000 neófitos quando não existiam, nessa altura, mais de vinte e quatro reduções, e que em 1647 vinte e sete reduções reuniam 300.000 habitantes.” (p. 80)

 

“Um motivo acessório, que não incitava a traçar as curvas da população no sentido da alta, residia no fato de a soma dos impostos devidos à Coroa ser fixada na base dos recenseamentos. Certas categorias de habitantes podiam ser postas de lado deliberadamente, como não estando visadas pela letra de tal ou tal lei, ou de tal ordenação. Já era uma virtude aplicar a letra, pois que a lei era essencialmente injusta e espoliadora, sendo suportada por coação pura e simples. A restrição mental jamais se encontrou melhor justificada, em todo caso, como em face de um mundo colonial que não possuía verdadeiramente direito algum a obter informações de que pretendia servir-se com um fito exclusivo: explorar os guaranis, reduzir à escravidão o único povo livre e o único povo cristão da América.” (p. 83)

 

“Os guaranis conheciam o crescimento e o impulso social de um povo jovem que tem acesso a uma forma nova e superior de vida. E as crianças guaranis não morriam todas com pouca idade! Mais de mil se aglomeravam na catequese, na menor das reduções; o dobro e o triplo nas reduções  mais importantes.” (p. 84)

 

“Em face desses milhares de crianças e dos oito mil, quinze mil ou vinte mil habitantes das cidades guaranis, compreende-se que as maiores ‘cidades’ espanholas do Prata sentissem certo mal-estar.

Buenos Aires tinha apenas uma população de 5.000 habitantes em 1725. Ainda trinta anos depois da expulsão dos jesuítas, as províncias de Buenos Aires e do Paraguai reunidas não contavam mais de 268.312 habitantes, compreendendo os índios, negros e mestiços.” (p. 85)

 

Organização política

“É pelas eleições e pelo exercício das funções que os guaranis adquirem um sentimento tão vivo de sua autonomia nacional e de sua responsabilidade em face do bem comum. Toda a administração prática se encontrava em suas mãos. Os guaranis zelavam pela boa ordem de sua cidade e tomavam, eles próprios, as medidas e iniciativas úteis. Organizavam e dirigiam os trabalhos. Administravam os armazéns. Rendiam justiça.

O conselho de cada redução compreendia o corregedor ou presidente, muitas vezes denominado cacique, o qual tinha às suas ordens um alguacil ou comissário administrativo; o teniente, ou vice-presidente; dois alcaides – oficiais de polícia que dirigiam o policiamento das ruas e dos campos; o fiscal e seu lugar-tenente, encarregado, entre outras coisas, de manter os registros de estado civil; enfim, quatro regedores ou conselheiros, assumindo diversos serviços e, eventualmente, assessores, ‘cujo número é proporcional ao dos habitantes’.*

Elegiam-se também os chefes de setores, ‘escolhidos entre os mais fervorosos cristãos’.  […]

Conquanto se saiba que o corregedor e todos os funcionários eram escolhidos ‘pelos próprios índios’** em eleições anuais, são poucos os detalhes sobre as modalidades dessas eleições.

A votação tinha lugar nos últimos dias de dezembro ou no primeiro dia do ano. O Conselho Cessante preparava uma lista de candidatos. O padre tinha o direito de controlar essa lista, perante a assembléia pública. Fazia suas observações ‘que os conselheiros geralmente adotavam’.*** […] Não se votava por meio de boletim secreto. A opinião popular, contudo, exprimia-se com toda a liberdade, eficácia e em conhecimento de causa. O mais frequente, diz Cardiel, era a aceitação de todos os candidatos propostos na lista. Entretanto, nenhum era aclamado se não desfrutasse da estima e da simpatia de seus concidadãos.

Não havia partidos. A concepção reinante do bem comum era admitida espontaneamente por todos. Em momento nenhum, em redução nenhuma, se desenhava qualquer movimento de opinião anticomunista, ou favorável ao nosso sistema econômico, de que os índios tinham tido, não obstante, os exemplos mais diversos sob os olhos, desde o simples domínio privado, talhado nas terras conquistadas, e o comércio do mercador e do mascate, até as companhias de navegação ou do comércio de escravos. As lutas eleitorais, limitadas às questões de pessoas, conservaram sempre, ao que parece, uma perfeita dignidade. […]  Homens jovens e mesmo muito jovens, mais instruídos, tinham acesso aos cargos. […]

Os novos magistrados recebiam as insígnias de seus cargos das mãos do pároco. Este fazia um discurso sobre a importância das responsabilidades aceitas.

Ao mesmo tempo, nomeavam-se os oficiais militares, os funcionários políticos e econômicos, os mestres de capela e sacristãos.

Uma missa solene coroava a cerimônia das eleições. Os conselheiros ocupavam os bancos reservados, próximos do coro.” (p. 90)

* Florentin de Bourges, Lettres Édifiantes, tomo V, p. 237. Os regulamentos, os escritos dos missionários e viajantes oferecem numerosas variantes para os cargos secundários, criados segundo as necessidades. De acordo com as Leyes, não devia haver nas reduções corregedores índios! Hernandez, tomo I, p. 108, reconhece que a constituição do Conselho guarani não respeitava as ordenações régias aplicadas em todo o resto da América.

** Charlevoix, tomo I, p. 239.

*** Hernandez, tomo I, p. 109.

 

“As sessões do Conselho eram muito regulares e duravam muito tempo. Além disso, cada manhã, o corregedor e os dois alcaides principais mantinham um pequeno conselho com o ‘Cura’. Tudo o que interessava à vida política e econômica da cidade decidia-se conferenciando, em sessões que reuniam o pároco, o corregedor e o Conselho. Na Memória para as Gerações Vindouras, escrita por um guarani de Yapeyu, vê-se que os padres ‘assistem’. Sugerem eventualmente uma ideia, por exemplo, a fundação de novas estâncias. O corregedor ocupa-se em estudar, com o seu Conselho, os meios de realização. Toma as decisões, prevê os detalhes de execução.

Cada redução formava, assim, uma pequena república independente para sua administração interior.

Por outro lado, era dependente da Confederação em tudo o que respeitava à legislação civil, penal e militar. O desenvolvimento das reduções era dirigido pelo Superior-Geral ou, no primeiro período, por dois superiores que residiam, um no Paraná, em Candelária ou Santo Inácio, e o outro em Yapeyu, no Uruguai.

O Superior visitava regularmente todas as reduções. No seu regresso, lançava as diretrizes que julgava oportunas para o conjunto. Era esse o papel: estabelecer e manter a unidade e mesmo a uniformidade […]. As decisões do Superior eram pontualmente observadas.

A República Guarani realizava, assim, em pequena escala, a fórmula do federalismo internacional do futuro: administração autônoma das comunidades e liberdades locais, garantidas na base de um regime político e econômico unificado.” (p. 91)

 

“Os litígios privados só raramente ocorriam, graças ao fervor religioso dos neófitos, à organização econômica em vigor e às ocupações muito bem regulamentadas para todos os habitantes. Diz Funes: ‘A consciência substituía a lei. O Código Civil não existia porque, para os índios, o direito de propriedade era por assim dizer desconhecido.'”

 

“A polícia velava pela aplicação das leis e manutenção da ordem, de um modo sobretudo preventivo. As advertências eram suficientes, na maioria dos casos, para evitar infrações. A calçada, ao nível das habitações, facilitava as rondas e o controle. À noite, a partir da hora de recolher, todas as saídas injustificadas eram interditas. As patrulhas eram rendidas de três em três horas. Tinham de estar também prevenidas contra as surpresas dos inimigos externos, ‘pois havia por toda parte índios errantes’.*

Um homem presumivelmente culpado era conduzido ao juiz, sem correntes nem algemas de espécie alguma, por muito grave que fosse o delito. Nenhuma pena era aplicada arbitrariamente ou sem prévio inquérito. Cada caso, mesmo pouco importante, era conscienciosamente estudado. As testemunhas eram ouvidas e acareadas.” (p. 93)

* Charlevoix, tomo I, p. 260.

 

“As sanções reduziam-se ‘a orações, jejuns, prisão e, algumas vezes, o azorrague, não cometendo os neófitos faltas que merecessem punições mais severas’. O número máximo de açoites estava fixado em vinte e cinco. O sangue não devia ser derramado, em caso algum. ‘Se o delito é muito grave, os vinte e cinco açoites repetem-se com alguns dias de intervalo.’* […]

Os feiticeiros, uma vez comprovado que tinham exercido graves malefícios, não eram queimados. Eram simplesmente expulsos, após um ano de prisão. Os crimes de aborto, incesto, etc, ocorriam excepcionalmente. Eram punidos com dois meses a ferros. No decurso desses dois meses, o criminoso recebia três séries de vinte e cinco açoites […]. Via-se excluído de cargos oficiais.

Não existia pena de morte. […] Alguns criminosos eram por vezes transferidos para reduções longínquas. (p. 94)

* Cardiel, Breve Relación, cap. VII.

 

“Os guaranis teriam ficado muito felizes ‘se os tivessem deixado ignorar até o nome da guerra’.

[…] Depois de metade da população ter sido massacrada ou posta em escravidão, os padres não tiveram outro remédio senão resignarem-se a deixar que os guaranis se exercitassem, como os seus perseguidores, no manejo de armas de fogo.” (p. 97)

 

Relações com a Coroa Espanhola

“A República Guarani era livre de direito e de fato.

Desde o primeiro dia, os padres Maceta e Cataldino tinham exprimido claramente, ante os habitantes de Vila Rica, a finalidade primeira de sua missão entre os guaranis: salvaguardar sua liberdade, ‘à qual têm um direito natural e nada autoriza a contestar-lhes’.*

O próprio rei, numa carta de 1609 ao Governador do Paraguai, declara ‘que não pretendia privar esses povos de sua liberdade – pela ação dos padres – mas retirá-los da libertinagem e barbárie em que viviam’.” (p. 105)

* Charlevoix, tomo I, p. 238.

 

“‘Não será preciso dizer, acrescenta Charlevoix, que para fazer chegar a esse ponto os bárbaros acostumados a não reconhecerem autoridade alguma na terra, nem mesmo a dos seus caciques se assim o entendessem, foi necessário predispô-los gradualmente, e o seu consentimento foi o fruto do amor e da confiança que seus Pais em Jesus Cristo tinham sabido granjear.’*” (p. 106)

Charlevoix, tomo I, p. 238.

 

“‘A prosperidade de que gozavam esses estabelecimentos excitava a inveja dos paraguaios, dos habitantes de Santa Fé e Buenos Aires, que, aliás, viam nos jesuítas mais gente estrangeira que espanhola. Efetivamente, muitos desses padres eram alemães, ingleses, franceses. Por outra parte, sujeitos exclusivamente ao Superior das Missões que, residindo em Yapeyu, era nomeado diretamente pela Corte de Roma (melhor, pelos Mestres da Companhia) e tinha o direito de administrar o sacramento da confirmação, os padres pareciam não depender da Espanha.’*

Além disso, sem deixarem de cultivar o lealismo dos guaranis, os jesuítas tinham de usar a maior prudência para não ferirem seus sentimentos de autonomia, para fazerem compreender às novas gerações a necessidade de proteção real e levá-las a aceitarem que o respectivo preço fosse pago.

Os guaranis jamais tinham sido vencidos pelos espanhóis. Tinham uma consciência muito viva de sua liberdade. O Padre Aguilar, Provincial do Paraguai, em sua célebre memória publicada em resposta às acusações do Governador Barua, não desconvém: “É mais verossímil que eles considerariam como um atentado à sua liberdade, de que são infinitamente ciosos, se lhes dessem corregedores espanhóis.'” (p. 107)

* Moussy, Description, tomo III, p. 665.

 

“Tendo os guaranis sido declarados ‘dignos súditos do rei’, ainda melhor, ‘seus filhos’, os usos da suserania nem por isso caíram no esquecimento. Os jesuítas não poderiam agir de outro modo senão aceitando as três retribuições clássicas, em vigor em todos os reinos: o imposto para o Tesouro Real, a mílicia e a mão de obra para trabalhos públicos.

Quanto ao imposto, ‘enquanto durou a guerra dos mamelucos, sua extrema pobreza e as privações a que se viram reduzidos, não permitiram que se falasse nisso’. Uma nova prorrogação de vinte anos foi concedida em 1643.* ‘Prorrogação exorbitante!’, diz um edito régio posterior. Já em 1649 Filipe IV instava urgentemente com o pagamento, enquanto simulava conceder novos favores. Honrou os guaranis com o título de ‘seus mais fieis vassalos’ e ‘contentou-se’ em solicitar, pelo direito de vassalagem, que só os homens, entre os dezoito anos cumpridos e os cinquenta anos, pagassem ao Tesouro um escudo por cabeça.

Contra o imposto de renda, o rei assegurava a manutenção de vinte e dois padres. Deixava também 140 piastras a cada redução para a farmácia.” (p. 109)

* Pastells, tomo II, doc. 673.

 

“Já em 1654 um edito real, seco e violento, fora dirigido contra os jesuítas, ‘ que não respeitam o patrocínio’ de Sua Majestade. O rei exigia que as visitas episcopais se efetuassem para efeito de controle.” (p.110)

 

“O modo de pagamento forneceu aos inimigos da República Guarani um meio suplementar de luta. Argumentaram que o tributo devia ser pago em dinheiro, e não em mercadoria. Para obterem numerário, os guaranis vendiam principalmente chá do Paraguai ou erva mate. Eram acusados de praticar o dumping. Os colonos espanhóis já não eram capazes de dar saída ao seu chá. Uma pequena guerra econômica foi desencadeada pelas companhias comerciais de Buenos Aires e do Paraguai, que faziam morrer milhares de escravos por ano na colheita da yerba. Os preços baixaram, forçando os jesuítas a elevar incessantemente o volume de mate necessário ao pagamento do imposto. A audiência Real aceitou, por fim, estabilizar a situação, decretando que doze mil arrobas de erva mate seria o máximo exigível.

Pequenos contingentes de milícias guaranis foram mobilizados em diversas ocasiões ao serviço do rei, particularmente para a defesa de Buenos Aires e, por vezes, contra os ataques de índios selvagens.” (p. 112)

 

“Os dois cercos de Sacramento foram as intervenções mais importantes dos guaranis ao serviço da Coroa de Espanha.

Por uma preocupação de independência, os guaranis recusaram sempre receber o soldo. Não queriam ser mercenários nem mesmo, de um modo absoluto, súditos do rei. Eram soldados de uma república livre, vinculada à Coroa e prestando-lhe serviços em reconhecimento pela proteção recebida.” (p.113)

 

“Em conclusão, a vinculação direta à Coroa de Espanha aparece como uma proteção eficaz para a República Guarani no período de organização. Na época em que os paulistas destruíram, uma após outra, as reduções do leste, os coloniais espanhóis teriam certamente atacado as reduções do Paraná se estas não se beneficiassem do privilégio real. Privilégio interessado, recorde-se: a segurança das províncias do Prata era ainda frágil, no meio de tribos guerreiras e sempre insubmissas. A República Guarani fora apresentada ao rei como uma barreira nas fronteiras do Brasil.” (p. 116)

 

Agricultura, indústria e artes

“Ao aceitarem o abandono da vida nômade para se fixarem nas reduções, os guaranis tiveram de renunciar em grande parte aos produtos da caça e pesca, de que tinham principalmente vivido até então. A agricultura e a indústria asseguraram a sua subsistência a partir dessa altura.

As condições existentes no território ocupado pelas reduções eram muito favoráveis ao desenvolvimento da agricultura. Ao norte, a proximidade dos trópicos; ao sul, o inverno é bastante frio; ‘mas por toda parte as terras são boas e dão tudo o que é necessário à vida.'”* (p. 121)

* Charlevoix, tomo I, p. 265.

 

“À sua chegada, os jesuítas tinham encontrado pequenas plantações de milho, mandioca, batata doce, e erva mate, em estado selvagem. Introduziram a cultura do trigo, cevada, arroz, cana de açúcar, algodão, fumo. O cânhamo fornecia o pano nacessário.” (p. 123)

 

“O milho, que formava com o trigo, o centeio e o arroz, a base da alimentação, dava até quatro colheitas por ano. O algodão, que crescia primeiramente sem cultivo, de maneira espontânea […], passou a ser cultivado em três variedades.

[…] As reduções do Uruguai exportavam vinho para Buenos Aires e Rio da Prata.” (p. 125)

 

“Estaleiros navais, instalados nas margens do Uruguai e do Paraná, construíam barcos de transporte bem adaptados, extremamente resistentes, e canoas de guerra para trinta a quarenta homens, tendo a sua fabricação, muito cuidada, merecido a admiração dos espanhóis. Em muitas reduções, os estaleiros navais e o porto ocupavam uma vasta área.

Turmas de trabalhadores ocupavam-se na armazenagem de cereais, moagem e conservação das reservas. Existiam moinhos de vento e de água. O moinhos, as serrarias e os curtumes, à beira dos cursos de água, eram grandes e sólidas construções, assim como as usinas de açúcar e azeite, os fornos de tijolo e os armazéns para a secagem e torrefação do chá, estes sempre situados na periferia da redução. […]

As forjas e fundições, primeiro modestas em regiões naturalmente pobres em metais, desenvolveram-se tanto, não obstante, que depois de terem conseguido fundir os sinos das reduções com o metal importado de Coquimbo, no Chile, passaram a fabricar também todas as suas armas de fogo, canhões e munições. Em cada localidade, a fábrica de armas ocupava diversas oficinas.” (p. 136)

 

“Os guaranis mostraram-se desde o princípio muito sensíveis e acessíveis a todas as espécies de artes. Eram notavelmente dotados para a escultura, a pintura e, sobretudo, a música. ‘Possuem naturalmente o ouvido apurado e um singular gosto pela harmonia.’ O Padre Cattaneo, já citado, assegura que viu uma criança de doze anos tocando na harpa, com a mão segura e leve, as melodias mais difíceis dos motetes de Bolonha. ‘Têm, além disso, uma voz bela e sonora que, como eu já disse, se atribui às águas de seus rios… Esse gosto natural pela música serviu muito para povoar as primeiras reduções. Os jesuítas, ao navegarem pelos rios, aperceberam-se de que quando, para matarem santamente o tédio, cantavam seus cânticos espirituais, bandos de índios acorriam para ouvi-los e pareciam ter nisso um gosto especial… Eles realizaram assim, nessas regiões selvagens, o que as lendas contam a respeito de Orfeu e Anfião.’*” (p. 143-4)

* Charlevoix, tomo I, p. 241-2.

 

“Charlevoix conta que ‘os infiéis, assim que ouviam os guaranis cantando e tocando seus instrumentos, ou os viam pintando, ficavam horas inteiras acocorados, imóveis e como que em êxtase.’*

O amor à música conservou-se entre os guaranis. Falando do gosto musical dos argentinos, Martin de Moussy escreveu: ‘O índio guarani talha ele próprio uma flauta com um caniço, constrói um violão com o qual participa num concerto improvisado. Nas antigas missões jesuíticas, a música das igrejas compunha-se inteiramente de executantes índios que conseguiam com êxito traduzir as obras dos mestres; e ainda hoje, no Paraguai, o tambor, o triângulo, os violinos e flautas que acompanham o canto nos ofícios litúrgicos são uma reminiscência, muito incompleta, sem dúvida, mas viva, da antiga orquestra dos missionários.’**” (p. 147)

Charlevoix, tomo I, p. 351.

* Description, tomo II, p. 64.

 

Economia, propriedade e trabalho

“O abastecimento, a armazenagem dos produtos e a sua distribuição eram assegurados pelos serviços comunais, sem qualquer intermediário comercial privado. […]

A população obtinha os artigos sem dinheiro nem qualquer espécie de moeda.” (p. 153)

 

“O valor das mercadorias exprimia-se em ‘pesos’ e ‘reais’ de modo puramente fictício. Era uma maneira de fixar o valor relativo dos artigos de consumo corrente. […]

À parte a troca e a moeda fictícia do peso, existia uma moeda ‘real’, constituída por certas mercadorias de uso geral, que eram aceitas por todos em pagamento, mesmo que não houvesse necessidade imediata de seu uso. O Padre Montoya já nos conta que o chá era a ‘moeda principal’ e ‘tinha curso como se fosse dinheiro’. O Padre Muriel menciona ainda como mercadoria-moeda o fumo, o mel e o milho.*” (p. 154-5)

Citado por Hernandez, tomo I, p. 240.

 

“Nos últimos anos, para apaziguar os ataques de que era alvo o regime comunista das reduções, ou por preferência pessoal, alguns padres acharam aconselhável despertar o instinto de lucro individual. Encorajaram os particulares à venda de produtos suplementares do lote. Foi em vão. Cardiel conta que um corregedor vendeu um pouco de mate, e um comissário de guerra um pouco de açúcar. E acrescenta: ‘Em vinte e oito anos que vivi entre eles como pároco ou compañero, não tive conhecimento de outros exemplos entre tantos milhares de índios.’*” (p. 156-7)

* De moribus Guaraniorum, cap. III.

 

“Rengger explica as variadas aplicações dadas ao couro entre os guaranis. Com ele faziam caixas, arcas, cestos, sacos, pellotas, espécies de balsas para atravessar os rios, lassos, foles, redes, corda, cercas, tetos etc.” (p. 159)

 

“Os padres tinham de manter em dia contas separadas para os seus gastos pessoais. Sua manutenção era assegurada por meios claramente definidos, desde que não fosse coberta pela pensão de 466 pesos que o rei deixava aos párocos das vinte e três primeiras reduções, sobre o produto do imposto real. O jardim (horta) e alguns rebanhos constituíam a renda principal dos missionários […]. […] os padres pagavam os artigos retirados dos armazéns. Os alfaiates e os outros empregados da casa dos padres viam seus salários inscritos. […] O montante total devido à comunidade era calculado em pesos e pago em forma de agulhas, facas, utensílios, sal, sabão e outras mercadorias importadas […].” (p. 162)

 

“O ‘montante de negócios’, na República Guarani, registrava-se em pesos, correspondendo aos produtos postos à disposição da comunidade e comportando um excedente utilizável para a criação de novos empreendimentos ou outras obras não diretamente rentáveis: casas, igrejas, edilidade, exército.

A comunidade era, assim, a única entidade capitalista.” (p. 164)

 

Por pressão da coroa, a partir de 1743, os jesuítas foram coagidos a incentivar a propriedade privada entre os indígenas. “Desde então, porém, os padres nunca mais deixaram de sublinhar, insistentemente, a existência de ‘lotes’ particulares ou abambae, ao lado das terras comuns, ou tupambae.” (p. 173)

Mas, segundo Lugon, “os lotes não constituíam, absolutamente, uma propriedade privada.

[…] Os lotes eram atribuídos no momento do matrimônio e somente a título vitalício. Não eram hereditários.” (p. 174)

 

“Quanto ao princípio de comunidade que regia a propriedade artesanal, industrial e comercial, subsistiu sem alterações em seus fundamentos ou na sua forma, até ao final, como vamos passar a expor. […]

De uma ponta a outra de sua história, a República Guarani viveu sob o regime de propriedade comum das terras. A propriedade individual do solo nunca se concretizou em parte alguma de seu território. Comprar, vender, alugar ou legar a mais modesta porção de terra, utilizar o trabalho de outrem para benefício e lucro próprio, transformar o solo em instrumento de dominação ou de exploração do homem pelo homem, são tantas outras operações que se mantiveram desconhecidas até ao fim. O lote vitalício que se tentou introduzir, encontrou a indiferença total dos guaranis, muito satisfeitos com seu regime de comunidade integral. A maioria dos padres, que só agiu sob pressão do rei e ameaça de seus adversários, também não insistiu, de resto, compreendendo muito bem que o desenvolvimento dos interesses egoístas acarretaria a decadência religiosa e social de suas comunidades, edificadas sobre os alicerces da solidariedade.” (p. 182)

 

“Durante o dia, os momentos de repouso davam lugar a alegres expansões entre essa gente, a mais sociável que os espanhóis encontrariam na América. Os mais idosos palestravam, os jovens brincavam e, com um indefinível prazer, moços e velhos cantavam em coro, incansavelmente, as estrofes de seus cânticos e de seus cantos guaranis. […] Compreende-se, pois, que no tempo da experiência dos lotes, os homens tenham sentido mais tédio e que se refugiassem em suas redes durante a jornada em que queriam obrigá-los a trabalhar isolados. Os jesuítas não precisavam ser tão avisados quanto na realidade eram para daí extraírem suas conclusões e deixarem que os guaranis trabalhassem em grupos, pois isso lhes dava prazer, beneficiando também a própria comunidade.” [p. “193]

 

Sociabilidades

“O guarani era espontaneamente matinal. Diz-se na Breve Relación que ‘tanto em viagem como em sua casa, ele ceia com o crepúsculo e logo se deita. Levanta-se com as galinhas, muito cedo, não para trabalhar, mas para beber a yerba, fazer o desjejum e bater um papo’.*” (p. 199)

* Cardiel, Breve Relación, cap. VII.

 

“Sem serem admitidas na vida pública em pé de igualdade com os homens, as mulheres não eram, por esse motivo, menosprezadas nem relegadas a um plano secundário. Quando da recepção ao Padre Sepp uma mulher pronunciou na igreja, em seguida ao corregedor, um discurso de boas vindas composto por ela mesma, muito bem pensado e proferido com a maior naturalidade, na presença de toda a população. Nas oficinas de tecelagem, assim como nos campos, as turmas de mulheres eram dirigidas por mulheres, que elas tinham livremente eleito.  […] Os cemitérios eram inteiramente deixados aos cuidados das mulheres, que os conservavam o ano todo com o aspecto de um ‘magnífico jardim de flores’. Os padres organizavam também para as moças conferências sobre educação, que obtinham o mais vivo sucesso de curiosidade e interesse, mas cujos resultados não satisfaziam os jesuítas. Estes queixavam-se, com frequência, da incapacidade das mães guaranis para exercerem, em relação aos seus filhos, a mínima severidade – mesmo em palavras. O amor dessas boas mães, indulgentes demais aos olhos dos pedagogos entendidos em método, nem por isso produzia menos efeitos positivos: os autores estão de acordo em descrever a vida de família dos neófitos como extremamente calorosa e cordial.” (p. 206)

 

“Os mestres de canto e música eram todos guaranis, assim como os mestres e mestras escolares. Tinham sido iniciados na composição e regência por artistas jesuítas […]. Os padres conservavam, mais ou menos, a função de inspetores escolares. O Padre Sepp menciona em sua ordem do dia, após a visita dos doentes, a visita das escolas, dos coros e das aulas de música.

Acima da elite de funcionários, de administradores e pedagogos, ‘preparada desde a infância por uma educação apropriada’, os jesuítas planejavam, ao que parece, a criação de uma elite do espírito e da sabedoria. ‘Eles tinham, como o aconselha Platão, separado aqueles que anunciavam dotes de talento especial, para iniciá-los nas ciências e nas letras. Essas crianças selecionadas tinham o nome de Congregação. Eram educadas numa espécie de seminário e estudavam submetidas à rigidez do silêncio, do retiro e dos estudos dos discípulos de Pitágoras. Reinava entre os internos tão grande emulação que a simples ameaça de serem devolvidos às escolas comunais lançava um aluno no desespero. Era desse grupo excelente que deviam sair os sacerdotes, os magistrados e os heróis da Pátria.*

Embora não deixe de contestar a realidade de certas complacências, pois que são confessadas pelos próprios padres, a opinião de Huonder, segundo a qual os filhos dos caciques teriam sido regularmente favorecidos, deve ser rejeitada em absoluto. De modo geral, as capacidades pessoais constituíram o critério único para a seleção dos futuros funcionários e magistrados.” (p. 215-6)

* Rohrbacher, Histoire de l’Eglise, tomo XIII, p. 61-3.

 

“O velho profeta dos guaranis, Tamanduaré, grande amigo de Deus, fora advertido do dilúvio iminente. Com algumas famílias, refugiara-se no alto de uma grande palmeira, providencialmente carregada de frutos. Assim sobrevivera…

Muitas outras tradições guaranis apresentavam analogias com os dados bíblicos. A crença na imortalidade era quase geral, sob diversas formas. A noção de pecado original existia de modo mais ou menos claro. Uma vez instruídos na religião cristã, o neófitos passaram a dar melhor expressão às suas anteriores ideias religiosas. Muitos pontos imprecisos ou não formulados definiram-se. Charlevoix menciona, baseado no testemunho dos primeiros missionários: a Trindade, a Encarnação do Filho e a virgindade de sua mãe, a Ascensão do profeta que, por fim, se identificava com o sol. ‘Se não houvesse tão grande distância entre ele e nós, poderíamos distinguir no sol os traços de sua fisionomia.’

A existência dessas crenças explicava-se, aos olhos dos missionários, por outra tradição encontrada no Paraguai e no Brasil, transmitida pelo Padre Montoya: a América teria sido evangelizada por um dos discípulos de Jesus, Tomé, Pay Tuma ou Zuma, também chamado Pay Abara, isto é, Pai que vive no celibato. Pay Tuma predissera aos seus fiéis índios que os seus descendentes abandonariam a verdadeira fé, mas que, passados muitos séculos, novos enviados chegariam, armados de uma cruz semelhante àquela que ele levava consigo. Na região de Tuyati, os primeiros missionários, levando uma cruz como bordão, foram recebidos, com efeito, em nome de Pay Abara, com extraordinária alegria, que os encheu de surpresa. ‘Existe um grande caminho que conduz do Brasil até o Guaíra, o qual, embora muito pouco percorrido, nunca se cobre senão de pequenas ervas, e os naturais da região dão-lhe o nome de Pay Tuma.’* S. Tomé, o incrédulo, teria sido, assim, o primeiro a acreditar na existência da América. Pura lenda? É permitido que assim se pense. Curiosa lenda, de qualquer modo.” (p. 221-2)

* Charlevoix, tomo I, p. 313.

 

 

Conflitos, guerra e o fim das missões

“A consciência comum fora corrompida pelo triunfo da força. […]

Os próprios jesuítas, assim como a maior parte dos outros clérigos e religiosos, tinham acabado por admitir na prática, se não em teoria, a legitimidade da escravatura. As universidades e colégios possuíam seus escravos. Estes eram relativamente bem tratados. É possível que se pretendesse mantê-los em servidão para poupá-los a uma sorte muito pior, nas mãos dos colonos.

No Plata, depois de terem reagido primeiro, com clareza, contra a escravatura, e de se verem tratados como ‘inimigos da Pátria e flagelos devastadores da terra’, os padres ‘tinham sentido sua consciência aliviada’. Desde então, passaram a colaborar com o mundo colonial, no qual pareciam muito bem integrados.

No seio desse império de trevas, a República Guarani subsistia como o reduto da liberdade dos índios. Aí, os jesuítas ainda não haviam transigido. Pareciam querer manter essa trincheira suprema para assegurarem a honra da Igreja e da Europa.

Por sua parte, os coloniais também não tinham jamais cedido.” (p. 258)

 

Os jesuítas foram expulsos de Assunção a mão armada, a mando do governador, bispo Cárdenas, em 1649. “O Colégio Jesuíta foi incendiado pela populaça. […] Os padres das reduções – ainda escassamente armados nessa altura – viram chegar a sua vez de serem expulsos também. Com efeito, Cárdenas prometera aos habitantes de Assunção atribuir-lhes vinte mil guaranis da República dos Jesuítas. Em 1648, os padres já tinham sido expulsos das reduções de Santa Maria da Fé e de Santo Inácio, próximo a Assunção. A população dessas duas reduções fugira para as florestas, a fim de escapar à escravidão. Contudo, o perigo foi provisoriamente afastado da República Guarani, em virtude de Cárdenas ter sido condenado e excomunhado por Roma no decurso do próprio ano em que ele expulsara os jesuítas de Assunção.

Por incrível que pareça, o mesmo Cárdenas foi em seguida nomeado bispo de Popayan e pode recuperar ainda a posse de Assunção como governador, com o apoio do clero secular e regular, assim como de numerosos bispos. As lutas e as ameaças redobraram de vigor.” (p. 261)

 

“Contudo, o rápido desenvolvimento dos guaranis não deve fazer esquecer que seus ancestrais mais próximos, encontrados pelos jesuítas nos pampas do Paraguai, eram, verdadeiramente, a tal respeito, crianças grandes, cujos dons naturais não tinham sido despertados e que exigiam ser, inicialmente, dirigidos de modo paternal. Isso explica, por parte dos missionários jesuítas, certo paternalismo. De resto, quase todos estão de acordo em dizer que os jesuítas ‘usaram sua autoridade com uma doçura e moderação que não se pode deixar de admirar… Se consideravam seus índios crianças grandes, como tal os cuidavam e tratavam. Mas as crianças chegam à idade em que se transformam em homens, e as nações crescem com eles. A época da virilidade teria chegado para os guaranis, e seus dirigentes deveriam ter sabido conduzi-los nessa nova fase de sua evolução’.*

De fato, a análise do brusco e trágico desfecho da história guarani leva-nos a pensar que os jesuítas, como bons pais de família absorvidos em suas preocupações, não notaram a tempo que ‘suas crianças grandes índias’ sentiam ter chegado à idade adulta e aspiravam agora a uma emancipação mais completa. Os simples cidadãos guaranis, nas assembleias políticas, assim como os conselheiros, nas sessões hebdomadárias do Cabildo, davam provas de uma sabedoria e de uma sensatez que os padres reconheceram na ocasião e que deveriam ter merecido a sua confiança. Não obstante, os Superiores acharam mais simples restringi-los aos conselhos locais ou comunais, conservando para si mesmos o monopólio da direção geral. Até o fim, conseguiram sempre obstar a criação de uma autoridade federal indígena. Nem sequer foi aventada a possibilidade de uma reunião ocasional de todos os corregedores. No momento do Tratado de Limites e durante a Guerra Guarani, a ausência de tal autoridade federal indígena teria consequências desastrosas, quando os Superiores distantes quiseram impor uma linha de conduta contrária à vontade e aos direitos do povo guarani. Nos anos de trégua que foram depois permitidos, o paternalismo radicado voltaria a impedir toda e qualquer reforma. A confusão moral causada pela atitude dos Superiores subsistirá, e os padres terão a perplexidade e a dor imerecida de ver, com estupefação, um ano após terem sido expulsos, os corregedores guaranis, reunidos em Buenos Aires, dirigirem-se ao rei de Espanha, passando por cima deles, para exprimir o desejo guarani de uma emancipação mais completa.” (p. 268-9)

* Azara, Description, XIII, e Moussy, tomo III, p. 718.

 

“Deve-se também reter o fato de que o paternalismo, mais ou menos acentuado, dos padres das missões, esteve sempre impregnado de um espírito de dedicação e bondade sinceras, que não consente qualquer espécie de confusão com o paternalismo geralmente hipócrita e interessado das classes dirigentes capitalistas.” (p. 270) Me lembrou aquele ditado: de boas intenções, o inferno tá cheio (dsclp, não me aguentei).

 

“No plano religioso, o desastre provocado pela expulsão dos jesuítas jamais foi reparado. Os índios recaíram num miserável nível espiritual. Os mestiços e os descendentes dos colonos permanecem também impregnados da herança do passado…” (p. 278) AFE.

 

O aval da ciência europeia (e eurocêntrica):

É para ela (a Companhia de Jesus) um título de glória ter sido a primeira a mostrar nessas paragens a ideia de religião aliada à de humanidade; reparando as devastações dos espanhóis, começou a curar as maiores feridas que o gênero humano aí recebera. 

Montesquieu.*

 

O estabelecimento do cristianismo no Paraguai, por iniciativa única dos jesuítas espanhóis, parece, em certo aspectos, o triunfo da humanidade.

Voltaire.**

 

Nada acarretou para o cristianismo maior honra que o ter ‘moralizado’ esses povos e estabelecido um Estado sem outra arma senão a virtude.

Buffon.

Soberanos nesse vasto país, tornam felizes, ao que se assevera, os povos que lhes obedecem e que eles lograram dominar sem o emprego da violência.

D’Alembert*** (p. 279)

* Esprit des Lois, Livro IV, cap. VI.

** Essai sur les Moeurs, Oeuvres, Vol. X, p. 59.

*** Encontram-se outros trechos não menos elogiosos em Rousseau, Diderot, Lessing, Wieland, A. de Haller, Jean de Muller, Robertson etc.

“O Tratado [de Limites] foi assinado em Madri a 13 de janeiro de 1750.

O Artigo 16 diz: ‘Quanto aos burgos e aldeias que Sua Majestade Católica cede na margem oriental do Uruguai, os missionários abandoná-los-ão com seus móveis e bagagens, levando consigo os índios para que se estabeleçam em outras terras pertencentes à Espanha. Os ditos índios poderão igualmente levar seus bens, móveis e gado, as armas, pólvora e munições que possuam. Os burgos e aldeias serão entregues na forma prescrita à Coroa de Portugal, com todas as casas e edifícios, e a propriedade imóvel do terreno.’

Assim, para arrumar uma questão de mercadores, a Espanha cedia a Portugal todo o espaço compreendido entre a Serra do Herval, o Uruguai e o Ibicuí. O Tratado não dava qualquer remédio eficaz para o contrabando, muito pelo contrário: os portugueses teriam meios para o praticar à vontade no curso superior dos rios, de que eles haviam obtido o controle. Segundo a expressão de Maly, tinha-se fechado uma janela (Sacramento) para impedir a entrada dos gatunos, e abriram-se todas as portas.” (p. 284-5)

“Os reis não tinham a fraqueza de se julgarem obrigados pelos serviços recebidos. Os jesuítas e seus defensores recordaram também que os guaranis [além de terem servido militarmente ao Império] nunca tinham sido derrotados pelos exércitos espanhóis, seu território nunca fora conquistado por ninguém, eram livres, e o único contrato que os vinculava ao rei garantia, precisamente, sua liberdade contra o mundo colonial, em nome da Coroa de Espanha. Essa vinculação à Coroa não dava direito algum de se dispor das terras guaranis. Outros tantos argumentos em vão. As ideias absolutistas da época dispensavam o príncipe de se preocupar, fora de propósito, com questões de direito.

Zombaria suprema, o rei enviou (ou, pelo menos, prometeu enviar) uma indenização total de cinquenta e dois mil pesos. ‘Gesto magnânimo’, ousa Schuster escrever. Só os bens imóveis de S. Nicolau, orçados pelos próprios funcionários espanhóis, na presença do Padre Cardiel, foram avaliados em oitocentos mil pesos; a igreja de S. Miguel em um milhão de pesos, cálculo do engenheiro-chefe do exército espanhol.” (p. 286)

“Mais de um ano decorreu, subsequentemente, em negociações diversas e recriminações, por parte dos portugueses, que pretendiam não ter sido secundados pelos espanhóis. Essa pausa foi aproveitada pelos guaranis para aperfeiçoarem seu armamento com os meios de que dispunham. Escasseando o metal e tendo a importação ficado impossível, construíram peças de artilharia em madeira dura de urundi ou de bambu gigante, envoltas em pele de touro curtida. Os jesuítas empregaram mais do que nunca todos seus recursos para fazer anular o odioso tratado e cessar essa guerra vergonhosa contra um pacífico povo cristão. Mas Portugal insistia inexoravelmente para obter, por fim, a execução das promessas espanholas.

No começo de 1756, os reis de Espanha e de Portugal deram ordem para que as hostilidades prosseguissem.” (p. 292)

“[…] ‘apesar do talento de seu bravo chefe, Sepé Tirayu’, os guaranis sofreram graves perdas. Martin de Moussy diz que ‘à sua inferioridade, tocante a armamento e instrução militar, opunham a tenacidade’. Sepé foi morto num combate contra o exército de Viana. Nicolau Languiru, corregedor de Concepción, imperador inventado pela lenda, sucedeu-lhe no comando e fortificou-se na colina de Caybaté, perto da redução de S. João. Um combate encarniçado e desastroso para os guaranis desenrolou-se nessa colina em 10 de fevereiro de 1756. Languiru pereceu com mil e duzentos dos seus bravos companheiros. Foram tomados alguns canhões. Os invasores apenas conseguiram fazer 127 prisioneiros.” (p. 293)

“A 27 de março de 1767, o rei de Espanha, Carlos III, assinou o decreto de banimento dos membros da Companhia de Jesus. As ordens, contra-assinadas pelo Ministro Aranda, foram expedidas por toda parte, munidas de três chancelas. No segundo envelope, lia-se: ‘Sob pena de morte, não abrir até 2 de abril de 1767, ao declinar do dia.’ A carta do rei continha a ordem para o destinatário se apresentar imediatamente nas casas dos jesuítas, com escolta militar, para os prender. Os jesuítas das cidades espanholas da América só foram presos a 12 de julho. Foram embarcados para a Europa. Os ricos colégios foram transmitidos a outras ordens religiosas; a Universidade de Córdoba ficou confiada aos dominicanos.

Quanto aos padres da República Guarani, puderam continuar tranquilamente seu ministério até ao mês de agosto do ano seguinte. O Marquês de Bucarelli, governador de Buenos Aires, fizera compreender que a humilhante experiência de 1750-1756 corria o risco de repetição e que mais valia preparar a coisa com tempo, se com isso se pudesse evitar uma nova guerra. Os jesuítas, aterrados com a supressão da Ordem, não tinham qualquer intenção de resistir. O perigo de uma resistência, por parte deles, foi agitado utilmente para ocultar as enormes dificuldades a que seria preciso fazer frente, a fim de instaurar uma administração civil e eclesiástica capaz de substituir os padres da Companhia.

Já na primavera de 1767 Bucarelli pedira ao Superior-Geral das reduções, o Padre Balda, que lhe enviasse os corregedores. A 22 de julho, o Superior garantiu a Bucarelli que a ordem seria executada. Em agosto e setembro, os corregedores guaranis chegaram a Buenos Aires, onde foram recebidos com provas de deferência e amizade. Trataram-nos, em todos os aspectos, como caballeros ou nobres espanhóis. As conferências começaram entre o governador e os corregedores, com a ajuda do intérprete Lucas Cano, a quem devemos uma memória dos acontecimentos. Bucareli soube despertar a confiança dos corregedores. Fê-los falar. Expôs-lhes o programa por ele concebido para o desenvolvimento da nação guarani. Os guaranis passariam a desfrutar de todos os direitos e liberdades dos cidadãos espanhóis. Todas as carreiras lhes seriam acessíveis. Bucareli prometeu mesmo estabelecer em Candelária uma universidade onde os filhos dos corregedores e outros notáveis receberiam a formação útil para fazerem carreira nas administrações civis e no exército ou para ingressarem no sacerdócio e tornarem-se párocos. A perspectiva dessa honra suprema comoveu particularmente os corregedores. Entre as conferências, organizaram-se cerimônias e convites para recepções. A 4 de novembro, por exemplo, os representantes guaranis encontraram-se nos lugares de honra da catedral de Buenos Aires, durante uma missa pontifical. Após o ofício, participaram de um banquete, sentados na mesa do governador e ao lado da nobreza da cidade e cônegos da catedral. Bucareli influenciou também alguns corregedores por meio de ofertas de certos privilégios pessoais.

O jogo deu certo. Aquilo que outrora teria sido a mais inconcebível de todas as coisas, acontecia agora: os chefes guaranis deixaram-se embair e manifestaram sua confiança nos espanhóis, de quem sempre haviam desconfiado quase tanto quanto dos portugueses, e que, de resto, os tinham vendido pelo tratado de 1750. Esquecendo o espírito de inquebrantável independência de seu povo, os corregedores aceitaram o bastão de comandante espanhol, tão desdenhosamente rejeitado pelos antigos caciques. Mais do isso: escreveram uma carta ao rei de Espanha, Carlos III, onde não se contentavam em agradecer calorosamente a Sua Majestade os projetos estabelecidos para o seu povo; em substância, os corregedores felicitavam-se de poder sair em breve do estado inferior em que tinham vegetado sob a direção dos jesuítas, exprimindo a esperança de verem seus filhos exercerem o ministério sacerdotal em sua pátria, preencherem as funções cívicas e serem até chamados à Corte de Madri.” (p. 300-1, grifo meu)

“A 2 de janeiro de 1768, foi promulgado o decreto especial de Carlos III, expulsando os jesuítas das três províncias do Paraguai, Plata e Tucumã, em aplicação da ‘Pragmática Sanção’ de 1767: ‘Se, após o embarque, existir ainda um só jesuíta, mesmo doente ou moribundo, no vosso departamento, sereis punido de morte. Eu, o Rei.’ […] O Padre Peramas diz que o ano de pausa fora empregado pelos padres, em entendimentos com os corregedores, a dispor os guaranis à submissão e à resignação, persuadindo-os da impossibilidade de uma resistência vitoriosa. Um escritor protestante, Mannsfield, admira a ‘abnegação fantástica’ da Companhia que, sem um gesto de resistência, abandonou o vasto império por ela detido no Paraguai. Deve-se dizer que os padres do Paraguai sabiam de seus confrades já encarcerados e da supressão da Companhia em todo o império, assim como em Portugal e na França. Os Padres acolheram quase com júbilo a injustiça e a perseguição que os uniam e a seus confrades e que resolviam, perante suas consciências e perante a História, a contradição em que se debatiam desde 1750. Pensando nas oportunidades incontestáveis que uma resistência lhes propiciaria, Crétineau-Joly fala da ‘gloriosa e funesta abnegação’.” (p. 302-3)

“Das diferentes colônias espanholas, 2.337 jesuítas foram levados para a Espanha entre 1767 e 1769, sem contar mais de duzentos padres e irmãos que morreram em consequência dos maus tratos recebidos. Os Padres do Paraguai, como os outros, permaneceram encarcerados um ano, dois, três anos e mais, sem julgamento. Navios carregados de deportados não tiveram mesmo ordem de acostar a portos espanhóis e foram recambiados para a Itália. Passaram semanas ‘pairando, sob violentas tempestades, à vista da costa dos estados pontifícios’. Muitos deles pereceram. Finalmente, a Córsega teve a honra de acolher os veneráveis proscritos.” (p. 304)

 

“Outros espanhóis acorreram em massa, assim que a fronteira foi aberta, nessa região de riquezas que se imaginavam fabulosas. As instruções do Ministro Aranda recomendaram a fixação de colonos nas reduções, para evitar o isolamento dos administradores. Segundo o costume, os comerciantes de passagem tinham de ser albergados gratuitamente durante semanas. Habituaram-se a permanecer nas reduções para evitar o isolamento dos administradores. Segundo o costume, os comerciantes de passagem tinham de ser albergados gratuitamente durante semanas. Habituaram-se a permanecer nas reduções não apenas os dois meses previstos pela lei, mas quase o ano todo, desmoralizando a população, roubando-a, praticando o comércio clandestino, muitas vezes com a cumplicidade do administrador. Festins entre os espanhóis eram organizados a expensas da comunidade. O álcool serviu como principal artigo de troca e contribuiu, mais do que qualquer outra coisa, para o aviltamento do povo. Por meio de atos mais ou menos legais, as melhores terras foram surrupiadas, as plantações exploradas e pilhadas, as estâncias e os armazéns confiados, por contrato, a parentes dos administradores e diretamente roubados.” (p. 311)

 

“Não será preciso dizer que as belas promessas feitas em Buenos Aires aos Senhores Corregedores, nunca se realizaram.” (p. 313)

 

“Se considerarmos apenas os detalhes aparentes, poder-se-ia dizer que o infortúnio abateu-se sobre Entre-Rios, porque um guarani, Andrecito Tacuary, era filho adotivo do General José Artigas, chefe do Estado Provisório da ‘Margem Oriental’, que se insurgira contra Buenos Aires. O General Artigas foi derrotado em Cuareiru, a 4 de janeiro de 1817, pelo Marquês de Alegrete. Perseguido pelos portugueses, Artigas refugiou-se em Entre-Rios, onde tinha numerosos partidários, graças, precisamente, a seu filho adotivo Andrecito. Este fora, ele próprio, batido, algum tempo antes, não sem que derrotasse primeiro a cavalaria portuguesa que acorrera em socorro do General Chagas, então fazendo o cerco de S. Borja.

A intenção de Artigas era reorganizar um exército nas Missões. A consequência foi terrível. Eis a evolução dos acontecimentos, segundo Martin de Moussy, o primeiro historiador da ruína das reduções: ‘O Marquês de Alegrete, suspeitando das intenções de Artigas, tomou uma decisão extrema. Ele era o governador e capitão-geral da província do Rio Grande; o General Chagas estava, portanto, sob suas ordens. Assim, ordenou-lhe que cruzasse imediatamente o Uruguai, destruísse completamente todos os povoados das Missões ocidentais e recolhesse a população, para a repartir pelas Missões brasileiras. Nada deveria restar de pé, nem igreja, nem habitações, nem capelas, nem estâncias, nada, enfim, que pudesse servir um dia para reagrupar essas populações, que assim eram entregues a todos os horrores de um extermínio calculado.” (p. 321)

 

“O Dr. Rengger encontrou certo dia três jovens guaranis da tribo dos caiaguás. Um deles levava um rosário pendente do pescoço e disse-lhe ser cristão. O chefe da tribo, também designado por ‘padre’, encontrava-se ocasionalmente pelas cercanias. Recebeu o visitante, oferecendo-lhe inicialmente uma cruz e perguntando: ‘És pessoa de paz?’ A minha resposta afirmativa, conta Rengger, ‘foi acompanhada do presente de um colar de vidro. Deu pouca atenção a essa espécie de liberalidade e pôs-se a caminhar conosco, fazendo um grande discurso, mas sem me olhar, salvo, uma vez por outra, uma mirada pelo canto do olho. Parava algumas vezes, sem dúvida para dar ao meu intérprete o tempo de traduzir suas palavras, cujo sentido pode resumir-se da seguinte maneira:  – Vós sois brancos, Deus vos concedeu todo o poder, todas as riquezas da terra, até no próprio país que nos pertencia. Tendes belas casas, gado de que vos alimentais e escravos que vos servem. Nós, índios, pelo contrário, somos pobres, sem roupas, sem casas, forçados a percorrer as florestas para não morrer de fome e reduzidos a viver nelas, enquanto ocupais o belo país que era o nosso. É muito natural, portanto, que repartais as vossas riquezas conosco e nos deis presentes, para reparar essa grande injustiça: pois valemos tanto quanto vós.'” (p. 330)

 

“O nosso  doutor suíço achou prudente dizer-lhe que, apesar de sua cor branca, não era espanhol e pertencia ‘a uma nação que vivia, como eles, nas montanhas e no seio das florestas’. E um dos circunstantes replicou prontamente: ‘Bem, se és nosso irmão, reparte conosco tudo o que possuis.’* (p. 331)

* Rengger, Reise nach Paraguay, p 114, 129, 333-4.

 

 

Conclusões

“Apoiando-se, como convinha, na importância das condições de produção, para a transformação econômica, e nas oportunidades oferecidas pelas condições capitalistas, Marx não via nessas condições, entretanto, a base única, determinante ou indispensável, para o estabelecimento do comunismo. Acreditava que a ideia comunista era capaz de tomar a iniciativa, de repor em movimento um sistema interrompido, como o mir, e adaptar-se aos diversos graus de evolução humana, partindo até dos mais primitivos.

De fato, a República Guarani permite observar que o comunismo mais integral, mantido sem atenuação, pode acompanhar e sustentar durante século e meio um progresso constante e rápido, em todos os domínios. De uma agricultura rudimentar, passara-se à cultura industrial mais aperfeiçoada da época. O artesanato e as artes tinham florescido, pois, desde o final do século XVIII, a indústria estava em pleno apogeu no momento da agressão hispano-portuguesa. Os costumes tinham-se transformado. A vida social e religiosa atingira uma harmonia e uma plenitude ignoradas em qualquer outra parte do mundo. A República Guarani realizava, à medida que se introduziam novos progressos técnicos e culturais, ‘uma forma superior de comunismo’.

Bastara colocar, sem restrições, na base da sociedade, o princípio de comunidade, para que todo o progresso fosse colocado, primordialmente, ao serviço do bem comum, e que a constituição de privilégios fosse prevenida.” (p. 337-8)

 

“No começo do século XVII, quando foi criada a República Guarani, a ideia de uma organização geral da sociedade na base de comunidades pairava no ambiente. Reatavam-se pequenas experiências comunitárias, isoladas e perdidas no meio de uma sociedade individualista. Foi a época em que estiveram em voga as utopias comunistas com base no humanismo cristão. A Utopia de Thomas Morus e a Cidade do Sol de Campanella foram apenas dois dos exemplos mais célebres. Segundo o Manifesto Comunista, as descrições imaginárias da sociedade futura surgiram numa época em que sua realização ainda é remota. Constituem ‘um primeiro e instintivo esforço para uma transformação universal da da sociedade’. Graças ao terreno virgem descoberto na América, entre os guaranis, a ideia prontamente se realizara. Ignoramos, aliás, apesar das especulações de Franz Schmid, em que medida os fundadores da República Guarani foram influenciados pelas concepções do seu tempo.” (p. 340)

 

 

“Hoje em dia já é admitido por nós, cristãos, que os bens criados por Deus para todos deveriam ser colocados, equitativamente, à disposição de todos. Admite-se até ser esse o princípio supremo de toda a sociologia cristã ou, simplesmente, humana. Com efeito, o nosso santo patrono, Thomas Morus, poderia manter sempre o seu julgamento sobre a ordem estabelecida: ‘Quando examino e observo as repúblicas hoje mais florescentes, não vejo nelas, Deus me perdoe!, senão certa conspiração dos ricos efetuando o melhor que podem seus negócios sob o nome e o título pomposo de república. Os conjurados procuram, por meio de toda a espécie de ardis e de todos os recursos possíveis, atingir este duplo fim: primeiramente, assegurarem-se da posse certa e indefinida de uma fortuna mais ou menos mal adquirida; em segundo lugar, abusarem da miséria dos pobres, abusarem de suas pessoas, e  comprarem ao mais baixo preço possível suas indústrias e lavores. E essas maquinações, decretadas pelos ricos em nome do Estado – e, por consequência, no próprio nome dos pobres – converteram-se em leis.’

E a comunidade que responde, idealmente, ao supremo princípio da sociologia, ao passo que o comunismo, tal como transparecia já, em suas linhas essenciais, na experiência guarani, apresenta-se como um sistema técnico que aplica a ideia de um modo coerente.

A comunidade está em voga entre nós. O comunismo provoca horror. Para evitar a sua instauração, milhares de reformas vêm sendo propostas há um século, todas elas mais capazes de, em geral, perpetuarem a desordem, em lugar de a eliminarem. O próprio termo ‘comunidade’ cobre, frequentemente, projetos de organização econômica na base de propriedade privada. Caminhamos para trás desde o tempo em que os aristocratas da União de Friburgo concluíam sobre a ineficácia essencial de toda a reforma no seio do regime capitalista. Hoje em dia, acredita-se facilmente que o nosso papel providencial seria procurar, a coberto de fórmulas audaciosas, ‘ revolucionárias’, soluções moderadas. Deveria bastar-nos representarmos uma força moderadora, em vez de animadora e criadora. Que os outros empunhem o fogo! Nós seguiremos prudentemente.

O comunismo aplicado pelos jesuítas na República Guarani não era moderado. Um comunismo alicerçado em razões essencialmente econômicas poderia ser mais facilmente moderado, na acepção burguesa, por exemplo, admitindo substanciais desigualdades de renda.  […] Do ponto de vista fraternal que dominava, uma mais-valia teria parecido um abuso […]. Fora toda a falsa moderação burguesa, o respeito espiritualista da pessoa deve alimentar e alimentará melhor do que qualquer outro princípio a liberdade e a igualdade, a democracia viva e a ‘revolução permanente’.” (p. 341-2)

 

 

Algumas imagens da ruína jesuítica em Encarnación, Paraguay.

 

2 comentários sobre “A República “Comunista” Cristã dos Guaranis

  1. Estou utilizando esse livro como uma das referencias para meu artigo. Com muito cuidado e parcimonia. Existem poucas obras que comtemplam as primeiras reducoes aquelas de 100 anos antes das famosas conhecidas como sete povos que todos conhecem

  2. Conheci a pouco a existência de livro e, me espanta a insistência sempre- desde aquela época-, da classe dominante, em nosso país, a trazer o entendimento de que toda vez que uma faísca que seja de igualdade de condições de vida de um povo ou sociedade, ou até comunidades silvícolas, que se trata de “ comunismo ou comunistas”!

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