Meditação, afinal

A técnica budista Vipassana ensina não só como aquietar a mente, mas purificá-la

Por Michele Torinelli

 

vipassana

 

Vipassana é frequentemente descrita como “um retiro no qual se passa dez dias sem falar”. Mas é muito mais que isso. É uma técnica indiana milenar que visa purificar a mente e libertar os seres humanos do sofrimento. Para isso o silêncio não é o único requisito: a rotina diária é regrada em vários aspectos.

As atividades consistem basicamente em várias sessões de meditação, breves momentos de descanso, refeições, horário de perguntas aos mestres e palestra. O dia começa às quatro da manhã e termina às 21h30 – e não, você não tem a opção de ficar dormindo.

Além da proibição da palavra, também não é permitido estabelecer contato físico. A proposta é a auto-observação, o mergulho interno. Recomenda-se caminhar olhando para o chão, para manter o foco interior e para que não se mate nenhum animal – um dos preceitos budistas. A área de permanência é restrita ao trajeto entre o local de refeições, o alojamento e a sala de meditação – algumas centenas de metros quadrados. Homens e mulheres ficam separados, vendo-se somente na sala de meditação – ainda assim, mulheres de um lado e homens do outro.

Para participar do curso Vipassana é preciso estar de acordo com todas essas regras e outras mais que constituem o código de disciplina. Você não utiliza celular, não pode ler nem escrever. Praticamente não se comunica com os outros. Fica completamente alheio à sua rotina diária e ao seu círculo social, num lugar preparado especialmente para isso. Por um lado, uma oportunidade de isolamento raríssima nesse mundo hiperconectado; por outro, uma experiência de privação e auto-enfrentamento que exige disciplina, desprendimento e esforço.

 

O mestre virtual

O curso conta com dois mestres, um para os homens e outro para as mulheres (ou, como ocorreu na experiência da qual participei, duas mestras). Elas ocupam posição de destaque na sala de meditação, orientam os participantes que têm questionamentos e dão breves instruções práticas gerais, mas quem ministra o curso é um palestrante virtual: o senhor Goenka.

Assim, recebemos os ensinamentos por meio de gravações traduzidas de suas palestras, contando com alguns trechos originais em seu inglês fortemente carregado de sotaque indiano. Situação por vezes hilária, com algumas frases virando piada interna dos frequentadores de cursos Vipassana. Staaaaart agaaaain. Mas a piada só é compartilhada após o encerramento das atividades oficiais: ao longo do curso, sobriedade e concentração. Segura o riso!

 

Monja por alguns dias

É possível fazer o curso Vipassana em seis lugares no Brasil; eu fui em Miguel Pereira, município na região serrana do Rio de Janeiro.  O lugar é lindo, e muito simples, rodeado por mato e montanhas. Fazia frio – junho, quase solstício de inverno.

No dia em que cheguei tinha chovido – eu e outros participantes, que rachamos um táxi desde a rodoviária, tivemos que descer do carro na subida enlameada da estradinha de terra. Mas, por sorte, fez sol durante o curso inteiro, o que facilitou as idas e vindas entre alojamento, sala de meditação e refeitório – não ia ser nada legal passar horas meditando com a barra da calça molhada, tirando e colocando bota e sem poder tomar aquele sol contemplando a serra no intervalo do almoço, o grande momento de descanso da regrada rotina diária.

E “banho de sol” não é o único termo do universo de curso budista que remete ao vocabulário carcerário: os estudantes antigos podem ir meditar nas celas, um cubículo privado específico para meditação, no qual é quase impossível ter alguma distração, pelo menos externa.

Sim, estamos presos, não podemos ultrapassar uma pequena área restrita, mas por livre e espontânea vontade. Paradoxalmente, uma prisão para proporcionar a libertação. Para que não possamos fugir de nós mesmos.

O tempo bom também possibilitou acompanhar o ciclo da lua: chegamos na fase nova e, quando saímos, estava quase cheia. Crescendo, assim como a gente.

 

A disciplina da emancipação

No primeiro dia as instruções são dadas e pede-se que se deixe celulares, livros, comidas, carteira, tabaco e quaisquer objetos de valor ou que firam o código de disciplina com a organização. Durante as primeiras horas a palavra fica liberada e os colegas de quarto podem se apresentar, sabendo que logo terão que conviver intimamente mas sem poder trocar nem mesmo as saudações mais convencionais e automáticas, tão difíceis de conter, como “oi” e “boa noite”.

Logo  o silêncio é estabelecido e começa a rotina monástica.

Já na primeira noite a palestra do senhor Goenka explica que não se trata de doutrina ou religião, mas de uma técnica universal que visa libertar os seres humanos do sofrimento, que pode ser praticada por todas as pessoas independentemente de suas crenças. Se fizer bem, ótimo, deve ser praticada; se não, desconsiderada. Estimula-se que se acredite somente na experiência pessoal, no que pode ser comprovado por cada um empiricamente – ao contrário dos dogmas que as instituições religiosas costumam impor.

Também é ensinada a meditação Anapana, a ser praticada nos três primeiros dias e meio como um treino para Vipassana. Consiste em, sentado quieto, de olhos fechados e relaxado, observar a região das narinas e a parte abaixo delas, logo acima do lábio superior. E é apenas isso que se faz durante três dias e meio: perceber todas as sensações possíveis nessa pequena região do corpo. Observar a respiração, natural, o ar que entra, o ar que sai. E assim aprende-se a sentir.

Goenka explica que a mente humana é dividida em quatro partes: a primeira identifica, a outra classifica, a terceira sente e a quarta reage. A técnica ensina a se conter na terceira fase: sentir as coisas, de forma objetiva e equânime. Trata-se de vivenciar as coisas tal como as experienciamos de fato, sem reagir de acordo com os condicionamentos criados pela nossa mente. Isso tanto para os fenômenos físicos quanto mentais: sempre que a negatividade surgir, recomenda-se observá-la, da forma mais objetiva possível. Não manifestá-la, mas também não reprimi-la. Simplesmente observá-la, tal como se apresenta. Desse modo as impurezas são trazidas à tona e mandadas embora. Sublimadas.

E assim acontece durante os dez dias de curso. Impurezas vêm à tona. Conflitos internos. Emoções reprimidas. A mente tagarela, incansável. O ego se debatendo. E você ali, sentado, o mais imóvel possível. Se perdendo nos redemoinhos e se reencontrando, disciplinando a mente a apenas observar tudo. Transmutando alguns condicionamentos, serenando. Reconhecendo outros, identificando aspectos a serem trabalhados que precisarão de mais tempo – demônios a abraçar.

No quarto dia a técnica Vipassana, que ensina a arte de viver, é transmitida. E passamos a observar não somente a região das narinas, mas o corpo todo. Inicialmente, parte por parte. Depois, várias partes, simultaneamente, até que o corpo vibre em uníssono num fluxo livre de energia.

Deve-se observar desde as sensações mais grosseiras até as mais sutis. Desde as dores, que castigam o corpo que luta para ficar imóvel, até as vibrações energéticas. E quanto mais se observa, mais sutilidades se sentem. Mas não se apegue às sensações sutis e prazeirosas, recomenda Goenka. Não reaja a elas. Apenas as observe. Todas elas passam. Tudo passa. Tudo é passageiro e só existe, de fato, o presente. Anitya. Não se apegue a fantasias em relação ao futuro, ou apegos do passado – ao que você gostaria que fosse. Apenas aceite o que se apresenta. E, assim, liberte-se das ilusões.

Também no quarto dia, um desafio é lançado: permanecer uma hora meditando sem mudar de posição, três vezes ao dia. Uma hora de manhã, outra pela tarde e outra pela noite. E aí o corpo sofre o choque. Mas aí que, por meio da prática e da vontade, a mente se disciplina. E, em dez dias, aprende-se a meditar.

Goenka defende que, ao contrário das outras técnicas de meditação, que aquietam a mente, Vipassana purifica a mente, por meio de uma cirurgia profunda que realizamos através da auto-observação (neste vídeo, o próprio Goenka explica a técnica). E que só terá efetividade se não for apenas um ritual de férias, restrito aos dez dias de curso: a técnica precisa ser aplicada no cotidiano, uma hora pela manhã e outra hora pela noite.

Tudo é esforço, e depende de cada um. Não há milagre. Há um duro trabalho a ser feito, e que ninguém pode fazer pelo outro, somente por si mesmo.

Só você pode se salvar.

 

 

Como participar

Os cursos são gratuitos, sendo mantidos por meio de doações espontâneas dos alunos antigos. As inscrições podem ser feitas pelo site. E costumam ser concorridas – é bom ficar atento para inscrever-se no dia em que se abrem.

 

 

 

4 comentários sobre “Meditação, afinal

  1. Nossa, Michele!
    Foi perfeito!
    Você colocou tudo aí, em poucas palavras.
    Só uma coisa, eu não entendi o “again” de primeira, eu entendi “game” rsrseses

  2. Pingback: Seres das estrelas ou demasiado humanos | Vida boa

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