Retomada Guarani, Agroecologia e Bem Viver

Aldeia Mbya recebe Encontro dos Grupos de Agroecologia da região Sul

 

Jaje’oi taperupi mborai reve javy’a haguã

Vamos juntos pelo caminho cantando a nossa música pra gente se alegrar

 

Essa foi a música mais cantada no IV Encontro Regional dos Grupos de Agroecologia da região Sul, que aconteceu de 18 a 21 de abril na Tekoa Ka’aguy Porã (Mata Sagrada), no município gaúcho de Maquiné. As crianças da Escola Autônoma Teko Jeapo fizeram a canção, o grupo parceiro da comunidade traduziu e esse se tornou o hino da Nação Jurumbya, que surge da relação de companheirismo entre indígenas Mbya Guarani e os juruá, denominação em guarani para os “brancos”, os urbanos, os não-indígenas.

A Escola é fruto dessa relação, e foi construída ao longo de muitos mutirões. Aliás, André Benites questiona o termo “escola”. Prefere “espaço de encontros”. Ele era cacique na época da retomada desta terra, que pertencia ao estado. Em pouco mais de dois anos construíram várias casas e espaços comunitários, entre eles a escola. Apesar de estarem em relativa paz, a terra ainda não foi demarcada.

Segue a Retomada Yvyrupá, palavra que representa esse mundo que habitamos além das falsas fronteiras. São muitos os parentes que ainda vivem na beira da estrada, lutando por suas terras, para poder viver ao seu modo. Movimento de retomada que parte de uma outra concepção de terra – da qual não podemos ser donos, mas guardiões. Em que todes convivemos, humanos e não humanos, visíveis e invisíveis. Terra que deve ser honrada, acariciada, reverenciada. Por tudo que nós dá. Por ser a grande mãe.

Coral Arai Ovy e conversa sobre a Retomada Yvyrupá

O ERGA Sul reuniu cerca de 400 pessoas, dos três estados do sul do que passou-se a considerar Brasil, de outros estados e do que se denomina Uruguay. Grupos, comunidades, estudantes, gente que escolheu trilhar outros caminhos que não o do desenvolvimentismo desenfreado, que tem resgatado e recriado formas harmônicas de se estar nesse mundo, traçando laços para que essa teia seja cada vez mais comum.

 

Retomada Yvyrupá

Logo depois de conduzir o coral Arai Ovy, Romário Werá Xunun, conhecido como “professor”, disse que essa retomada foi feita pensando no futuro das crianças – porque se ficarem esperando do governo nunca vão ganhar terra.

Romário abraça André, emocionado, e Tiago se soma

E continuou:

Agora querem tirar todos os nossos direitos. A gente tá sofrendo não é de agora, tivemos muitos parentes mortos desde que o Brasil foi invadido pelos europeus. Isso me emociona muito, é triste, mas tomei coragem pra falar isso hoje, na esperança de tocar o coração de alguns. A gente sabe que vocês não tão aqui de passeio, mas pra conhecer nossa luta, nossa cultura.

O dinheiro não tem poder, quem tem poder é Nhanderu. Pra nós a riqueza não é o dinheiro, pra nós riqueza é ter natureza.

Nós sabemos que essa luta é muito difícil, não ganhamos ainda essa terra aqui, ainda é do governo.

Eu sou um tipo xondaro (guerreiro), as pessoas me chamam de professor, mas eu não me considero professor, tenho muito o que aprender com os sábios, e todo mundo tem a sua experiência.

Não consigo falar muito porque esse passado é muito dolorido pra nós. A gente não pode se deixar representar, porque é a gente que vive aqui e a gente que sabe o que a gente vive.

 

Tiago Karai, filho do atual cacique José Carlos, seguiu a prosa, e disse que pra eles é difícil falar nesse idioma – mesmo sendo no Brasil, a língua já é estrangeira. Ele conta que quase virou jurumbya, quase foi pra escola dos brancos estudar, mas hoje ele entende que isso não serve de nada. E, ao escolher se voltar para a sua comunidade, a sua cultura, a sua luta, e deixar as exigências dos brancos de lado, ele está fazendo sua própria retomada, e foi assim que resolveu ficar na aldeia.

E disse:

Somos irmãos da natureza, irmão dos animais, das águas, dos ventos, sabemos que somos todos irmãos.

Os juruá estão presos na cidade, como passarinhos, e não sabem voar.

A maioria dos professores fala que esse Brasil foi descoberto, mas a gente acredita que o Brasil foi invadido. E quando fazemos nossa retomada dizem que a gente tá invadindo, mas esse território é nosso.

A gente tem um livro vivo, a gente tem o nosso segredo, que a gente não pode falar.

Vocês levem para casa o amor que a gente deixou no coração de vocês, e a gente fica com o amor que vocês deixam aqui com a gente.

Seu pai, o cacique José Carlos, disse que assim como tem gente da cidade que quer ir para a roça, viver na saúde, mostrar plantio pras crianças, eles também querem isso. Já Julia Gimenes, da aldeia Som dos Pássaros, a poucos quilômetros dali, lembra que hoje em dia o branco não deixou nem um tantinho de terra pros índios.

Julia atravessando a multidão para levantar sua palavra

Nós é guardião da mata, da natureza, e a maioria dos brancos não entende isso. E ficamos tristes que muitos de nós precisem viver na beira da estrada, tantas crianças na beira da estrada.

Por isso a gente tem coragem pra fazer a retomada – não a coragem das armas, mas a coragem do nosso coração.

Nós fazemos reza pra todo mundo, reza pra vocês apoiar nós. Nós pedimos pelo coração dos juruá. É por isso que mesmo nós sendo pouquinhos Guarani, nós temos força.

Assim falou Júlia.

Sua sobrinha, Moara Poty, ou Maria Ortega, citou a importância do feminismo dentro da aldeia e lembrou que as mulheres estão sempre na luta junto dos xondaro. “Mas não que a mulher não seja escutada, a mulher comanda a aldeia desde manhã cedo. Mas a gente não quer que o que acontece lá fora aconteça na aldeia, como a gente ouve de ex-marido, namorado, que mata mulher. Isso não acontece muito na aldeia, a gente tem mais liberdade, se não dá certo a gente separa, não fica ex-marido perseguindo mulher”, conta Moara.

Ao levar um grupo para conhecer a aldeia (o acordo com a galera que chegou para o Encontro era ficar na área da escola e de acampamento e não entrar no caminho que leva às casas, a não ser que nos convidassem), Tiago Karai já tinha comentado que em geral, na cultura Mbya Guarani, as pessoas que se separam continuam amigas, se ajudam, não fica aquela raiva.

 

André Benites, um dos fundadores da retomada na aldeia Ka’aguy Porã, falou um pouco da luta de seu povo. Explicou que luta pro juruá é confrontar, brigar. “Luta pra nós é manter o nosso amor pra organizar o que nós temos. Guarani é pacífico, não é de luta corporal, mas de luta de coração”, diz. “Juruá fala de preservar a natureza, cercar pra ninguém tocar. Já o povo Guarani não. O povo Guarani convive com a natureza, é parte dela”, explica.

 

Da flor da permacultura à flor do Bem Viver: organizando-se rizomaticamente

Essa foi a atividade proposta pelo Tatu Miri, que co-organizou o Encontro junto a muitas gentes e grupos. Ao lado de um pano tecido com a flor da permacultura, emprestado pelo Instituto Arca Verde, ele deu uma pequena introdução ao termo. Contou que a permacultura não é somente um conjunto de técnicas, mas um movimento e uma visão de mundo.

Essa palavra foi cunhada por Bill Mollison, que já morreu, e David Holmgreen, que publicaram um livro/tijolo explicando sua proposta. A permacultura remete à capacidade da humanidade conviver em seu meio de forma a preservar os seus ciclos, ou seja, garantindo sua sobrevivência sem gerar impacto negativo, muito pelo contrário: a ideia é favorecer os ciclos naturais garantindo uma vida boa para todos os seres.

Mas, segundo Tatu, esse livro é bastante técnico – e agora, décadas depois, parece que David Holmgreen se deu conta disso e escreveu outro tijolo, lançado no ano passado, tratando de diversos aspectos que não são técnicos, numa perspectiva mais social. Uma sacada que vai no sentido da descolonização do pensamento num mundo calcado no tecnicismo, como se todos os problemas e soluções fossem meras questões técnicas.

Bill Mollison era considerado o cara mais técnico da dupla, enquanto Holmgreen trazia essa pegada política e social – tanto que foi ele que criou a flor da permacultura, que é um esforço de, por meio de uma imagem, sintetizar o que levaria muitas páginas para explicar. É um resumo dos vários aspectos entrelaçados na ética e no design permacultural.

Tatu falou um pouco do Bem Viver, que tem se disseminado a partir da cosmovisão andina mas que encontra concepções análogas em vários povos – como o Tekó Porã Guarani. Ao contrário da flor da permacultura, que acaba se desdobrando em questões técnicas, o Bem Viver parte de uma cosmovisão. Não é de esquerda nem de direita, apesar de dialogar com alguns aspectos da disputa de esquerda.

Construindo nossas flores do Bem Viver

Ele propôs uma dinâmica de construção coletiva da nossa própria flor (ou árvore ou rama ou o que fosse) inspirada na flor da permacultura, mas considerando as reflexões trazidas pelo Bem Viver. A ideia do Tatu é fazer isso em vários encontros e sistematizar as contribuições. E assim fomos agregando nossas flores e pétalas e chegamos à conclusão de que alguns temas são transversais.

Algumas das flores: agroecologia, saúde, comunicação, gênero e diversidade, arte, espiritualidade, autogestão. E a clássica discussão: se, além dos consensuais descolonização, cosmovisão e diversidade, cabem como eixos fundamentais anticapitalismo e antipatriarcado. Faz sentido negar algo em nossa luta afirmativa por uma vida boa? Após alguma polêmica, entendemos que sim, que é necessário negar aquilo que sistematicamente, violentamente, globalmente e historicamente abafa a diversidade. Ficam os “anti” para que possamos afirmar tudo o que afirmamos – até porque, avaliando bem, a própria descolonização é anticolonial. Afinal, se não houvesse nenhum “anti”, seria necessário lutar?

Gabriela, do sítio experimental Las Monas, apresentou uma questão a se pensar, que ela tem sentido como fundamental na sua vivência: qual o papel do corpo nessa proposta de Permacultura e Bem Viver?

Tatu indicou o grupo de estudos e práticas do Bem Viver como uma possibilidade pra seguirmos tecendo.

 

Encontros, desencontros e reencontros

Foram muitas as atividades, mutirões, oficinas, trocas, rodas de conversa, temazcais – e todas as noites a tenda da cura abrigava as espiritualidades da floresta em volta do tata porã, o fogo sagrado. A logística do evento ficou por conta da autogestão, do envolvimento de todes e cada uma, que circularam pelos grupos de trabalho de alimentação, infraestrutura, harmonização e programação/comunicação.

Nos organizamos em guerrilha midiática para potencializar em comum a cobertura do evento. Vale questionar os sentidos e modos da comunicação, das mídias, dos registros. Migrando da competição ao compartilhamento. Construção de memória coletiva.

Autogestão na cozinha

E, com pouco recurso financeiro e muito envolvimento humano, pudemos realizar um encontro intenso e fortalecedor. Cabe destacar que a taxa de inscrição era uma pechincha.

Os choques entre a cultura juruá e Mbya Guarani foram constantes, como costuma ser. Um esforço de diálogo e descolonização frente ao histórico massacre dos povos indígenas. Impossível ignorar os confrontos que nos atravessam, que constituem a nossa história, que se refletem no modo de ver o mundo, de falar, de pensar. De um lado, cosmovisão; do outro, falta de consciência do que isso significa, desterritorialidade. Mundos que se encontram e desencontram – e talvez, ao tocar nas feridas historicamente e propositalmente escondidas, ao encará-las e revelar os desencontros e diferenças, se gerem reencontros.

Há de se agradecer a paciência dos Mbya. O esforço em dialogar com a gente, em falar nosso idioma, em explicar em termos que compreendemos o seu modo de vida, sua maneira de entender o mundo. Sua cosmovisão. E de relevar nosso jeito espalhafatoso, barulhento, nossa racionalidade instrumental. Assim vamos aprendendo, nos desfazendo das cegueiras e distrações, enraizando. Retomando nossas raízes, como propunha a chamada dessa edição do Encontro.

Mulheres e raízes

Desde o começo avisaram: não é turismo etnográfico. Evite tirar fotos desnecessárias, evite coisificar as pessoas. Se esforce em ouvir. Silêncio, principalmente de noite. Sem extravasar euforias que atrapalhem o sossego dos que ali vivem. Esforços descolonizantes.

Muita gente trabalhou muitos meses para que esse evento pudesse acontecer. E, com todas as críticas válidas, tendo em vista o desenrolar dos futuros Encontros, cabe agradecer todo o empenho para que a mágica pudesse acontecer. E aconteceu. Transborda nos corações.

Seguimos juntas, juntos, alegres, pelos caminhos, reenergizados, cheios de esperanças, cantando nossas músicas, músicas de outros mundos que existem, tomados pela possibilidade de que esses mundos podem se encontrar, se respeitar, se fortalecer e seguir existindo em suas diferenças – e assim ir tecendo nós, entre nós, numa grande e diversa rede de Bem Viver.

 

Por Michele Torinelli a partir de vivências, escutas e reflexões comuns.

Esse material faz parte da guerrilha midiática do IV Erga Sul. Em meio à autogestão do Encontro, nos dedicamos a registrar e construir juntes a memória comum, desde vários olhares, e contar nossas histórias a partir da colaboração e em dinâmica de rede. Entendemos a comunicação como parte da construção coletiva de formas boas de coexistir em Yvyrupá.

Esse vídeo também fez parte desta Guerrilha Midiática.

Veja mais fotos do Encontro aqui e aqui.

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