Diário de obra 3

Mulheres em obra

Passei a segunda feira de 8 de março em cima de um telhado com outras mulheres. Aliás, não um telhado qualquer e nem bem um telhado: o suporte de madeira que sustentará o teto verde-morto-mulch-serrapilheira da minha casa. A minha garganta doía, meus lábios e a mucosa interna da minha boca estavam inchados, vermelhos, sensíveis, irritados, mas eu estava feliz.

 

Naquela tarde, apenas entre mulheres, finalizamos como pudemos esta etapa da obra – pintando a parte externa das tábuas com óleo queimado ao entardecer. A etapa foi muito trabalhosa, e muito mais demorada do que imaginava. Colocar os caibros com as madeiras verdes e empenadas. Tirar a craca das tábuas novas mas já mofando depois de alguns dias empilhadas sob lona, uma a uma, no facão ou algo que o valha. Depois lixa (na mão, porque a lixadeira emprestada parou de funcionar misteriosamente na 2a tábua), e ainda passar óleo queimado minuciosamente nas bordinhas laterais, onde elas encaixam uma na outra – ou se pinta esse local antes de pregar ou nunca mais. O óleo queimado é um material reutilizado, barato e que protege muito a madeira.

 

E aí subir as madeiras, medir o vão entre os caibros um a um, serrar na medida exata e ir encaixando e pregando lá em cima. Tudo isso com 105 tábuas. Aliás, mais. Não haviam sido consideradas as brechas entre os caibros, e que as tábuas precisariam ser cortadas. Desespero na obra: vai faltar madeira. Todo um esquema que foi feito pra subir as madeiras de tobata lá pra cima, todo um exaustivo diálogo com a madeireira, impossível de repetir num fim de tarde de sexta feira pra que a etapa pudesse ser finalizada no fim de semana. Começamos na terça, estávamos em 5 pessoas, achei que até sexta já teríamos terminado o telhado todinho, com serrapilheira, dreno e tudo. Doce ilusão.

 

Lembrei de umas madeiras empilhadas na vizinhança que já haviam sido colocadas à disposição. Solidariedade e enjambre total, madeira diferente, mas no final vai ficar pro beiral de trás, nem vai dar pra ver de dentro da casa (já tava imaginando aquela “charmosa” colcha de retalhos).

 

Momentos de cansaço, de estresse, de desafios, mas também de muito trabalho coletivo e aprendizados. Por coincidência – ou não – terminarmos essa etapa no dia 08 de março apenas entre mulheres.

 

Meu sonho inicial para a casinha era de fato construir apenas entre mulheres. Dei uma sondada inicial nesse sentido, mas acabou rolando com homens também – e agradeço muito aos amigos que colocaram sua energia pra subir essa casinha. Mas na tarde dessa segunda, uma ficha caiu: há de continuar prioritariamente entre mulheres.

 

Choris

O diálogo fluiu de outro jeito. O trabalho fluiu de outro jeito. Eu mesma que não havia pego na serra circular ainda durante a obra me vi medindo e serrando as tábuas. E cada vez mais manas disponíveis, com vontade, parceria e experiência, têm aparecido.

 

Nesse momento me dei conta de hermanas próximas que tão passando por processo de reinvenção de suas vidas, saindo de espaços onde colocaram sua energia por meses ou muitos anos, envolvendo relações com homens. Como uma delas me falou, quem tem que estar à mercê procurando uma casa e refazendo suas vidas em pleno auge da pandemia? As mulheres. Normalmente estoura pro lado delas, que já não se submetem a viver certos padrões que drenam suas energias. E lá vão elas, sempre segurando todas as ondas, muitas vezes com crianças, mesmo que destruídas por dentro. Enquanto isso, quem são os reconhecidões, os líderes, os grandes construtores, os proprietários, os xamãs? Não preciso nem dizer né.

 

Así que reconhecer as manas, chamá-las pra trabalhar, além de ser gostoso e gerar um outro clima, é também um ato político. E perceber que somos capazes, também.

 

Desejo força, acolhimento, apoio mútuo e serenidade pra mim e pras hermanas e hermanes; conscientização, abertura pra diálogo e controle de seus ímpetos (pra dizer o mínimo) pros hermanos. Que larguem mão de querer protagonizar tudo sempre. Que silenciem quando se há de ouvir, que falem com o coração quando há de se dialogar. Que valorizem e pratiquem os trabalhos relacionados ao cuidado, aquele trabalho invisibilizado e diário que permite que todo o show aconteça (gracias, Jean e Sabiá, por apoiarem com tanta dedicação na cozinha ❤).

 

Agradeço pricipalmente à força feminina e especialmente à Sofi, Bruna, Helena, Montanha e Ananda que colocaram sua energia diretamente nessa casinha, às outras hermanas que se disponibilizaram e apoiaram de outros modos (como Mirella, Mima e Fernanda), à Bruna e Dani da Yapó que co-fizeram o projeto, à Pati que foi lá ver e disse que a gente é muito valente, muito xondaria de estar construindo essa casinha, e a todas que estão enviando seu mbara’eté. ❤ ❤ ❤ ❤

 

Dia 08 de março não é só dia da mulher, mas aniversário da minha irmã, então agradeço também essas mulheres da minha vida que sempre estiveram aí pro que der e vier há tanto tempo, irmã Vivi e nossa mãe Cida, e agora também Clarinha, que cumpre 3 anos amanhã (essa família metade Peixinha, metade Sagita… Haja Júpiter).

 

Eu tô me recuperando desse baque de saúde misterioso que parece que surgiu de uma goiaba estranhona fermentada que eu comi só a casca – naturóloga mara amiga querida Grá me ajudou a desvendar que a casca da goiaba é rica em tanino, que em excesso dá essa sensação de amarrado na boca. Foi só parar de trabalhar na segunda feira que o corpo pediu arrego. Cansaço e estresse contribuem… O negócio foi forte, irritou gengiva, lábio, fechou garganta, mas com muito descanso, copaíba, própolis e chá de gengibre com cravo esses sintomas quase já passaram totalmente, ficou só a lesera. E que lesera. O corpo exige repouso total.

 

Escrevo essas palavras como exercício de cura e expressão tão necessário, que pelo que já andei conversando, vejo que reverbera muito nas mulheres. Não é à toa que esse processo historicamente masculino de obra me fragilizou justamente na boca e na garganta, canais de expressão.

 

Logo logo eu volto a cantar. Equanto isso, leio e escrevo. A desfrutar do descanso na caverna nessa lua que mingua e fica nova, em Peixes, junto com o sol – a última lua nova desse ciclo solar astrológico. Minguando e avaliando, discernindo o que fica e o que já não satisfaz. Para que o novo possa brotar a partir das boas sementes selecionadas, de um solo rico, trabalhado e descansado.

 

Choris, eu e Ananda. Fotos da Bruna.

Um comentário sobre “Diário de obra 3

  1. Que projeto legal. Gostaria muito de saber onde foi construída a casa. Gostaria de saber mais sobre o “óleo queimado “ usado para preservar a madeira. Que tipo de óleo? Vegetal? Mineral? Ando lendo sobre construir meu próprio espaço com madeira usada em galpões. Agradeço!

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