Mulheres zapatistas e a saúde comunitária

Entrevista com promotoras de saúde das comunidades zapatistas durante o I Encontro Internacional Político, Artístico, Esportivo e Cultural de Mulheres que Lutam

Por Michele Torinelli / Vida Boa

 

Veja também o relato do Encontro: Mulheres em luta e, por alguns dias, sem medo: nosso acordo é viver

Equipe de saúde no Encontro de Mulheres que Lutam

 

Milhares de mulheres, de vários mundos dentro desse mundo, se reuniram em território zapatista de 7 a 11 de março desse ano. Entre os muitos cuidados e trabalhos que as anfitriãs levaram a cabo para receber-nos, organizaram uma equipe de saúde para garantir o bem estar de todas. Suas integrantes faziam parte não somente do Caracol “Redemoinho das Palavras” em Morelia, onde aconteceu o evento, mas vieram também dos outros quatro Caracóis zapatistas espalhados pelo estado de Chiapas, no sudeste mexicano.

Meu interesse em entrevistá-las surgiu de eu ter acompanhado o atendimento de uma huesera (palavra que deriva de osso, hueso) a uma companheira que tinha torcido o pé. Me lembrei do setor de saúde do MST – Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra lá no Brasil, como utilizam sabedorias populares, ervas, bioenergia e outras terapias naturais nas suas práticas comunitárias de saúde e também nos atendimentos durante a Jornada de Agroecologia, grande encontro que acontece todos os anos no sul do Brasil, estado do Paraná.

Respondendo ao meu pedido de realizar uma entrevista, Aurora, a coordenadora de saúde, veio ao meu encontro. Estávamos ao lado do palco, em meio ao vai e vem de tantas mulheres, e perguntei se podíamos nos retirar um pouco, por causa do barulho, sendo que eu tinha a intenção de gravar a conversa em áudio¹. “Vai ser demorado?”, me questionou. Respondi que não muito, que tinha algumas perguntas sobre como se organizavam. Ela pediu para eu esperar uns minutos, porque estava atendendo, e que logo voltaria para conversarmos.

Uns vintes minutos depois, ela reaparece e me leva para um espaço atrás do palco. E lá se somam a ela várias mulheres com os pasamontañas ou paliacates, as máscaras e  lenços, e também com jalecos brancos. Aurora não só me concedeu seu valioso e disputado tempo, mas convocou toda a equipe para dar uma entrevista coletiva, a mim, uma mera desconhecida. Dessa solidariedade zapatista que deixa a gente comovida – e da importância que dão à palavra coletiva, que reflete o pensar e o fazer comum, sua ética e sua prática.

 

Como se organizam 

O setor de saúde do movimento zapatista se divide em 3 áreas, no que tange aos saberes tradicionais: hueseras, parteras (cuidados relativos à gestação e ao parto) e hierberas (palavra derivada de hierba, erva, ou seja, que diz respeito às plantas medicinais). O trabalho coletivo de saúde perpassa as comunidades, os municípios autônomos e os Caracóis (que é como se chamam os conjuntos de municípios autônomos zapatistas).

Preparativos do cenário da peça de teatro em que as zapatistas contaram da importância das práticas ancestrais no trabalho comunitário de saúde

Cada comunidade nomeia sua promotora (ou seu promotor) de saúde, e essas pessoas vão se formando, com cursos, oficinas, desde seus saberes tradicionais mas também incorporando conhecimentos e práticas modernas. E, a partir de suas reuniões, definem o que querem aprender – e a que precisam se dedicar enquanto comunidade. “Os casos também vão nos ensinando”, disse uma das integrantes da equipe de saúde, evidenciando a importância de direcionar as estratégias de acordo com as necessidades locais, assim como integrar teoria e prática.

 

Cuidados de mulher para mulher

Recentemente está havendo uma atenção especial à área de ginecologia – nesse caso, foram nomeadas exclusivamente mulheres. “Porque a maioria das companheiras não gosta de ser atendida por homens”, conta Aurora. Apesar de que algumas se deixam ser examinadas por eles, “elas acabam não dizendo exatamente o que sentem”, e assim, nunca se curam, e retornam para as consultas muitas vezes. Por isso decidiu-se nomear apenas mulheres para essa função, “para que haja mais confiança, entre mulheres”, explica.

 

Saberes comunitários

Ao ser questionada sobre a necessidade de “recuperar” saberes ancestrais, Aurora falou que sim, que muitas vezes é preciso recuperar, mas, na verdade, eles estão aí, seguem sendo aplicados na prática. Ou seja, nunca se perderam. Trata-se mais de aprender com os que sabem.

Outra companheira, também coordenadora de saúde em sua comunidade, destacou que esse é um ponto muito importante para os povos em resistência. “As plantas medicinais têm sido muito valiosas para nós porque muitas vezes não temos dinheiro para comprar remédios, ou quando temos, estão muito longe”, disse. Ela acredita que, além de os remédios muitas vezes fazerem mal e serem caros, a grande vantagem de trabalhar com as plantas medicinais é que elas estão ali, acessíveis, e podem ser utilizadas sempre que se necessita.

Por isso tem sido muito importante para o movimento esse reconhecimento dos saberes, de aprender com as curadoras e curadores, porque ao invés de comprar uma pastilha ou tomar uma injeção se podem usar as plantas, em forma de chá, em tinturas ou xaropes. “Por isso houve a necessidade de cada comunidade fazer seu jardinzinho”, complementou outra promotora de saúde, “para que dele possamos tirar nossos remédios, para que não nos faltem”.

 

A maratona de trabalho para organizar o Encontro: autonomia entre mulheres

“Pra dizer a verdade, levou bastante tempo”, disse Aurora sobre o processo de organização da equipe de saúde para o Encontro. “Primeiro tivemos que chegar a um acordo nas comunidades – pensar se daríamos conta do trabalho e o que poderíamos fazer -, logo nas regiões, depois nas zonas, e então nos cinco Caracóis. Tivemos que fazer um acordo muito grande e é algo muito difícil, isso é certo, é muito difícil. É como dizem algumas companheiras aqui, quando perguntam como se faz pra perder peso, pois organizem um encontro”, disse ela, entre risadas.

“Às vezes nem fome sentimos, é pesado, é cansativo, é bastante trabalho”, revela Aurora. Quase um ano de dedicação, desde que as reuniões começaram nas comunidades, para que chegasse esse dia. “E pensar se vai dar certo, se vai dar errado, ou o que vai acontecer, tudo tem que ser pensado, o que vamos precisar, e mesmo no último momento estamos vendo que faltou isso, que querem aquilo, mas aqui estamos, e assumimos um compromisso, por isso temos que cumpri-lo”, disse ela.

“E, o mais importante, porque aqui não entrou nenhum companheiro para apoiar-nos”, destacou. “Porque assim decidimos, assim foi o acordo. Tínhamos feito outros encontros, mas com os homens, e agora não. Tivemos que aprender muitas coisas. Sim, foi difícil pra nós, foi muito duro, mas sim, é um aprendizado”, resume Aurora.

Os principais atendimentos durante o evento foram relativos a acidentes – algumas caíram de escadas, outras até mesmo do palco, e muitas torceram o pé. Também houve bastante procura devido a dor de cabeça, dor de barriga e diarreia. “As pessoas que vieram, muitas são de fora, é gente da cidade, então é difícil pra elas andar no campo”, disse Aurora, referindo-se à quantidade de acidentes – e agregou que muitas se debilitaram pela mudança de clima, de alimentação e pelo cansaço da viagem.

Havia uma ambulância à disposição, mas a maioria preferiu não ser levada ao posto de saúde e optou pelos tratamentos tradicionais, com plantas e massagens. A equipe de saúde se dividiu em turnos e estava disponível a todos os horários.

Huesera atendendo uma companheira que torceu o pé

 

Cosmologia, mulher, cultura e saúde

Sylvia Marcos, psicóloga e socióloga feminista, conta em seu livro “Mujeres, indígenas, rebeldes, zapatistas“² que curandeirismo é um termo espanhol que foi cunhado para definir as maneiras como os povos indígenas faziam para cuidarem de si mesmos – não só como resistência à invasão espanhola, mas constituindo um espaço de invenção contínua e autônoma. Desse modo, elementos de diferentes períodos históricos são misturados, reorganizados e re-significados pelos sujeitos que, ainda hoje, levam a cabo esse processo: as grandes populações pobres nos centros urbanos do país e as comunidades campesinas.

E, em grande medida, são as mulheres as guardiãs dessas sabedorias e as praticantes do curandeirismo – as curandeiras -, ao contrário do universo dos médicos, dominado por homens, os doutores que detêm a autoridade do diagnóstico e dos métodos de cura.

São saberes de uma ancestralidade que, apesar de não ser isenta de relações de dominação de gênero, ou seja, de machismo, possibilitava que mulheres ocupassem posições de poder. Uma ancestralidade que parte de uma cosmovisão em que se reconhece o feminino como sagrado numa relação de equilíbrio com as forças masculinas – concepção frequentemente condenada pelas feministas urbanas e acadêmicas, que muitas vezes tentam impor de maneira colonialista suas perspectivas de gênero, desconsiderando que as indígenas zapatistas podem conceber de outras maneiras seu empoderamento e o enfrentamento às opressões que vivem.

Sylvia conta também que, de acordo com as tradições mesoamericanas, “a integração do corpo com o universo significa que a cura só pode ser concebida em termos cosmológicos-religiosos. Ou seja, para regenerar o corpo, é preciso também, em algum sentido, regenerar o mundo, alinhar a relação que cada um tem com ele e seus poderes que penetram por todas partes”.

No caso específico do movimento zapatista, Sylvia aponta que suas “clínicas incorporam – ao lado das necessárias intervenções hospitalares da medicina alopática – todos os outros saberes originários de sua cosmovisão, construídos a partir da concepção de uma corporalidade porosa e permeável, de um corpo que está interconectado com o cosmos, em que não existem fronteiras fixas de pele que divide exterior e interior”.

Trata-se de uma concepção integral de saúde, que parte da ancestralidade e que entende as pessoas como parte do seu meio – da comunidade, do planeta e do cosmos.

 

1. Áudio completo de la entrevista en castellano.

2. “Mujeres, indígenas, rebeldes, zapatistas”. Sylvia Marcos. México, 2011, 1a edição. Capítulo “El espacio religioso y médico de las mujeres en México”.

 

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