A pós contemporaneidade é ancestral (ou não será)

Manifestação cosmofágica pela descolonização ch’ixi pará


Colheita da roça coletiva de avaxi eté, milho de verdade Mbya Guarani, cultivado no Canto da Saracura em Maquiné-RS (2020)

Seres atravessades por várias matrizes ancestrais e contemporâneas, que se reinventam a partir dessas diversas influências que se atualizam, interagem, mas não se anulam. Uma descolonização ch’ixi, usando um termo aymara. Pará, pra dizer em guarani. Milho colorido que contém várias cores, mas cada grão de uma cor. Farofa pedaçuda de múltiplas ancestralidades e rebeldias que re-existem na contemporaneidade cosmopolita, digital e caótica.

Abaixo o sincretismo homogeneizador! A descolonização não é cordial, ao menos não do jeito que falaram sobre um Brasil em que as diferenças supostamente dançam sem conflitos. A dança é também luta, porque frente a tanta injustiça contra indígenas, negrxs, mulheres, heterodesviantes e tantes outres que desafiam a normalização produtivista, contra a diversidade da vida em suas múltiplas manifestações, re-existir exige malemolência, sabedoria, força e coragem. Mbara’eté. Ginga.

A descolonização não é mestiça, não do jeito que falaram sobre este continente de sangue vital onde a vida pulsa, Abya Yala, que um tal Américo arrogantemente presumiu descobrir. Uma mestiçagem em que o branco e o negro se misturariam num cinza que apaga diferenças, que só existe no discurso, porque na realidade as diferenças são nítidas, visíveis na segmentação de distintas cores e gêneros em determinados papeis, geografias e classes sociais. O 1% mais rico do mundo é hetero, masculino, branco, cis. Do norte global. A maioria das pessoas e grupos na base da pirâmide, esmagades pela brutalidade capitalista disfarçada de sofisticação tecnológica, é negra, indígena, mulher, lésbica, trans, bicha. Do sul.

O sul contém muitos nortes, e o norte tem muito do sul. Mas nosso norte é nosso sul.

Silvia Rivera Cusicanqui fala sobre descolonização a partir do termo ch’ixi. Hoje reconhecida mundialmente por seu pensamento e ação descolonizantes, a pesquisadora e ativista boliviana foi criada em La Paz numa família que não se entendia como indígena. Ao longo de sua trajetória como ativista, acadêmica, mulher, foi reconhecendo sua raíz Aymara, que está (também) no sobrenome. Ela se considera ch’ixi, palavra que se refere a seres como sapos e cobras, com suas peles compostas por vários pontos de cores diferentes que formam um todo texturizado, uma mescla em que as diferenças se integram num todo, numa outra coisa, mas não são anuladas. Diferenças que coexistem e geram algo novo, a partir do encontro do que é velho e se mantém – mas vai além.