Solidão solitude
Individualismo individualidade
Comunidade?
Pessoas tão sozinhas e simultaneamente tão desesperadas por companhia.
“A linguagem criou a palavra solidão para expressar a dor de estar sozinho. E criou a palavra solitude para expressar a glória de estar sozinho.” (Paul Tillich)
Desconfio que para viver em harmonia com a comunidade da vida é preciso saber estar só –dos paradoxos que giram a roda da existência, paradoxal vida-morte-vida.
E, na mais profunda solitude, descobrimos que nunca estamos sozinhos, que até essa solitude é uma ilusão. A parte não existe sem o todo. Zen paradoxo (e os monges e monjas meditam tudo juntim).
A ilusão da separação… Me alimento da vida, e por mais que queiramos fazer de conta que não, expurgamos dejetos (que possivelmente são e deveriam ser re-integrados a esse ciclo) tão naturalmente quanto respiramos – inalando o ar que preenche o espaço comum, exalando esse mesmo ar transformado, já outro.
O chão que eu piso, tão vivo. Sem tantas inter-relações, não existe vida. A vida surge do amor entre as moléculas, como tão lindamente imaginou Clarice Lispector (imaginação, quiçá a forma mais simples e doce de tatear aquilo que a razão não alcança). Será a ilusão da separação o que nos distanciou tanto desse amor inicial,
mborayu, palavra guarani que designa o espírito que nos une e dá origem à existência? (Ou terá sido o desaprender a imaginar? Ou será que são a mesma coisa?)
O exercício da convivência com todos os seres, a partir do respeito aos limites de cada um: a parte só existe em relação com o todo, mas também existe – e viva as diferenças. O meu limite encontra o seu limite. Quando queremos.
E, vivendo com todos, em solitude, não precisar viver com ninguém especificamente, transcendendo essa noção de posse e de apego. Assim surgem ou surgiriam as verdadeiras parcerias. Sexuais ou não. Escolhas, afinidades. Criações coletivas. Infinitas enquanto duram, enquanto fazem sentido. Enquanto se compartilha o caminhar. Até que os caminhos se separem. Se distanciem. Se transformem.
Do precisar ao querer. Em seus infinitos formatos, durações e possibilidades.
Relacionar-se ou não e como é aparentemente um drama universal, que perpassa eras e culturas – ou então não seriam as tragédias emocionais o centro articulador de tantos mitos. E as feministas já mostraram e comprovaram que a afetividade é política sim, que é social e historicamente construída. Que, ao mesmo tempo que passa pelas particularidades de cada um, é também uma questão comum.
Mas… como fica a infância nesse papo de solitude? As crianças vêm lembrar que, se existe solitude, também existe afeto e responsabilidade. Ou seria justamente a manutenção de uma saudável solitude em cada um, ancorada e respeitada coletivamente, um pré requisito para uma infância menos tiranizada pelos adultos, e de uma maternidade menos sugadora das mães? Uma sociedade que prima pela solitude não cometeria a tirania atual de relegar a responsabilidade última pela criança exclusivamente à mãe?
E as comunidades? Não seriam as necessidades, naturais ou sociais, alguns dentre os principais fatores que as uniu e as une historicamente? Seria essa união em torno de necessidades comuns algo a se transcender, ou simplesmente uma aceitação de nossas características enquanto seres sociais? É a necessidade ou a vontade o que nos une, ou deveria unir?
Qual o limite entre necessidade e vontade? Entre aquilo que se precisa e aquilo que se deseja? O que precisamente é preciso? (Mas aí vêm alguns fatos concretos – como crianças que necessitam de cuidado, ou comunidades que precisam defender seu território – e pow, a relatividade vai pro espaço.)
Talvez o fato de querer diferenciar vontade e necessidade seja apenas mais uma armadilha utilitarista. Talvez a questão fundamental não seja em torno de precisar ou querer. Mas a posse. Do outro. Da vida. Da terra. E do que motiva esse querer.
Às vezes acho que muito do se veste de um discurso emancipador está calcado num forte individualismo, uma lente que faz com que continuemos achando que tudo só depende de nós mesmos e não consigamos olhar para além do nosso prato, do nosso umbigo – e da nossa cama.
E que clamemos por nossa tão preciosa solitude.
O que leva a questionar se esse papo de individualidade faz parte da trajetória universal de emancipação humana, emancipação inclusive daquelas amarras morais do tradicionalismo que fazemos bem em nos livrar – ou, por outro, é crise existencial pós-mod de gente desterritorializada que já virou suco. Será ainda possível viver comunidade, ou falar em devir comunitário, na atualidade? Como?
Talvez seja que comunidade tenha ou possa ter vários significados. Que ainda possamos inventar juntas (ou juntos, ou juntes – bem vemos que as palavras vão se transformando à medida em que nós nos transformamos, em que atribuímos diferentes sentidos e formas a elas. Seria esse o caso de comunidade?)
E talvez seja que, assim como diferenciar solidão e solitude, seja necessário (ou apenas interessante) diferenciar individualismo e individualidade. Arrisco:
“A linguagem criou a palavra individualismo para justificar injustiças. E criou a palavra individualidade para reconhecer diferenças.”
Assim a solitude só seria real se compartilhada. Individualidades em comunidade, a partir do respeito e da coexistência. Ou como se poderia reconhecer diferenças sem a referência do outro?
Dos tateios rumo a uma solitude comunitária.
Essa reflexão veio a partir desse texto aqui. Mas não se ateve (nem um pouco) a ele. Desculpa.