Na cozinha do Vipassana

10 dias de trabalho voluntário para que outros possam praticar a técnica de meditação que você já aprendeu

Por Michele Torinelli

Veja também: Meditação, afinal, sobre o curso Vipassana

Capa do pseudo álbum da pseudo banda de punk meditativo da equipe de cozinha. Dhama Sudhaka!

Capa do pseudo álbum da pseudo banda de punk meditativo da equipe de cozinha. Grave esse nome: Dhama Sudhaka!

Os cursos de Vipassana, que ocorrem em várias partes do mundo, se tornam cada vez mais conhecidos por serem aqueles em que se passa 10 dias em silêncio aprendendo uma técnica oriental milenar para purificar a mente – e de graça. Os “alunos antigos”, como são chamados aqueles que completaram pelo menos um curso, são convidados a fazer doações financeiras para que a coisa se sustente. Mas existe outra maneira de contribuir: servindo.

Todo trabalho realizado em torno do Vipassana é voluntário – seja dos mestres, que conduzem os cursos, seja daqueles que trabalham para garantir a estrutura material. Entre esses estão os que vão trabalhar na cozinha, para alimentar os alunos e os outros servidores.

Fiz o meu primeiro curso em Miguel Pereira, na serra do Rio de Janeiro, em junho de 2016, e fiquei com esse propósito de servir quando surgisse uma boa oportunidade. E assim que, nesse trajeto de Vida Boa, fui retribuir o que recebi de outros. Me inscrevi para servir no Dhama Sukhada, o centro de Vipassana em Brandsen, província de Buenos Aires, a cerca de duas horas da capital.

Serviço

Cheguei no centro de meditação – uma chácara com construções simples e funcionais – e fui recebida por uma mulher de cabeça raspada. Ela, em toda sua tranquilidade, indicou que eu entregasse meu celular, meus “valores” – o que entendi por dinheiro e documentos -, e “intoxicantes” – tabaco, remédios e demais substâncias proibidas pelo código de disciplina do Vipassana. A ideia é que você pode fazer o que quiser da sua vida, mas nesses dez dias deve seguir estritamente as regras do centro – ou é simplesmente convidado a se retirar.

Após colocar minhas coisas num saco de pano numerado e entregá-lo (e, evidentemente, ser informada que poderia retirá-lo ao final do curso), fui levada até o quarto das servidoras – outra regra é a segregação por gênero: homens de um lado, mulheres de outro.
“A cozinha é ali, pode começar o serviço”, indicou minha hostess e nova colega de quarto, sendo que ela também estava ali servindo, com a tarefa de receber as pessoas. Assim conheci meu habitat nos próximos 11 dias (os 10 dias de curso mais o dia final, de partida) e meus novos colegas de trabalho.

Muitos portenhos, outros argentinos de outras partes (um cordobês e um mendozino), duas alemãs e essa brasileira que vos escreve. Nove, no total, sendo que uma das alemãs ficaria apenas nos primeiros dias. Seríamos um time fixo de oito, quatro homens e quatro mulheres, numa faixa etária que variava dos 20 e poucos aos cinquenta e tantos – mas a maioria girava em torno dos 30.

Deveríamos cozinhar para nós, mais os outros três servidores, a mestra, os dois aprendizes de mestre e os cerca de setenta que estavam ali para “sentar” – como se fala dos que vêm exclusivamente para praticar a técnica de meditação, por 11 horas diárias, intercaladas por café da manhã e almoço fartos, um austero lanche de fim de tarde e momentos de descanso.

A comida, além de fonte de energia, é uma das poucas distrações sensoriais que os meditadores têm nesses dias, por isso há um cuidado para que seja farta, saudável e gostosa.

Rotina de cozinha

A equipe de cozinha deve estar a postos às 5h, servir o café às 6h30 e limpar tudo para estar na meditação coletiva das 8h às 9h. Depois, volta ao batente para preparar o almoço, que deve ser servido às 11h. Após o almoço, é hora de limpar tuuudo novamente, fazer uma breve reunião às 12h45 para definir a divisão de tarefas (e até mesmo essa breve reunião inicia com uma breve meditação) para estar livre para descansar das 13h às 14h15 – horário em que o toque do gongo chama pra meditação coletiva das 14h30 às 15h30. Na sequência, voltávamos pra cozinha pra preparar o lanche e ir adiantando o que fosse possível pro almoço do dia seguinte – além de deixar de molho o arroz integral, a aveia e as frutas secas que seriam cozidas no próximo dia cedo para o café da manhã.

Às 17h o lanche era servido, aí nos cabia limpar tudo e estarmos prontos para a meditação das 18h às 19h, seguida de discurso (uma gravação de Goenka, o mestre que popularizou a técnica, específica para cada dia) e mais um breve momento de meditação. Isso tudo até as 21h, quando então se abria espaço para perguntas – único momento coletivo em que a palavra é permitida para os meditadores (a outra exceção, individual, são possíveis seções particulares com a mestra).

Depois que tudo acaba e todos os alunos deixam a sala de meditação, ficam somente os servidores com a mestra e seus aprendizes, para praticar alguns minutos de metta. Trata-se de uma outra técnica, que os estudantes só praticam no último dia, que, ao contrário de Vipassana (que é um trabalho dentro dos limites do corpo), visa expandir os “méritos” logrados com a meditação – e no caso do serviço, tem o intuito de harmonizar os possíveis mau estares do trabalho coletivo. “I seek pardon”, começa dizendo Goenka, algo como “eu peço perdão” – o que viraria um dos bordões da cozinha.

E, após isso tudo, às vezes a mestra ainda nos chamava para uma rápida conversa – no seu espanhol engraçadíssimo, holandesa que era. “Ya, ya, yo me explica?”, dizia – o que, evidentemente, também virou bordão.

A rotina era puxada e tudo o que eu queria depois dessa intensa jornada diária era dormir – mas, apesar da canseira, deu pra se divertir um bocado com essa equipe de cozinha. Projeto de banda punk meditativa, nomes fictícios, receitas inusitadas, muita “salsa* loca” y “postre** místico” e um belo de um trabalho realizado.

Enquanto o silêncio reina entre os meditadores, a palavra era liberada na cozinha, e até que abusávamos um pouco dessa liberdade. Outro detalhe é que não tínhamos um horário próprio para comer, então o negócio era meio corrido – fazíamos nossas refeições enquanto cuidávamos para que nada faltasse nos dois buffet – o das mulheres e o do homens. Mas comíamos muito bem, obrigada, e, ao contrário dos meditadores, nosso lanche da tarde não era austero, pois tínhamos orientação para nos alimentarmos bem para aguentar o tranco do trabalho.

Já a rotina culinária era facilitada – mas também limitada – por uma pasta de documentos que continha o menu das refeições fixas – café da manhã e lanche – e de cada almoço especificamente, dia por dia, e até indicações de quantidade por número de pessoas e de como preparar algumas receitas. A recomendação era para não fugirmos muito desse manual, apenas adaptar de acordo com a condição dos alimentos, para não deixá-los apodrecer e aproveitar ao máximo as sobras. E sim, a cozinha do curso é estritamente vegetariana, sendo bastante amigável aos veganos.

Que todos os seres sejam felizes

A experiência de servir é, tanto quanto “sentar”, um intenso aprendizado – apesar que de maneira distinta. Se, por um lado, não é tão introspectiva e meditativa, exige lidar com a dinâmica coletiva, com trabalho em equipe – com a relação direta com o outro.

Quanto às regras dos centros de Vipassana – como segregação por gênero e recomendações de vestimentas apropriadas -, sim, eu as questiono. Como questiono tantas coisas em tantos eventos, espaços, religiões e tradições que já frequentei.

Acredito que as tradições não são imunes às voltas da Terra em torno do Sol e precisam ser atualizadas – e, sendo assim, deixo algumas provocações: qual o lugar para aqueles que não se encaixam no já ultrapassado binômio de gênero “homem e mulher”? Além do mais, separar por gênero para evitar “distrações” também desconsidera as várias orientações sexuais para além da heteronormatividade. E quanto à necessidade de se cobrir com vestes, não seria mais interessante aceitar a naturalidade dos corpos – reconhecer e enfrentar a impureza do olhar ao invés de legitimá-la tapando o corpo?

E, finalmente, de que maneira se poderia discutir tudo isso?

Ah, a necessidade de convergência entre espiritualidade e política…

De qualquer modo, os cursos de Vipassana oferecem uma oportunida rara, senão única, de desconexão com a avalanche de informações e distrações do cotidiano para que cada um possa entrar em contato profundo consigo e silenciar a mente. Como um copo de água turva que, ao ser deixado imóvel, decanta – as impurezas, agora visíveis, se separam da água límpida, como ilustra Goenka.

E assim vamos nos tornando mais serenos e transparentes, buscando desejar o melhor para todos os seres – visíveis e invisíveis – e sendo mais conscientes de cada passo e do caminhar.

 

* molho, em espanhol.
** sobremesa, em espanhol.

Um comentário sobre “Na cozinha do Vipassana

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