Mulheres em luta e, por alguns dias, sem medo: nosso acordo é viver

“Proibido entrar homens”, dizia um cartaz na entrada do 1o Encontro Internacional Político, Artístico, Esportivo e Cultural de Mulheres que Lutam. De 7 a 11 de março, apenas entre nós, trocamos saberes, cruzamos nossos seres e sentimos uma liberdade compartilhada que talvez nunca se sentira. Um território de confiança propiciado pela organização e generosidade das zapatistas, que deram seu exemplo de luta – não para que as imitemos, mas para que nos impulsionemos a lutar cada vez mais, a nossos modos, em nossos lugares.

Por Michele Torinelli / Vida Boa, a partir de vivências, escutas, avaliações e conversas comuns

 

Veja também: Mulheres zapatistas e a saúde comunitária

As zapatistas deram seus paliacates (lenços tradicionais) de presente às companheiras do time visitante no início do jogo de futebol. Nosso acordo é não competir.

 

Você, mulher. Cis, trans, hetero, lésbica, bi ou como quer que cada uma se chame ou se entenda. Imagine não sentir medo. De ser assediada, de ser agredida, de ser estuprada, de ser morta. Sim, esse medo que sentimos todos os dias, seja nas ruas das grandes cidades, seja em plena natureza, às vezes até mesmo no suposto aconchego do lar.

Imagine não ser observada por olhos que estão analisando seu corpo milimetricamente, de acordo com esse padrão que te objetifica – e nem sequer ter espelho disponível para que você se dirija esse olhar internalizado. Imagine não ser subjugada a um papel que lhe reservaram, historicamente – seja de filha, esposa, empregada, sob relações de poder que nos levam a calar, aceitar, obedecer.

Milhares de mulheres, de vários mundos dentro desse mundo, se reuniram em território zapatista de 7 a 11 de março desse ano. Mulheres tão diferentes mas que têm algo em comum: são mulheres que lutam. E, ao longo do encontro, pudemos construir outra coisa em comum: esse quase milagre de ter uma sensação coletiva de segurança, de ausência de medo.

Claro, a impressionante organização zapatista e o fato de estarmos em território rebelde contribuem imensamente para isso. Mas a ausência masculina também.

Era algo que se percebia na facilidade das comunicações, com ou sem palavras, e nos corpos, entre todas. E, como comentaram companheiras que atuam com as comunidades da região, era algo que se percebia também na maneira de estar das zapatistas. Soltas. Livres.

Aquecimento

Um causo, relatado por uma compa que estava trabalhando no apoio junto às zapatistas, ilustra bem o clima: umas jovens de fora, respeitosamente, foram perguntar às que estavam no apoio se podiam tirar a blusa, pra ficar com os peitos de fora. Elas disseram para perguntarem às zapatistas, afinal a casa era delas. Ao que as zapatistas responderam: “pues estamos entre puras mujeres, hagan lo que quieran”.

Entre a mulherada podemos fazer o que quisermos. Sem medo.

Saímos cansadas, extasiadas e em crise. Uma necessária crise. Que nos faz ter vontade de caminhar, cada vez mais, em comum – e, cada vez mais, entre mulheres.

Sim, mesmo que às vezes dê preguiça, é preciso integrar os homens nessa luta contra o patriarcado – isso nos ensinam as zapatistas, que abriram as portas aos seus companheiros na última noite do Encontro (o que gerou estranheza a algumas de fora: “mudou a energia”, ouvi de muitas, que preferiram se recolher).

Por mais que, após essa experiência intensa e libertadora, algumas tenham sonhado com um mundo só de mulheres, a realidade em nossos muitos mundos não é essa. Mas ter consciência de que existe vida [e lutas] em comum com os homens – destacadamente a grande luta contra esse “pinche” sistema capitalista, que a tudo explora, que a tudo coisifica – não impede que preservemos e multipliquemos nossos espaços exclusivos de troca, de escuta, de carinho, de cuidado entre mulheres, sem deixar de enfrentar os colonialismos que insistem em se reproduzir até mesmo entre nós  – e que, segundo relatos, foram perceptíveis durante o encontro. São várias as dimensões de luta, que se cruzam e não podem ser ignoradas.

Contudo, e antes de tudo, como bem lembraram as companheiras zapatistas, é preciso estarmos conscientes de que não podemos aceitar o(s) patriarcado(s) – nenhum patriarcado, seja capitalista ou não. Moderno ou ancestral.

Podemos e devemos nos permitir estar juntas, em segurança e liberdade. Nos fortalecer. Nos cuidar. Nos organizar. Nos descolonizar. Entre mulheres de luta que somos. Porque, agora temos certeza, juntas podemos acender a chama dentro de nós e botar fogo nesse mundo caduco que precisa renascer – das cinzas do capitalismo, das cinzas do patriarcado.

 

Rumo ao Caracol

Vim da capital, Cidade do México, 16 horas de viagem. No ônibus, trazia minha mochila menor – que não é tão pequena assim – entre as pernas, o que as mantinha relativamente abertas – tal como, via de regra, fazem os homens, mesmo sem nada que o justifique. Afinal, o mundo gira em torno deles, e eles não precisam se preocupar em compartilhar espaço. Um homem sentou ao meu lado. E ficou com as pernas tão abertas quanto eu, apesar de que não havia mochila alguma entre elas. Fomos com as pernas apertadas uma contra a outra. Ele não foi ensinado a ceder, esse papel caberia a mim. Pequenos detalhes simbólicos do cotidiano de uma mulher em um mundo patriarcal.

Cheguei a San Cristobal de las Casas, em Chiapas, sul do México, pela manhã. Ao retirar a mochila grande do bagageiro, me deparo com outra mulher mochileira. “Você vai ao Encontro?”, perguntei. Evidente que sim. Seguimos juntas, eu e a nova amiga argentina Majo, a descobrir como chegar ao Caracol de Morelia (ou melhor, Caracol IV – Redemoinho das Palavras, zona de Tzotz-Choj; Caracol é como se chama o conjunto de municípios autônomos zapatistas – são cinco Caracóis, e cada um conta com uma Junta de Bom Governo). Frente ao meu excesso de bagagem, ela se ofereceu pra ajudar, levando minha barraca. Gentilezas.

Paramos para tomar café – Humo en los Ojos, fumaça nozoio, se chamava a cafeteria aconchegante e barata com fogo à lenha e mulheres no batente, quesadillas com feijão para começar o dia – e logo buscar conexões para nos comunicarmos com outras amigas, conhecidas ou recém virtualmente conhecidas que também estavam a caminho do Encontro, uma rede informal de comunicação que já se tecia. Entre as possibilidades que se apresentaram, optamos por ir ao terminal de ônibus de San Cristobal, em frente ao qual muitas mulheres esperavam com suas mochilas sem saber muito bem como iriam, pois não há ônibus direto. Depois de alguma confusão, informações dispersas e tentativas de diálogo com os motoristas de táxi e van, consegui pegar o último lugar em uma van, que ia direto ao caracol, me separando da minha nova amiga argentina e de uma alemã que havíamos recolhido no caminho – e que já haviam seguido outros rumos em meio à pequena multidão.

Estrada cercada de verde, zona rural. Sol, calor. Gente do campo e seus animais. Fui conversando com uma chilena que se interessava por terapias naturais e plantas medicinais – me mostrou um lindo livreto ilustrado com plantas do México, algumas também conhecidas no Brasil, mas com nomes diferentes. Depois de algumas horas, nos deparamos com placas que indicavam que estávamos em território zapatista. A expectativa crescia e uma emoção, que quase beirava a incredulidade, ia tomando conta. Paramos para pedir informações, e alguém que já parecia ter respondido a muitos alguéns nos indicou que faltavam apenas algumas centenas de metros. Até que vislumbramos um imenso cartaz: bienvenidas, mujeres del mundo. A companheira que ia ao lado do motorista não pode conter sua alegria e meteu a mão na buzina, várias vezes, comemorando e anunciando nossa chegada.

Um homem, além do motorista, nos acompanhava na van. Muita gente não havia entendido se eles poderiam entrar ou não. Em encontros de mulheres anteriores organizados pelas zapatistas, os homens podiam participar limpando, cozinhando e cuidando da infraestrutura. Mas dessa vez, não: os que chegaram foram convidados a acampar fora dos portões do Encontro. Depois do evento, um deles me contou que ficaram “de férias”, e que alguns formaram rodas para conversar sobre machismo e como enfrentá-lo. Sem falar nos que se sentiram “ofendidíssimos”.

 

Território de mulheres rebeldes

Nos deparamos com a primeira de muitas filas, para o credenciamento. Gratuito, evidentemente – por uma questão ética, da lógica de ser movimento, mas também já bastava o esforço que cada uma fez para chegar ao Encontro. Impressionante o poder de convocação zapatista, que, mesmo com escassos recursos financeiros, consegue mobilizar multidões – como frisou Silvia Federicci, que estava no México nesses dias (mas não foi ao Encontro). É que o movimento possui outros recursos, que não se contam em cifras: uma luta concreta, autônoma, que abarca milhares de indígenas e se organiza sem deixar de questionar(se), sem impor, ao contrário de tantas lutas de esquerda; e palavras coletivas que partem dos corações, se disseminam em redes e (co)movem o mundo.

 

Milhares de mulheres vieram de muitos cantos desse planeta (e aparentemente até mesmo de outros) sem nem saber qual seria a programação – mas sabiam (ou sentiam) que essa seria uma experiência única. Algumas não puderam chegar, seja por condições financeiras, ou por não poderem deixar suas responsabilidades (indiretamente proibidas pelo “pinche” sistema capitalista), ou ainda por terem sido barradas no caminho (diretamente proibidas por esse “pinche” sistema capitalista e seu raivoso cão de guarda, o Estado): soube de uma companheira revolucionária curda e companheiras anarquistas gregas que foram retidas pela migração. O México acata os critérios dos Estados Unidos, e se alguém é mal visto lá em cima, não pode entrar aqui embaixo. Pessoas que já foram presas em protestos são mal vistas na sede do Império. Subserviência global.

Mas muitas chegaram, e fizeram fila em frente à entrada, sob o forte sol, com suas mochilas. Depois de cerca de uma hora, fui encaminhada portão adentro. Duas jovens zapatistas logo se aproximaram para me guiar até o local onde eu poderia acampar, e se ofereceram para carregar minhas coisas. A princípio neguei, mas, com a insistência, dei a barraca pra uma e a mochila mais leve pra outra. Aceitar ajuda é também um aprendizado. Já havia algumas barracas armadas na colina em frente ao dormitório 1.  Encontrei uma área um pouco mais plana no alto, em frente à porta do dormitório, e ali montei minha casa.

Já era quase fim do dia. Aproveitei o resto de luz para ir ao banheiro, me localizar, e logo que o sol se pôs me retirei na minha barraca. Estava exausta. O primeiro dia era só de chegada, e não parava de chegar gente. Dormi como uma pedra e acordei com muita movimentação em volta e anúncios no auto-falante. Mas ainda era escuro. “Como acordam cedo essas zapatistas”, pensei. Levantei, lavei o rosto com a água que tinha na minha garrafa, troquei de roupa, coloquei minhas lentes. Saí da barraca e fui dando “buenos días” pras pessoas. Algumas respondiam, outras não; assim é a vida.

Muita gente andando de lá pra cá, muitas recém chegadas com suas mochilas nas costas. Perambulei até que achei uma mulher vendendo café, servindo xícaras desde sua grande panela. “Buenos días”, eu disse, e ela riu e respondeu, “essa aí já tá toda confundida, já não sabe se é dia, se é noite”, eu ri também e disse, “noite, dia, essas horas é tudo a mesma coisa”, e seguimos rindo. Mas ficou uma sensação estranha. Sentei na mesa coletiva e perguntei pras compas que aí estavam que horas eram. “23h30”, me respondeu uma – elas tinham acabado de chegar, disseram que a fila estava imensa lá fora. Por um momento achei que não, não podia ser verdade; eu estava super disposta pra começar o dia. Mas por outro lado, até que fazia sentido, havia algo estranho na cara das pessoas quando ouviam o meu “buen día”, e estava tão escuro… A coisa começou surreal. E eu com um copão de café às 23h30, fiquei me perguntando como faria pra voltar a dormir.

Uma das muitas mulheres que serviram o café nosso de cada dia

Mas não foi tão difícil. Voltei e dormi. Ganhei uma segunda noite de sono na sequência. A movimentação seguiu madrugada adentro. Despertamos com o grupo de mulheres zapatistas Dignidad y la Resistencia, do Caracol de Oventik, tocando canções de rebeldia às 6 da matina. Agora sim começava o dia.

Panelas de café, frutas, “elotes” (os milhos verdes), atole (uma espécie de mingau de arroz) e até sopa de legumes (com tortillas, evidentemente) no café da manhã. As companheiras zapatistas trabalhavam incansavelmente pra dar conta de alimentar tantas mulheres, a custos acessíveis. Aliás, muito mais mulheres do que elas esperavam. “Parece que um zero se perdeu no caminho”, disseram, pois aguardavam 500 e vieram mais de 5 mil…”Serão sempre bem-vindas, mas pedimos que nos avisem com antecedência quando vierem”, provocaram. E com razão.

A programação do primeiro dia oficial do Encontro, 8 de março, estava por conta das zapatistas – apesar de que muitos encontros já tinham acontecido desde as odisseias de vinda, e seguiam em cada esbarrão, em cada fila, em cada refeição; profundas conversas e trocas que surgiam de livres comentários despretenciosos, tão abundantes porque estávamos tão à vontade, que iam se enganchando num sem fim de experiências e interesses em comum.

Um especial Dia Internacional da Mulher, em memória das que lutaram pelos seus direitos, pelos direitos de todas. Dia de enfrentar o patriarcado, não de dar rosas (enquanto a mulher faz o almoço da família, ou trabalha ganhando menos que seu colega homem, e segue sendo assediada por todos os lados). Nesse dia em que enormes e incontáveis manifestações ocorriam por todo o mundo, bem como uma greve mundial de mulheres, a insurgenta Erika leu o comunicado de abertura em nome de todas as zapatistas, acompanhada de muitas delas em cima do palco – que sempre destacam que suas palavras são construídas de maneira coletiva, tecidas em comum.

Palavras de abertura

Iniciou mandando um grande abraço à família da companheira Eloisa Vega Castro, das Redes de Apoio ao CIG – Conselho Indígena de Governo, que morreu em um acidente de carro no dia 14 de fevereiro enquanto acompanhava o CIG. “Esperamos até esse dia para saudar a memória de Eloisa para que nosso abraço fosse maior e alcançasse chegar mais longe, até o outro lado do México”. Mais uma guerreira nas memórias da rebeldia.

Sol de rachar. Ouvi desde um espaço coberto em frente ao palco – um tanto longe, um tanto acima, bom pra fotografar. Jovens, idosas, crianças, sentadas ou em pé, no chão ou em cima dos bancos. Atentas. Emocionadas. Que, hora ou outra, soltavam risadas ou comentários espontâneos. Escuta coletiva. Ativa.

Éramos como a mata (que algumas chamam de bosque e que as zapatistas chamam de monte) quando o vento bate: cada planta do seu tamanho, com suas cores e folhas, algumas com flores e frutos, outras com raízes profundas; todas dançando ao mesmo ritmo com o vento que balança.

As palavras simples e tão completas, fortes e tão poéticas das zapatistas foram como um sopro de vento, desses que nos deixam atentas, nos acariciam e nos movem. Cada uma balançando à sua maneira, mas juntas. Como a mata, que apesar de abarcar tanta diversidade, forma um todo. Tal qual a gente. Mulheres. Mulheres que lutamos. Balançando ao vento zapatista.

Lutamos porque ninguém vai nos dar nossa liberdade. “Nem Deus, nem os homens, nem um partido político, nem um salvador, nem um líder, nem uma chefa. Temos que lutar pela vida”, conclamaram.

Compartilharam sua história de luta – os dias de despojo antes da insurgência, a coragem necessária para responder à guerra do sistema capitalista, a clandestinidade, às vezes até dentro da família. Mulheres que ousaram lutar, que viveram “o desprezo, a humilhação, os deboches, as violências, os golpes, as mortes por ser mulher, por ser indígena, por ser pobre e agora por ser zapatista”. E o mais triste é que nem sempre o algoz era, e é, homem.

Mulheres que resistiram, que construíram escolas, clínicas, trabalhos coletivos e governos autônomos. Que criaram e lutam por aplicar a Ley Revolucionaria de Mujeres. E que também sabem celebrar, porque viram que “a rebeldia, que a resistência, que a luta, é também uma festa, apesar de que às vezes não há música nem dança, só um monte de trabalho, de preparos, de resistência”. E, nesses dias de encontro, comprovaram que realmente a luta para elas é trabalho e festa – e que as duas coisas se misturam.

Bosque, monte ou mata, mulheres-planta sacudidas pelo sopro zapatista

Trabalharam muito. Cuidaram do som, da luz, da comida, da limpeza, da água. Antes, na fase de preparação, construíram grande parte da estrutura que utilizamos – banheiros, palcos, dormitórios. Apresentaram peças de teatro, músicas, palavras, poesias. Jogaram basquete, volei, futebol. Dançaram, sorriram, gritaram. Cuidaram da gente, da nossa saúde, do nosso bem estar. Até abriram uma mesa de críticas, e ficavam lá, esperando nossas sugestões.

Ensinaram o significado mais profundo das palavras organizaçãocoletividadeentrega.

Depois de tantas atividades ao longo do dia, uma linda surpresa à noite: um mar de chamas. As zapatistas espalhadas, ultra organizadas, movendo suas velinhas, ondulando-as num oceano de poesia e resistência. No discurso de encerramento, explicaram sua performance, ou mística, ou intervenção, ou como quer que se diga:

 

Irmãs e companheiras:

 

Este dia 8 de março, ao final da nossa participação, acendemos uma pequena luz cada uma de nós.

Acendemos uma vela para que dure, porque com fósforo logo se acaba e com isqueiro pode ser que ele estrague 

Essa pequena luz é para ti.

Leve-a, irmã e companheira.

Quando te sintas sozinha.

Quando tenhas medo.

Quando sintas que é muito dura a luta, ou seja, a vida,

acende-a de novo em teu coração, em teu pensamento, nas tuas tripas.

E não a guardes, companheira e irmã.

Leve-a às desaparecidas.

Leve-a às assassinadas.

Leve-a às presas.

Leve-a às violadas.

Leve-a às golpeadas.

Leve-a às assediadas.

Leve-a às violentadas de todas as formas.

Leve-a às migrantes.

Leve-a às exploradas.

Leve-a às mortas.

Leve-a e diga a todas e cada uma delas que não está sozinha, que vais lutar por ela.

Que vais lutar pela verdade e pela justiça que sua dor merece.

Que vais lutar para que a dor que carrega não volte a se repetir em qualquer outra mulher do mundo.

Leve-a e tranforme-a em raiva, em coragem, em decisão.

Leve-a e junte-a com outras luzes.

Leve-a e, talvez, logo chegue ao teu pensamento que não haverá nem verdade, nem justiça, nem liberdade no sistema capitalista patriarcal.

Então talvez nos voltemos a ver para botar fogo no sistema.

E talvez estarás junto a nós cuidando para que ninguém apague esse fogo até que não restem mais que cinzas.

E então, irmã e companheira, nesse dia que será noite, talvez possamos dizer contigo:

“Bem, pois agora sim vamos começar a construir o mundo que merecemos e necessitamos”.

E então sim, talvez, entenderemos que começa a verdadeira bronca e que agora, como se diz, estamos praticando, treinando pois, para já estarmos sabidas do mais importante que se necessita.

E isso que se necessita é que nunca mais nenhuma mulher, do mundo que seja, da cor que seja, do tamanho que seja, da idade que seja, da língua que seja, da cultura que seja, tenha medo.

Porque aqui sabemos bem que quando se diz “já basta!” é que apenas começa o caminho e que sempre falta o que falta.

 

Lágrimas, junto a gritos espontâneos, isolados ou em coro, soluços, abraços. Assim recebemos essas palavras. Assim as levamos, como uma chama, que nos aquece e nos transmuta, para que iluminemos à nossa volta.

Duvido que alguma alma (e suas carnes) tenha saído ilesa desse Encontro.

 

Artes, corpas, políticas e coisas estranhas

Os dois dias restantes do Encontro foram reservados às atividades das que vieram de fora. Qualquer uma podia propor uma ação previamente, no período de inscrição, e aparentemente todas as propostas foram acatadas. Apenas no dia 8 ficamos sabendo quais seriam (e quando e onde): enormes cartazes foram pendurados em pontos estratégicos do espaço. E sempre havia uma pequena multidão em frente a eles, lendo, anotando, comentando, tirando fotos com o celular.

Dava pra ver que algumas eram super aplicadas e montaram toda a sua programação pessoal. Já outras avaliaram que seria inútil ou desnecessário, e optaram por vagar aleatoriamente entre as atividades. Transitei entre as duas modalidades.

Painel coletivo

Eu mesma havia proposto uma atividade, e tinha pedido que fosse no início do evento. Minha solicitação foi atendida na medida do possível: a oficina de “Comunicação Compartilhada – memória comum e registro coletivo do Encontro” estava marcada para o segundo horário da manhã do dia 9, precedida apenas pelas atividades de yoga, danças, alongamentos e afins.

Não precisava me preocupar muito em preparar a oficina, pois seria apenas falar do conceito e do histórico da comunicação compartilhada, seus intuitos e desdobramentos, e relatar algumas experiências – isso tudo como introdução, pois o objetivo mesmo era propiciar um tempo-espaço para as comunicadoras se conhecerem, trocarem experiências, contarem o que pretendiam registrar do encontro e confabularmos como podemos seguir tecendo juntas.

Assim que fui mexer o meu corpo (ou minha corpa, inspirando-me nas hermanas que ao invés de cuerpo falam cuerpa – afinal a corpa é minha e eu chamo como eu quero). Cheguei na oficina de yoga e estava super cheia e num lugar super não apropriado, então fui em busca de outra atividade. Encontrei um alongamento ao lado do palco principal que acabou bem rápido, e vi que, em cima do palco, havia mulheres caminhando entre si. Já conheço essa dinâmica e fui conferir.

Começamos andando entre nós, para logo nos separarmos em grupos de três. Enquanto uma dançava aleatoriamente, como sentisse vontade de se mexer, outra observava tocando, com a mão, alguma parte do corpo, mas sem interferir. E a terceira observava como a observadora observava. Nos alternamos, de maneira que cada uma viveu os três papeis, e depois conversamos entre as três como foi a experiência e o que nos chamou a atenção. Depois os grupos compartilharam entre si: “segurança” e “cuidado” foram palavras que apareceram muito.

Voltamos a caminhar entre nós, olhando nos olhos de quem cruzávamos, olhares mais ou menos demorados; logo, tocando levemente quando sentíssemos uma conexão, uma vontade; e, finalmente, trocando mais detidamente, de acordo com a afinidade que sentíssemos. Abraços. Toques. Danças. Em duas. Em três. Em muitas. Afeto. Respeito. Segurança.

Foi lindo. Simples e lindo. Acabou num suave êxtase coletivo de afeto e carinho. Saí super energizada e fui pro lugar onde deveria facilitar a oficina – uma das mesas no dormitório 1. Sim, de noite dormitórios, de dia, espaço de atividades. E as mulheres que ali pernoitavam montavam e desmontavam suas camas diariamente. Ao chegar, achei estranho que a oficina anterior não acabava nunca. Fui perguntar pra moça responsável, que explicou que todas as atividades haviam sido postergadas 1h, a pedido das zapatistas, para que tivessem tempo de tomar café da manhã e pudessem participar de todas as oficinas.

Avisei às companheiras que já estavam ali esperando a oficina – entre elas Deolinda, que conheci nas andarilhanças de Vida Boa na Escola de Agroecologia do MOCASE-VC (Movimento Campesino de Santiago del Estero – Vía Campesina), que veio prestigiar a atividade e me dar um abraço. Mais um dos muitos bons encontros e reencontros do Encontro.

Quando finalmente chegou o momento da atividade, fiquei impressionada com a quantidade de pessoas: a oficina de comunicação compartilhada mais cheia que já facilitei. O que me deixou feliz mas também um pouco assustada, sem saber como iria fazer pra dar conta de falar com tanta gente, e ouvir tanta gente. Não foi possível: muitas companheiras que eu havia flagrado documentando e que tinha convidado para participarem me disseram depois que estiveram aí mas que não conseguiram ouvir nada, e por isso foram embora. Em várias outras atividades também foi assim.

Havia muitas zapatistas – elas se dividiram e marcaram presença em todas as atividades. Todas. E sempre tinha uma documentando em vídeo. Uma das cinegrafistas, ao ser perguntada sobre o que fariam com todas essas gravações, respondeu que o objetivo era levar para as comunidades, transmitir o que aconteceu no Encontro para aquelas que não puderam vir.

Apesar das limitações, deu pra realizar a oficina e foi proveitosa: companheiras de diversos projetos, organizações e redes, vindas de vários lugares do mundo mas especialmente da América Latina, compartilharam suas lutas e experiências de mídia livre [ver lista ao final do texto] – inclusive as zapatistas, depois de alguma insistência, sendo que seus processos midiáticos são referência para tantas lutas. E eis que, ao debater como poderíamos seguir tecendo juntas, para trocar nossas produções midiáticas acerca do encontro e também compartilhar nossas lutas, surgiu a proposta de criar a Red de Mujeres que Luchan – e trocamos contatos para seguir construindo esse espaço permanente de comunicadoras que lutamos.

Um dos exemplos de comunicação compartilhada que citei foi a cobertura colaborativa da última Jornada de Agroecologia, em que, dentro do grupo de comunicação, tínhamos um subcoletivo responsável pela confecção de uma zine diária – a maravilhousa Trapoêraba. Mostrei os exemplares pra galera e distribui cópias da última zine que fiz – e, evidentemente, fiquei para a oficina que veio logo depois da minha no mesmo local: fanzine coletiva.

As meninas do coletivo feminista Totomeh trouxeram a fanzine Mapa de Cuerpo: várias folhas dobradas ao meio, como um caderno, que elaboraram especialmente para o Encontro. Nela, havia algumas páginas em branco (três, mais precisamente), as quais fomos convidadas a preencher com alguma coisa que este Encontro despertou relacionada ao corpo. Ao final, trocamos as fanzines entre nós – e a que eu ganhei continha uma intervenção bem linda, que dizia que os glúteos não são pra ficarem olhando, mas pra sentar confortavelmente.

Registro audiovisual

Também distribuíram folhas em branco e convidaram a preencher com algo sobre o Encontro: a proposta era depois juntá-las e formar uma fanzine coletiva, a qual iriam digitalizar e publicar na internet. Estamos no aguardo.

Essa última fanzine que fiz se chama Mboi Katari, serpente nos idiomas guarani e aymara, respectivamente. Todo um processo intuitivo de mergulho relacionando mulher, ancestralidade, patriarcado, morte, renascimento e a simbologia e força da serpente. Sendo assim, quando vi na programação que havia uma atividade denominada “Trocamos de pele como serpente”, não tive dúvidas de que teria que estar aí – apesar de que havia outras atividades interessantíssimas no mesmo horário, como a de Ciberfeminismo.

Quem guiava a oficina era uma brasileira, Mariana, e uma ítalo-mexicana, Giuliana Irasema, ambas residentes da cidade de Oaxaca. Elas compartilharam seus traumas de violência, que de alguma maneira todas as mulheres sofremos, e como processos intuitivos com a serpente têm ajudado-as a encará-los, e se fortalecerem. Nos guiaram numa meditação e em práticas corporais empoderadoras.

Nos entre-espaços das atividades oficiais, havia todo um universo de manifestações informais – batucadas, pinturas corporais, exposições, stencil, cantorias, declamações. Valia a pena ficar vagando. Mas, depois do almoço tardio a la mexicana e uma breve siesta na grama, eu já tinha outra atividade agendada: automapeamento, com o coletivo Etinerâncias, do brasilzão – que eu já conhecia digitalmente, que me inspirou quando eu criei o projeto Vida Boa, e que temos uma grande amiga em comum que nos colocou em contato antes do Encuentro para que nos cruzássemos aí. E, via Etinerâncias, conheci também a Red Co.Madre.

Así que fui, cheguei já com o bonde andando, no momento em que as mulheres haviam se dividido em pequenos grupos e estavam contando uma para outra de alguma mulher que as inspirava e que o mundo deveria conhecer. Que situação, quem seria essa mulher?, pensei eu. Eu tava com uma camiseta do MST – e lembrei da dona Maria, do assentamento Contestado, mulher arretada de luta que mobiliza o setor de saúde, compartilha seus saberes e fazeres e atende a todo mundo com bioenergia, auriculoterapia, suas ervas, tinturas e outras coisas mais. Salve, dona Maria!

Mas nem tive tempo de compartilhar muito e já estávamos em outro momento da atividade – de formar círculos dentro de círculos, respirar, e sentir onde, no nosso corpo, essa mulher reverberava. Na orelha, é claro, orelha que ficou doída depois que dona Maria colocou as sementinhas.

E logo nos dividimos em grupos de novo – compartilhamos uma dor, uma alegria e uma estratégia de sobrevivência. Eu escrevi rapidinho, muitas colegas não sabiam o que colocar como resposta ao último tópico: “quem acabou primeiro ajuda as amigue”, me disse uma delas, e logo depois de falar, ela mesma chegou à conclusão de que a solidariedade era a estratégia – o que apareceu muito quando trocamos entre todas, e auto-cuidado também.

Colocamos os bilhetinhos com as dores, as alegrias e as estratégias num corpo de mulher desenhado no chão. Percebemos que as dores ficaram concentradas no estômago e no peito. Teve quem quis por sua alegria no sexo, outras a estratégia de dar e receber na mão.

Eu até planejei ir em outra atividade, que foi cancelada. Fiquei vagando. Outros encontros e desencontros. Logo fez-se noite – e como ando com espírito diurno, desfrutei mais dos dias. A única atividade noturna da qual realmente participei foi uma roda em volta do fogo na qual se falava de feminismo comunitário. Mulheres da Guatemala e uma companheira da Bolivia, que conheci rapidamente neste janeiro em La Paz (mais um reencontro), guiavam a conversa. Chá de capim limão com folha de coca, e muitas iam chegando e se ajuntando ao redor da fogueira, se esforçando para escutar, e compartilhando xícaras para que todas pudessem tomar chá.

As guatemaltecas também conduziam rituais que começavam cedo pela manhã, em volta do fogo, rememorando as assassinadas, em meio a ervas e cantorias. Cura ancestral. Não tinha hora para acabar, e no último dia de atividades acompanhei as canções finais, e fiquei junto àquelas que permaneceram zelando o fogo, em silêncio, fazendo seus rezos. Fiz o meu.

Enquanto isso, solicitaram pelo auto-falante que as mulheres liberassem espaço no campo de futebol: o jogo ia começar.

 

Até que vi Debora, uma amiga comunicadora argentina de La Tinta que havia conhecido em Bolivia logo antes de vir ao México (tramas de Abya Yala). Propus de pensarmos uma entrevista com as zapatistas juntas, nessa tentativa de tornar os processos de comunicação cada vez mais comuns. Abaixo às entrevistas exclusivas! Ela se enganchou em alguma outra coisa e, enquanto eu esperava, passou uma mulher mais experiente chamando uma senhora, que não ouviu e seguiu sua caminhada. “Essa está apressada”, comentei. Ao que a abuela sorriu e me explicou que seu intuito era convocá-la para uma atividade. “Me reuni com algumas mulheres, que às vezes dizem de terceira idade, outras chamam de abuelas, e pensamos em aproveitar esse momento para organizar uma conversa entre nós”, disse. Eram quatro e haviam combinado de cada uma mobilizar em uma parte do terreno para se reencontrarem às 10h. “Posso participar? Me interessa conhecer as sabedorias das mulheres, e assim posso registrar alguma coisa”, me ofereci. “Bem, você estava aí atenta, não é uma abuela, certo, mas bem, fui com a sua cara, vamos. Você pode me ajudar a convocar as mulheres?”.

Foi assim que, respondendo ao chamado da Irmã Edith, estive mapeando mulheres experientes e convidando-as para se reunirem. Às 10h se juntaram sob a sombra de uma das construções e Edith explicou que o objetivo era planejar o 1o Encontro de Abuelas.

Uma companheira leu o conto “Mujeres árbol“, segundo o qual todas as mulheres, antes de serem humanas, eram árvores. Maria Carmen falou em fazer com que se escute a voz das abuelas – e Edith rememorou que em muitas culturas ancestrais os antigos e as antigas são as mais respeitadas na hora de tomar decisões, e constituem os “conselhos de anciãos”. Já nessa sociedade capitalista moderna acontece o contrário: as pessoas mais velhas são extremamente desrespeitadas.

“Ao nos organizarmos enquanto abuelas, estaremos dando exemplo e realizando um chamado”, disse Edith, convocando a somarem-se à luta do movimento zapatista e do Conselho Indígena de Governo.

Irmã Edith e as demais abuelas e simpatizantes

Algumas ficaram responsáveis por pensar onde seria o Encontro das Abuelas, num lugar um pouco mais afastado e tranquilo, e definimos que nos encontraríamos no mesmo lugar às 14h para irmos juntas ao novo local.

Voltei no horário combinado e não vi ninguém, e fui atraída por uma sonzera que acontecia no palco principal – mas a banda não tocava em direção ao espaço que cabe à plateia, mas virada de costas, para dentro do palco, onde muitas mulheres acompanhavam também usufruindo da sombra. O grupo se chama Verdolaga e reúne mulheres de vários lugares de Abya Yala, misturando ritmos e entoando canções de luta e liberdade.

Aproveitei minha falta de programação para fazer algo que vinha planejando: entrevistar alguém da equipe de saúde e outra alguém que pudesse falar em nome da organização do Encontro. Comentando minhas vontades com a companheira Lilia, aderente da 6a Declaração da Selva Lacandona que também conheci em Bolivia e que me recebeu em Cidade do México, ela indicou que falasse com as companheiras zapatistas que ficavam numa mesa ao lado do palco, e que elas levariam meu pedido às responsáveis.

Foi assim que conheci Yuri, uma jovem zapatista que fez essa ponte pra mim. Ela falou com Aurora, a coordenadora de saúde, que veio ao meu encontro. Estávamos ao lado do palco, em meio ao vai e vem de tantas mulheres, e perguntei se podíamos nos retirar um pouco, por causa do barulho, sendo que eu tinha a intenção de gravar a conversa em áudio. “Vai ser demorado?”, me questionou. Respondi que não muito, que tinha algumas perguntas sobre como se organizavam. Ela pediu para eu esperar uns minutos, porque estava atendendo, e que logo voltaria para conversarmos.

Uns vintes minutos depois, ela reaparece e me leva para um espaço atrás do palco. E lá se somam a ela várias mulheres com os pasamontañas ou paliacates, as máscaras e lenços, e também com jalecos brancos. Aurora não só me concedeu seu valioso e disputado tempo, mas convocou toda a equipe para darem uma entrevista coletiva, a mim, uma mera desconhecida. Dessa solidariedade zapatista que deixa a gente comovida.

Meu interesse em entrevistá-las surgiu de eu ter acompanhado o atendimento de uma huesera (palavra que deriva de osso, hueso) a uma companheira que tinha torcido o pé. Me lembrei do setor de saúde do MST – Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra lá no Brasil, como utilizam sabedorias populares, ervas, bioenergia e outras terapias naturais nas suas práticas comunitárias de saúde e também nos atendimentos durante a Jornada de Agroecologia, grande encontro que acontece todos os anos no sul do Brasil, estado do Paraná. Aliás, o MST marcou presença no Encontro por meio da companheira Lurdes, que hora ou outra levantava a bandeira do movimento em meio ao bosque de mulheres, participou de debates em torno de Agroecologia e também da cerimônia final, puxando um “Fora Temer” internacionalista.

Achei interessante estabelecer esse paralelo aqui, entre as zapatistas, conhecer suas outras concepções sobre saúde e as práticas que se constroem no movimento. Mas essa será uma outra história a ser contada mais tarde, assim como a entrevista que fiz com mulheres do movimento zapatista. Yuri tinha que correr para participar de uma atividade e me pediu para fazer a outra entrevista mais tarde, assim ela teria tempo para falar com as responsáveis. Me perguntou que horas, eu disse que poderia ser às 20h, depois das atividades, e fiquei de encontrá-la ali, na mesa ao lado do palco.

O que não levamos em consideração é que o encerramento começaria às 19h, e que ainda estaria ocorrendo no horário que combinamos. Eu já estava meio desacreditada de que seria possível fazer essa entrevista, mas, por desencargo de consciência, fui em busca da Yuri após o encerramento. Difícil reconhecer quem é quem detrás dos pasamontañas e paliacates, mas perguntei para as meninas da mesa e elas me apontaram Yuri, que estava em cima do palco, resolvendo algumas coisas. Quando ela me viu, veio em minha direção e me agarrou pela mão, “vem, é agora, as companheiras estão ali”, e me conduziu rapidamente entre o labirinto de colunas de madeira que seguram as estruturas até a frente do palco, onde estavam algumas companheiras. Eu super desajeitada, pega de surpresa, me apresentei, expliquei o que estava fazendo ali e pedi um tempo para localizar as perguntas que havia preparado no meu caderno e ajeitar o gravador.

Essa entrevista renderá uma história a parte, mas adianto que perguntei o porquê do pasamontañas (máscara preta), e entre as muitas explicações, a última foi: “na verdade, é porque somos muito guapas“, e caíram na risada.

 

 

A festa não acabou: virou semente

As palavras de encerramento foram lidas na presença de mulheres de muitos mundos, que acompanhavam as zapatistas em cima do palco – e, depois do emocionante discurso, o qual nos fez chorar, sorrir e gritar, sete destas companheiras deram presentes de seus povos, seus tempos e suas lutas às zapatistas.

Em seu comunicado, as anfitriãs nos convocaram a nos reencontrarmos no próximo ano – e não somente em território zapatista (se é que será possível), mas também nos mundos de cada uma, de acordo a seus tempos e suas maneiras.

E nos confessaram algo que pediram pra não sair espalhando muito por aí, principalmente entre homens:

 

É a primeira vez que como mulheres que somos, sozinhas, organizamos um encontro assim.

E o organizamos desde abaixo, ou seja que primeiro fizemos reuniões e discussões em nossos coletivos nos povoados e nas comunidades. Logo nas regiões, logo nas zonas e logo já com as cinco zonas juntas. […]

E não há livro ou manual para fazer isso, pois.

E nem pensar em perguntar aos companheiros porque eles também não sabem como fazer, porque, como já dissemos, nunca se fez algo assim antes. […]

Então não basta um coletivo para organizar tudo isso. Por isso viemos aqui mais de duas mil mulheres zapatistas dos cinco Caracóis. 

 

Disseram que, se soubessem que viríamos tantas, teriam vindo mais mulheres das comunidades, para poderem abraçar a todas e cada uma e nos dizer pessoalmente o que nos diziam, nesse momento, em coletivo. E haveria seis mulheres zapatistas para cada uma de nós: uma pichita (que assim chamam as que acabam de nascer), uma menina, uma jovem, uma adulta, uma anciã e uma finada.

 

Todas mulheres, todas indígenas, todas pobres, todas zapatistas, que te abracem forte, porque é o único presente que podemos te dar em retorno.

Mas, como queiras, faz de conta, irmã e companheira, que isso que estamos dizendo aqui te está dizendo uma mulher zapatista enquanto te dá um abraço e te diz ao ouvido, na tua língua, à tua maneira, a teu tempo:

“Não te rendas, não te vendas, não claudiques”.

Que assim, com essas palavras, é que te dizemos

“Gracias hermana, gracias compañera”.

 

Nós, emocionadas, é que agradecemos, em coro, e muitas vezes: graaaaciiiaaaas!

O Encontro acabou oficialmente, o baile começou, e os homens foram liberados para entrar. O som seguiu alto madrugada adentro – noite movimentada, com muitas companheiras já partindo a todos os horários. Na manhã seguinte, as compas zapatistas se foram em pé nas caçambas dos caminhões, na maneira em que nós brasileiras conhecemos como “pau de arara”, modo de transporte tão comum no sertões dos brasis profundos. E as de fora, as que ainda restávamos, acompanhamos sua saída com acenos e mais coros de “graaaaaciiiaaaas” – bem como na noite anterior, quando pediram desculpas por suas falhas e nos perguntaram se o Encontro “salió un poco bien”. Na verdade a escala bem ou mal não contempla o caso, porque simplesmente nunca pensamos que se poderia viver algo assim. Algo que nunca havia sido feito, nem vivido antes. Graaaciiiaaaas!

Entre algumas que voltamos da grande festa que foi o Encontro e ficamos juntas em San Cristobal, saímos para acampar apenas entre mulheres e compartilhamos palavras, sentimentos e ritos profundos ao redor do fogo e ao som das águas; participamos de roda de conversa de avaliação do Encontro no espaço coletivx Milpa Vive; fomos aos seminários do Cideci-Unitierra, que são abertos à comunidade e acontecem todas as quintas feiras há mais de dez anos para analisar coletivamente os acontecimentos locais e as lutas do mundo. Nos reencontramos para manifestar nossa rebeldia frente ao assassinato de Marielle Franco, vereadora do PSOL – Partido Socialismo e Liberdade no Rio de Janeiro, executada pelo Estado brasileiro por ser negra, pobre, mulher e rebelde. Marielle se multiplica, e inflama os mundos que lutam por justiça.

A luta que é também uma festa

Em meio à guerra, que não escolhemos, mas que é a realidade nesse planeta em que demos por nascer, seguimos nutrindo essa rede de carinho e cuidado entre nós, digerindo em matilha o terremoto que foi o Encontro dentro de cada uma, lutando, juntas, para poder viver – o único consenso a que chegamos, como sugeriram as zapatistas já nas suas palavras de abertura:

 

Talvez, quando o encontro tenha acabado, quando regressem aos seus mundos, aos seus tempos, às suas maneiras, alguém lhes pergunte se chegaram a algum acordo. Porque eram muitos pensamentos diferentes que chegaram nessas terras zapatistas. 

Talvez então vocês respondam que não.

Ou talvez respondam que sim, que sim fizemos um acordo.

E, talvez, quando lhes perguntem qual foi o acordo, vocês digam “nosso acordo é viver, e como para nós viver é lutar, pois combinamos lutar cada quem segundo seu jeito, seu lugar e seu tempo”.

 

Viver, lutar e cuidar para que essa chama não se apague.

Que nossas experiências, nossos encontros, nossas palavras, nossas vidas, sejam sopro que alimenta o fogaréu da rebeldia.

Que vivan las mujeres que luchan! Que vivan las zapatistas!

 

Mais fotos do Encontro (com todas as cores que a mata de mulheres de vários mundos dentro desse mundo, as zapatistas, sua luta e seu território têm para brindar).

 

Outras publicações da mídia ativista e feminista obre o Encontro:

– Ven, mírale, organízate, resiste – La Tinta

– Una constelación de luchas en tierras zapatistas – Subversiones

– Más de 6 mil mujeres de 38 países participaron en el Primer Encuentro de Mujeres – Somos el medio

– En tierras zapatistas: acordamos vivir, acordamos luchar – Luchadoras

– I Encuentro de Mujeres que luchan: Retazos de incomodidad y trazos de gratitud – Pueblos en camino

– Encuentro Internacional de Mujeres que luchan Caracol Morelia, Chiapas 2018 – Somos una América

– doc Sin mujeres no hay revolución – Somos el medio

– Reflexiones sobre el Encuentro de Mujeres zapatistas de la mapuche Moira Millán – Espoir Chiapas

– Me rehuso a ser la mismo persona que fui hasta antes de entrar al Caracol – Mujeres y la Sexta

– La lucha de las mujeres palestinas, presente en Chiapas – Desinformémonos

– Doc Cuerpos que importan

 

Palavras zapatistas de abertura do Encontro

Palavras zapatistas de encerramento do Encontro

2 comentários sobre “Mulheres em luta e, por alguns dias, sem medo: nosso acordo é viver

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